Porfírio de Carvalho: “Eu vi a planilha do mensalão para Mário Juruna”

Por Alceu Luís Castilho*

O uso do termo “mensalão”, nesta entrevista concedida pelo sertanista José Porfírio de Carvalho em fevereiro de 2006, era anacrônico. Mas fazia sentido. A palavra estava em voga por conta da denúncia feita pelo presidente do PTB, o deputado fluminense Roberto Jefferson, contra lideranças do PT. Conhecido no universo indigenista por seu trabalho com os Waimiri-Atroari, Porfírio de Carvalho a utilizou para definir a compra de votos que acontecia durante a candidatura governista do deputado Paulo Maluf (PDS-SP) à Presidência da República, em 1984, na eleição indireta contra Tancredo Neves. Um dos assediados foi o cacique Xavante Mário Juruna (PDT-RJ), de quem o sertanista era assessor, eleito deputado federal em 1982 com mais de 40 mil votos pelo partido de Leonel Brizola. Carvalho morreu neste sábado, aos 70 anos, em Brasília. Foi lá que o encontrei por acaso, há 11 anos, durante uma entrevista com um diretor da Eletronorte. Eu trabalhava para um pool de jornais paulistas do interior, vinculados à Associação Paulista de Jornais. Nunca tinha ouvido (infelizmente) falar do indigenista, que foi coordenador da Fundação Nacional do Índio, a Funai, na Amazônia. Mas logo me interessei pelas histórias sobre Mário Juruna (1943-2002). Ele descreveu uma campanha sistemática de deputados para desmoralizar o cacique. O que incluía tentativas de corrompê-lo. “Uns cinco deputados defendiam o Juruna”, contou. “O resto era tudo contra ele”. Confira abaixo a entrevista, que o De Olho nos Ruralistas reproduz aqui por sua importância histórica:

Alceu Castilho – O senhor se aposentou em 1997. Na Funai fazia exatamente o quê?
José Porfírio de Carvalho – Eu era sertanista. Sou ainda sertanista. Não é algo que se deixa de ser. Especializei-me em índios Waimiri Atroari e Parakanã.

Porfírio de Carvalho com o milésimo Waimiri-Atroari.

O senhor tinha alguma vinculação partidária nessa época?
Não. Nem MDB nem Arena. Em relação à ditadura eu fui processado várias vezes. Na minha portaria de demissão da Funai, em 1983, fui acusado de comunista e subversivo. Fui cassado, e em 1997 anistiado. Minha cassação foi antes do governo Figueiredo, tive os direitos políticos cassados, aí voltei para a Funai com mandado de segurança, durante o governo Geisel.

Em 1983 o que acontece?
Eu tinha sido demitido antes, em 1980, por motivos políticos, mas entrei com outro mandado de segurança. Em 1983 saí de uma vez. Fui trabalhar na Câmara com o Mário Juruna, como secretário dele, na Comissão do Índio.

O senhor se decepcionou com a interrupção da projeção política do Juruna?
Não. Eu tive problemas – e é natural que haja problemas. Na hora de conviver com os deputados, ele passou a entender (a atividade parlamentar) de uma forma errada. Tentei mudar essa visão dele, mas Juruna se sentia muito senhor de si, e preferi sair. Estava doente, não pude ficar.

Ele foi cooptado?
Não diria assim. Diria que passou a ouvir muito o pessoal do mensalão. Ali dentro da Câmara não tem santo.

Juruna era conhecido por gravar conversas.

Mas qual foi a reação dos parceiros nessa época?
O Juruna chocava as pessoas. Imagina os deputados, os parlamentares brasileiros se sentem a nata da nação, pessoas superpreparadas, eles “se acham”. E de repente aparece um índio no Congresso, aquilo desmoralizava eles, a presença daquele índio. Parecia mais um folclore, uma pessoa totalmente despreparada para estar ali no parlamento brasileiro. E eles tentavam cada vez mais diminuí-lo, fazer arapucas de discursos para fazê-lo se perder. Contavam histórias para ele sobre dinheiro, sobre fortunas, sobre como usar o dinheiro. Então ele começou a ficar em dúvida entre o que era bom e ruim, o que era mau e o que era justo.

Não havia um grupo de cinco ou seis deputados que tomavam a frente desse processo?
Uns cinco defendiam o Juruna, o resto era tudo contra ele. Um negócio pesado, muito pesado. Ele conseguiu conviver um bom tempo com muita dignidade. Mas aí começou a ver que aquela presença não tinha a importância que ele imaginava. E começou a se cansar daquilo. Todo dia ele ia para o plenário, ele pensava que todo deputado tinha de ficar ouvindo todos os discursos. Ia para lá e se sentava. E lá ficava. E não saía dali. Aí eles começaram a dizer: vamos tirá-lo daí de dentro. Porque parecia uma atalaia – uma pessoa lá, marcando presença. Aí começaram muitos problemas.

