Imagens de satélite mostram a extensão dos cortes, que podem chegar a mil hectares; arrendada em abril, área dos Kalunga em Cavalcante é reivindicada por empresa ligada a offshores; Semad deflagrou hoje operação para apurar os responsáveis
Por Yago Sales e Bruno Stankevicius Bassi
Em um período de quinze dias, o Cerrado perdeu cerca de mil hectares em um desmatamento ilegal próximo da nascente do Rio da Prata, manancial de abastamento para o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, no município de Cavalcante (GO). A denúncia foi feita pelos próprios quilombolas — cujo território é autodemarcado — e pode ser visualizada em imagens aéreas por drone que mostram a devastação realizada na Fazenda Alagoas.
Ao analisar imagens de quatro satélites para dimensionar o impacto da ação dos tratores, o Instituto Cerrados detectou 549 hectares desmatados na Fazenda Alagoas até o dia 31 de maio. E ainda há indicativo de outros 267 hectares de desmatamento. Segundo a entidade, desde a análise, outras áreas podem ter sido abertas.
O padrão do desmatamento aponta o uso de “correntão”, quando correntes são presas a tratores para facilitar o corte raso da vegetação, permitindo o plantio de soja. Para despistar os olheiros que preservam a área, as máquinas operaram a cerca de dois quilômetros da cabeceira da pista.
Segundo a Secretaria de Meio Ambiente de Goiás (Semad), a Fazenda Alagoas teria sido arrendada pela proprietária Maria de Lourdes Hlebanja no início do ano à empresa Apoena Mineração e Comércios Ltda.
Fruto de um desmembramento de outra fazenda maior, a São Domingos, a área onde ocorreu o desmatamento pertence à família Hlebanja desde 1994, quando foi adquirida, através da empresa Yanes Minas Indústria e Comércio Ltda, do antigo proprietário, Rudolf Josef Theodor Bannwart.
De origem suíço-holandesa, os Bannwart controlam a região de São Domingos desde 1970, quando Rudolf e seu irmão Gerard Gustav Josef Bannwart a adquiriram de colonos alemães pelo valor de Cr$ 1,2 milhão. Juntos, fundaram a Pequi Agro-Pastoril (atual Agropecuária Rio da Prata), proprietária da Fazenda Piqui, vizinha da Alagoas. A empresa é fruto de uma sociedade com a offshore britânica Caldernorth Overseas Limited que manteve participação nas fazendas até 2002, quando foi incorporada pela Martinibeth Investment Inc vendendo suas cotas à família Bannwart.
Com sede no Panamá, a Martinibeth era intermediária do Merlin Group e cliente do escritório Mossack Fonseca, epicentros do Panama Papers, escândalo de evasão fiscal e ocultação de patrimônio revelados pelo Consórcio Internacional de Jornalismo Investigativo (ICIJ).
A milhares de quilômetros do território Kalunga, em Avaré (SP), Gerard tornou-se conhecido por implementar projetos de agricultura biodinâmica, método de produção orgânica que incorpora ciclos lunares e conceitos de astrologia, tornando-se tradutor, no Brasil, do criador da técnica, o alemão Rudolf Steiner.
Além dos quilombolas, a situação preocupa guias turísticos e moradores da região, que podem sofrer com o fim de uma das últimas áreas preservadas do Cerrado goiano. Essa é a preocupação de Bruno Mello, ativista da Rede Mais Cerrado. “Vamos aguardar fiscalização do governo estadual para saber se vai ter alguma ação, já que não tem nada do governo federal”, afirma, referindo-se ao desmonte nas operações de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
— O governo de Goiás não admite a destruição do meio ambiente e ações criminosas em nosso território. Nosso Cerrado é nosso lar e as comunidades tradicionais, como a Kalunga, devem ser protegidas da ganância. Estamos em campo para tomar as devidas providências contra este grave crime contra o patrimônio de todos os goianos.
Segundo a secretária Andrea Vulcanis, não foram expedidas licenças para o desmate na região. “O território Kalunga está sob gestão do governo federal, porém toda a área de meio ambiente e supressão de vegetação e autorizações é da Semad”, afirmou, em vídeo publicado no Instagram. “Faremos nosso papel atuando de forma efetiva”.
Desde 9 de março, com a entrada em vigor do Decreto n° 10.252, de 20 de fevereiro de 2020, o licenciamento ambiental em territórios quilombolas deixou de ser atribuição da Fundação Cultural Palmares, passando ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sob a tutela do secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia. A mudança foi informada às secretarias estaduais apenas na última semana.
|Yago Sales é repórter do De Olho nos Ruralistas; Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do observatório |
Atualização: após publicação da matéria, foram divulgados os resultados da operação da Semad que atestaram que a área desmatada estava na parte da fazenda Alagoas pertencente à Maria de Lourdes Hlebanja e não à Agropecuária Rio do Prata Ltda, como inicialmente divulgado.