De Kátia Abreu a Mauro Carlesse, Tocantins se afirma como símbolo do agronegócio

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No estado mais jovem do Brasil, sojeiros e políticos avançam sem trégua sobre o Cerrado; observatório mostrou em cinco anos a influência dos fazendeiros na política local e o aumento da violência contra os povos do campo; quilombolas resistem no Jalapão

Por Bruno Stankevicius Bassi

O ano era 1987. A partir da articulação política do deputado constituinte Siqueira Campos, hoje filiado ao DEM, a porção norte de Goiás ganhou sua autonomia, tornando-se o 26º estado brasileiro com a promulgação da Constituição no ano seguinte. Campos se tornaria o primeiro governador de Tocantins, cargo que voltou a exercer em outros três mandatos — o último entre 2011 e 2014.

Mais do que político, ele era um fazendeiro. Com o desmembramento do estado, vieram os grandes projetos agrícolas que transformaram o Tocantins em uma das principais fronteiras agrárias do país. Às custas da expulsão de camponeses, indígenas e quilombolas.

De Kátia Abreu a Mauro Carlesse, a linhagem de ruralistas parida por Siqueira Campos foi um dos temas centrais da cobertura do De Olho nos Ruralistas sobre o estado. Tocantins é o último estado da região Norte a ser retratado na retrospectiva de cinco anos do observatório. Antes vieram Pará, Amapá, Amazonas, Roraima, Acre e Rondônia.

A série começou em setembro no Sul, com Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, e seguiu para o Sudeste, exibindo matérias produzidas sobre os estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Depois, vieram Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão, na região Nordeste. Os três estados do Centro-Oeste, mais o Distrito Federal, fecham a retrospectiva.

Alguns temas perpassam vários estados. É o caso das patrulhas rurais. A reportagem de Julia Dolce sobre o tema foi um destaques do ano no observatório, revelando como esses grupos supostamente formados “para a segurança da população rural” reforçam a violência e atendem os interesses de fazendeiro. O Tocantins foi o principal exemplo dessa tendência: “Patrulhas rurais da PM atuam para agronegócio e contra camponeses“.

“MÃE” DO MATOPIBA, KÁTIA BENEFICIOU INTERESSES PRIVADOS

Por muito tempo, o nome da senadora Kátia Abreu (Progressistas) foi sinônimo de “ruralista”. Natural de Goiânia, a ex-ministra da Agricultura chegou ao Tocantins apenas um ano antes da criação do estado. Viúva aos 25 anos, ela passou a administrar o patrimônio deixado pelo marido, o pecuarista Irajá Silvestre, morto em um acidente de avião.

Família Abreu se perpetua na política tocantinense. (Ilustração: Baptistão/De Olho nos Ruralistas)

Lá, foi apadrinhada por Siqueira Campos, que a lançou para a política em 1998. Um ano antes, ela e seu irmão Luiz Alfredo — flagrado, em 2013, com trabalho escravo — estiveram entre os 27 beneficiários do Projeto Agrícola Campos Limpos, que repartiu 105 mil hectares no município recém-criado em homenagem ao próprio governador.

A história foi um dos destaques da cobertura eleitoral do De Olho nos Ruralistas em 2018, quando Kátia disputou a vice-presidência na chapa de Ciro Gomes (PDT) ao mesmo tempo em que elegia o filho: “Filho de Kátia Abreu, deputado Irajá disputa no Tocantins vaga ao lado da mãe no Senado“.

De estilo agressivo, Kátia foi tema de uma das primeiras entrevistas publicadas pelo observatório, em outubro de 2016, com a pesquisadora Débora Lerrer. Cinco anos depois, continua sendo pauta, como mostra reportagem do mês passado, repercutindo sua atuação no Projeto de Lei (PL) que pretende flexibilizar o licenciamento ambiental: “Com Kátia Abreu na relatoria, “PL da Boiada” avança no Senado“.

À frente do Ministério da Agricultura durante o segundo mandato de Dilma Rousseff (PT), a líder da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) notabilizou-se como uma das principais defensoras do Matopiba, a fronteira agrícola entre os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, marcada pela grilagem e pelo desmatamento crescente do Cerrado.

Dona de milhares de hectares na região, Kátia Abreu não é a única da família a ter conflitos de interesses. Em 2020, revelamos que as mudanças propostas na MP da Grilagem por seu filho, o senador Irajá (PSD), beneficiavam diretamente os negócios do padrasto, o empresário Moises Pinto Gomes, que buscava criar um fundo internacional para compra de terras no Matopiba: “Texto de Irajá na MP da Grilagem beneficia negócios do padrasto“.

