Após pleitos municipais que elegeram mais de 50 quilombolas em todo o Brasil, Vilmar Kalunga administrará Cavalcante, em Goiás, com o desafio de evitar mudanças no traçado da BR-010, que liga comunidades da região a centros maiores
Por Márcia Maria Cruz
Por muitas décadas, as comunidades Kalungas se mantiveram isoladas em regiões remotas e de difícil acesso na região nordeste de Goiás. Ao assumir a prefeitura de Cavalcante em 2021, Vilmar Kalunga (PSB) — o primeiro quilombola do país a ser eleito para o comando do Executivo — terá como desafio impedir que o município e os quilombos tenham o acesso a outros centros dificultado.
Vilmar assumirá com a incumbência de reverter a mudança do traçado da BR-010, conhecida como Rodovia Belém-Brasília, no trecho que liga Goiás a Tocantins. No projeto original de 2018, quando a rodovia foi federalizada, o traçado passaria pela área rural do município, que abriga o Parque Nacional Chapada dos Veadeiros.
O primeiro prefeito quilombola da região iniciará o mandato com o compromisso de reduzir desigualdades do município e, para isso, defende a necessidade melhorar o acesso à área. Nas comunidades Kalunga, as estradas são precárias o que dificulta o acesso a água, eletricidade e comunicações.
No dia seguinte à confirmação da vitória eleitoral, em entrevista ao De Olho nos Ruralistas, Vilmar falou dos esforços para que se mantenha o traçado original da BR-010. Em março, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) deu início a um processo de licitação para contratar a elaboração de projeto para implantação e pavimentação, com adequação de capacidade, do trecho da BR-010 que liga o estado de Goiás a Tocantins. Desde então, líderes quilombolas estão divididos sobre o processo.
“Quero lutar muito para mostrar a importância de a BR-010 passar pelo município de Cavalcante”, afirmou Vilmar. Segundo ele, o traçado original beneficia mais de 20 mil pessoas em termos de mobilidade.
A ligação entre Brasília e Palmas era uma rodovia estadual. Após a federalização, o projeto original previa que o traçado passaria pelo sítio histórico de Cavalcante.
De acordo com o presidente do Conselho Municipal de Turismo, Rodrigo Neves, a rodovia melhoraria o acesso às comunidades, hoje realizado por estradas muito precárias: “O traçado passando por aqui melhoraria a infraestrutura, beneficiando mais de 800 famílias na zona rural de Cavalcante”.
O território Kalunga estende-se por 253 mil hectares nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás. Ao todo, são 56 comunidades. Nos séculos 18 e 19, diversos quilombos foram formados por negros escravizados fugitivos das minas de ouro. Autossuficientes, as comunidades se mantiveram isoladas por muito tempo em regiões remotas.
Vilmar Kalunga elegeu-se prefeito do município depois de enfrentar sete adversários, entre os quais a vice-prefeita Celiara Cristina Costa (PDT). Os negros chegaram à região, levados para trabalhar forçosamente nas minas de ouro. Apesar de estarem lá antes mesmo da criação do município, nunca tinham alcançado o comando do Executivo. Cavalcante foi elevada à categoria de vila em 1831.
— Estamos na região há mais de 300 anos. O povo veio atraído pelas minas de ouro. Ficamos escondidos atrás da serra, na beira dos vales, nos vãos, resistindo há muitos anos. O município tem 189 anos e só hoje conseguimos a oportunidade de ver um Kalunga se tornar prefeito da cidade em que 80% da população são quilombolas. Essa luta não é só minha. É libertação mesmo, vitória, alegria. É ocupar espaço. Estou muito satisfeito, mesmo sabendo da responsabilidade e dos desafios à frente da prefeitura de Cavalcante.
Durante a campanha, Vilmar foi vítima de preconceito por ser kalunga. No entanto, ao assumir o mandato em 2021, ele destaca que pretende fazer um governo “para kalungas, para não kalungas e para quem vem de fora”. “Pretendo buscar o desenvolvimento social para a nossa Cavalcante. Nosso município é carente, quero buscar meios de desenvolvê-lo na questão da renda, turismo natural e cultural”.
Os desafios são inúmeros. Com cerca de 10 mil habitantes, o município tem Índice de Desenvolvimento Humano é de 0,584 (parecido com o de países africanos como Zâmbia e Guiné Equatorial) e as famílias têm acesso dificultado à saúde e equipamentos públicos. Outro problema enfrentado na região é o desmatamento. “Esta é uma questão do estado. A prefeitura não tem poder de multar, então vamos trabalhar com a conscientização”, diz, lembrando que pretende firmar parcerias com o governo estadual para coibir o crime.
“Ficamos escondidos atrás da serra, na beira dos vales, nos vãos”
A identidade Kalunga de Vilmar foi atacada pelos adversários durante a campanha. “Diziam que eu seria prefeito só dos Kalunga”, diz. Para fazer a campanha, contou com recursos do fundo partidário, cerca de R$ 100 mil. Vilmar elaborou de maneira colaborativa o plano de governo, depois de visitar todas as comunidades quilombolas da região. “É oportunidade que estou tendo para mostrar que o Kalunga tem competência para liderar um gestão para todos os cavalcantenses”, diz.
Além de Cavalcante, comunidades quilombolas comemoraram o resultado das eleições municipais em todo o Brasil. Na visão de seus líderes, diante dos retrocessos nas políticas públicas para os territórios quilombolas, ficou ainda mais urgente ocupar espaços institucionais para reverter esse processo. Nesse sentido, a estratégia de lançar um número maior de candidatos aos cargos políticos teve êxito.
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (Conaq) fez um levantamento que apontou cerca de 500 quilombolas que disputaram as eleições municipais. O resultado preliminar aponta que, além da vitória de Vilmar Kalunga, as comunidades elegeram um vice-prefeito e 54 vereadores. O maior número de quilombolas eleitos vereadores foi no Maranhão (14), seguido por Goiás (9), Bahia (8), Pernambuco (7) e Minas (7).
| Márcia Maria Cruz é jornalista. |
Foto principal (Juliana Cezar Nunes/EBC): prefeito eleito quer que traçado de rodovia seja mantido
|| A cobertura do De Olho nos Ruralistas sobre o impacto da pandemia nas comunidades quilombolas tem o apoio da Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo da Google News Initiative ||