Para grupos que monitoram atividades desempenhadas em regime análogo à escravidão, decisão oficializa a impunidade dos abusos; medida impacta colegiados relacionados à agroecologia, indígenas e comunidades tradicionais
Por Maria Lígia Pagenotto
Na última quinta-feira (11), o presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto 9.759 determinando a extinção, em caráter preliminar, dos conselhos e comissões que integravam a Política Nacional de Participação Social (PNPS). De acordo com o texto, os ministérios terão até o dia 28 de maio para solicitar à Casa Civil a recomposição dos colegiados sob sua responsabilidade. Os grupos que não estiverem nessas listas serão definitivamente extintos.
Entre os órgãos ameaçados está a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), ligada ao extinto Ministério dos Direitos Humanos e responsável por monitorar casos de trabalho escravo no Brasil, prestando assistência às vítimas e acompanhando a tramitação de projetos de lei no Congresso relacionados à política trabalhista.
Para o procurador regional do Ministério Público do Trabalho (MPT) e secretário de Relações Institucionais da Conatrae, Alessandro Santos de Miranda, a medida favorece a impunidade nos crimes e dificulta a assistência às vítimas:
– O fim de uma lista tripartite, em uma comissão desse alcance, com representantes do governo, da sociedade civil e do povo, é um retrocesso imenso. Vai contra o que se espera de um regime democrático. Isso é um enfraquecimento do monitoramento do trabalho escravo, um abalo a mais na estrutura de vigilância, que ainda se ressente da perda do Ministério do Trabalho.
Segundo o governo, a medida visa desburocratizar atos normativos da administração pública e reduzir gastos públicos. Em suas redes sociais, no entanto, Bolsonaro comparou os colegiados a “sovietes” e pregou a “redução do poder de entidades aparelhadas politicamente usando nomes bonitos para impor suas vontades”. Para o presidente, os mecanismos de participação social estariam atrapalhando propositalmente o desenvolvimento do Brasil.
O decreto 9.759/2019 não é o único a fragilizar os mecanismos de controle do trabalho análogo à escravidão no país. À extinção provisória da Conatrae, soma-se o fim do Ministério do Trabalho, a reforma trabalhista e a redução no número de auditores fiscais, atingindo um índice abaixo do recomendado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Segundo Elias D’Angelo Borges, secretário de Políticas Agrárias da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), que também integra a comissão, as entidades do setor deverão buscar alternativas para seguir com a vigilância e com as operações de resgate, especialmente no campo.
“Temos alguns outros espaços e a parceria com a OIT para denunciar o trabalho escravo”, afirma Borges. “Vamos continuar denunciando essas atrocidades de qualquer jeito”.
Durante sua campanha à presidência, Jair Bolsonaro atacou diversas vezes a publicação da “lista suja” do trabalho escravo que, atualmente, conta com 187 nomes de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão. Cerca de 70% dos casos se referem a donos de terras.
Em seu programa de governo, o ex-capitão propôs retirar da Constituição o dispositivo que permite a desapropriação e destinação para a reforma agrária das terras nas quais seja encontrado trabalho escravo. Em entrevista à Rádio Jovem Pan, em outubro de 2018, Bolsonaro voltou a investir contra a fiscalização do trabalho, rotulando-a de “ativismo judicial“:
– Por exemplo, na sua propriedade tem uma senhora de trinta anos, que está com máscaras, luva, roupa e bota, e está pulverizando uma plantação de alface para combater pulgão. Chega o Ministério Público do Trabalho, faz um teste de gravidez dela, e nem ela sabia que tava grávida. Vai que tá grávida? Então, em cima do ativismo judicial, [fazem um] processo para expropriar o imóvel. Isso não pode continuar acontecendo.
A lista preliminar de colegiados extintos pelo decreto presidencial inclui ainda uma série de conselhos que tratam de assuntos diretamente relacionados ao ambiente, povos indígenas, comunidades tradicionais e à agricultura.
Um dos órgãos ameaçados, a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica é responsável por acompanhar e envolver a sociedade na elaboração das diretrizes para a transição agroecológica, que prega a erradicação do uso de agrotóxicos através do controle biológico de pragas.
Para Susana Prizendt, integrante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, a decisão de Bolsonaro representa uma perda imensa para a sociedade:
– Não dialogar sobre essas questões e tomar decisões unilaterais a respeito de agrotóxicos são medidas com um impacto imenso no meio ambiente. A gente tinha uma política junto ao agronegócio para incentivar agricultores a praticar a agricultura agroecológica, que não usa insumos tóxicos e se vale de mão de obra menos mecanizada, entre outros pontos importantes. É um modo mais saudável de produção, mais ecológico e mais justo socialmente.
Em janeiro, em um de seus primeiros atos na presidência, Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), outro colegiado que pressionava pela redução no uso dos agrotóxicos e um dos responsáveis por tirar o Brasil do Mapa Mundial da Fome, em 2014. Desde então, o governo aprovou a liberação de 152 pesticidas.
Outro grupo fortemente atingido pelo decreto 9.759 foram os indígenas, que estavam representados no Conselho Nacional de Política Indigenista e na Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena. Segundo Cleber Buzatto, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a medida consolida o viés autoritário e antidemocrático do governo Bolsonaro: “É mais um indicativo da falta de disposição do presidente para qualquer forma de diálogo”.
A relação de colegiados ligados à questão agrária que foram extintos inclui ainda a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, a Comissão Nacional de Florestas (Conaflor), a Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio) e a Comissão Nacional dos Trabalhadores Rurais Empregados (Cnatre).