Mas quem tomava a frente dessa postura, entre os deputados?
Diretamente, não. A maioria levava na brincadeira. Só aquela turma do PMDB, Dante de Oliveira, Modesto da Silveira, Freitas Nobre, o Eduardo Suplicy, eram pessoas dignas, o tratavam com muita dignidade. Outro que o tratava com respeito era o Israel Dias Novais, um deputado por São Paulo, protegia ele, procurava protegê-lo dessas arapucas, dessas histórias. E saía notícia no jornal que ele ia para o restaurante da Câmara, no anexo 4, e aí jantava, almoçava e não pagava a conta. Os deputados o convidavam para a mesa porque ele era a atração, a imprensa sempre procurava. Aí saía todo mundo, um por um, sem pagar a conta, deixavam o Juruna, sozinho, para pagar. Olha o mau caratismo. Aí os garçons vieram cobrar dele as despesas. Ele disse: não. Apareceu então o (jornalista brasiliense) Marconi Formiga dizendo: Juruna mais uma vez deu um golpe no restaurante da Câmara. Eram coisas desse tipo, dessa baixaria.

Com Darcy Ribeiro. (Foto: Orlando Brito)

Quando ele não conseguiu se reeleger, o que aconteceu?
Ele entrou em depressão. Quando se candidatou a deputado, já tinha rompido em parte com o trabalho dele. A tribo achava que os militares tinham feito dele um vilão. Era uma pessoa que, pela comunidade, era para ter relacionamento com os brancos. E ia lá com os militares pedir coisas para a tribo. Eles não cumpriam. Aí surgiu o gravador, que era útil para ouvir os militares na Funai. Ele levava o gravador de volta para que as pessoas ouvissem o que os caras prometeram. Porque quando a comunidade cobrava dos militares, eles diziam: nós já entregamos para o Juruna. Ele ficou em situação difícil com a comunidade. Tinha amizade com o Darcy Ribeiro, que tinha acabado de voltar do exílio e se juntou com o Brizola, e o lançaram candidato a deputado federal. Eu já tinha amizade com ele e fui contra ele ser candidato. Disse que seria um aproveitamento da imagem dele, ele já tinha uma imagem nacional, pela sua figura televisiva, seus cabelos, e foi bem utilizado na campanha política do Brizola. Eu não acreditava que ele ia ser eleito. Teve 40 mil votos. Com muita grandeza, me convidou para ser um dos secretários dele.

Quando o senhor fala da turma do mensalão, diz que ele recebia dinheiro?
Teve uma acusação grave contra ele, sobre receber dinheiro do Maluf. Era um mensalão. Quando o Maluf foi candidato (contra Tancredo Neves, na última eleição indireta para presidente), correu um boato na Câmara – e pelo jeito era verdade – que o Maluf comprava voto a voto. E não era conversa a boca pequena. O valor era alto. O Juruna chegou a me perguntar: é verdade, será que é verdade? Disse que era conversa, não dei muita importância. E ele terminou de uma certa maneira se envolvendo nessa história. O interlocutor foi um sujeito chamado Calim Eid. Esse Calim Eid o chamou num desses hotéis e fez uma planilha, igual à do mensalão – isso não é uma coisa nova. Eu peguei a planilha, cheguei a ver. A planilha tinha assim: primeiro pagamento – quando ele malufasse. Malufar seria declarar publicamente que iria votar no Maluf. Na época falavam: fulano de tal malufou. “X” cruzeiros. Correspondia mais ou menos a US$ 10 mil. A quantia para o Juruna, não sei a dos outros. A segunda parcela viria quando, 30 dias depois de malufar, ele reafirmar publicamente que continuava. A terceira era na véspera da votação, e a quarta quando confirmasse o voto. Era um bolão de aproximadamente US$ 40 mil.

E?
Ele recebeu a primeira parcela. Quando eu senti que ele tinha recebido… Ele não sabia contar. Não sabia contar acima de dez. Pegou dinheiro, dinheiro vivo, e não sabia contar. E não podia falar comigo nesse assunto, porque sabia da minha reprovação. Mas ficou com peso na consciência, me chamou e contou. Eu vi o dinheiro e tinha que tomar uma providência. Como ele era do PDT, comuniquei à liderança do PDT esse fato grave e que ele estava pronto para devolver. Fui ao Brizola, com o Mário Juruna. Nessa época o ministro da Justiça era o Ibrahim Abi-Ackel. Minha idéia, meu plano, e uma das razões por que saí foi justamente essa história, era que o dinheiro fosse devolvido ao vivo para o Abi-Ackel. Era a prova do mensalão do Maluf. Ele levaria o dinheiro em espécie e devolveria para o ministro. O que aconteceria? Seria cassado o Maluf, não seria candidato.

Mas não foi o que aconteceu…
O Brizola usou outro método: chamar toda a imprensa e querer capitalizar para o PDT a denúncia. Mas todo mundo negou: o Maluf, o Calim Eid negou, que nunca tinha dado, que aquilo era um truque do Brizola.

E você era uma testemunha.
Vi a planilha. Não tinha nome, nada, mas estava lá a planilha, num papel rascunho.

Datilografado?
Não, a mão. Mas como eles usaram para capitalizar politicamente para o PDT a história, não teve repercussão. O Brizola era inimigo tradicional do Maluf, virou um… Mas, na minha opinião, se o Juruna fosse devolver fisicamente o dinheiro na mão do Abi-Ackel, ele seria obrigado a contar de onde veio o dinheiro.

Depois desse período o senhor continuou amigo do Juruna?
Sim. Foi devolvido o dinheiro, e depositado. Ninguém recebeu. Descobriu-se o número da conta do Calim Eid e foi depositado na conta dele.

* Entrevista publicada originalmente em veículos associados à Associação Paulista de Jornais (APJ), em março de 2006.

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