No mesmo ano, durante cobertura das eleições municipais, mostramos também como um ex-assessor da senadora, acusado de corrupção e multado por desmatamento ilegal, tentava voltar à prefeitura de Goiatins (TO). Relembre aqui.

POLÍTICOS PROTAGONIZAM DESMATAMENTO E GRILAGEM

Em cinco anos, o avanço da soja sobre o Cerrado e a Amazônia foi um tema constante do observatório. Do despejo de quarenta famílias camponesas para dar espaço a sojeiros, em 2016, ao aumento desenfreado de barragens agrícolas na bacia do Rio Formoso, em 2021, nossas reportagens buscaram sempre mostrar os nomes (e os CNPJs) por trás da destruição. Em comum, muitos destes casos têm a assinatura de políticos importantes do estado. Entre eles, dois governadores.

Cassado em 2018 pelo crime de ‘caixa 2’, Marcelo Miranda (MDB) voltou aos holofotes dois anos depois, quando a Operação Rei do Gado, da Polícia Federal, revelou que o ex-governador presenteara o ex-presidente do Tribunal de Justiça do Tocantins (TJ-TO) com uma picape Toyota Hilux, supostamente em troca de decisões judiciais favoráveis a si. A partir da investigação, De Olho nos Ruralistas apontou a ligação de Miranda com um dos principais desmatadores da Amazônia, o dono do grupo Umuarama, Luiz Pires, que intermediou a “doação” do veículo: “Hilux dada por ex-governador liga desembargador do Tocantins a desmatadores no Pará“.

Carlesse durante formatura de policiais para a Patrulha Rural. (Foto: Esequias Araújo/Governo do Tocantins)

A reportagem fez parte do especial De Olho nos Desmatadores, que compilou a lista dos maiores multados por desmatamento pelo Ibama entre 1994 e 2019. Entre as mais de 280 mil autuações analisadas pelo observatório, aparece uma de R$ 1,8 milhão, datada de 2005, aplicada em Lagoa da Confusão (TO). A empresa autuada, a Maximu’s Participações, tinha entre seus sócios o atual governador do estado, Mauro Carlesse (DEM). O único com mandato a aparecer na lista.

Mesmo com a pandemia de Covid-19, nossa equipe continuou revelando as teias políticas por trás dos crimes socioambientais. Em abril de 2021, contamos como o irmão do deputado alagoano Sergio Toledo (PL) usava as empresas da família para desmatar áreas de Cerrado na Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins: “Família de cartorários, com braço na Câmara, desmata área de proteção ambiental“.

No mês seguinte, em meio à discussão da CPI da Covid no Senado, foi a vez de mostrar a ligação de uma das testemunhas do inquérito com um caso de trabalho análogo à escravidão. Responsável pela distribuição de insumos e vacinas, a empresa VTCLog tem entre seus sócios Raimundo Nonato Brasil, em cuja fazenda foram resgatados 71 trabalhadores.

CONTRA A VIOLÊNCIA, POVOS DO CAMPO RESISTEM

A expansão desenfreada da soja no Tocantins não se dá sobre áreas “vazias”, como deixa transparecer o discurso do agronegócio. Para dar lugar à monocultura, centenas de famílias camponesas são expulsas de seus territórios. É o caso da Comunidade Taboca, no município de Babaçulândia, onde De Olho nos Ruralistas acompanhou o processo de reintegração de posse contra 70 famílias em 2019, e da Comunidade Gabriel Filho, achacada por pistoleiros e drones.

Socorro tornou-se uma das principais líderes entre as quebradeiras. (Foto: Acervo Micob)

Outra população que sente na pele a violência do agronegócio é a da Gleba Tauá, que relata invasões constantes em seu território: “Em três anos, camponeses denunciam 20 ameaças de grileiros em Barra do Ouro (TO)“.

Entre os quilombolas o clima também é de medo. No quilombo Barra da Aroeira, o mais desmatado do Brasil em 2019, líderes locais relataram a ação do vice-prefeito de Novo Acordo em defesa de fazendeiros. Naquele ano, o observatório também destacou a ação deliberada de órgãos do governo tocantinense para travar a titulação de novas comunidades quilombolas.

Mas há também espaço para resistência, como mostra a ação das quebradeiras de coco, cujas líderes foram uma presença constante ao longo destes cinco anos. De Dona Socorro, presidente da Rede Cerrado, às jovens líderes que vem se formando no movimento, é na auto-organização dos povos do campo que reside a esperança de tempos melhores — e mais justos — no Tocantins.

Uma das primeiras edições do De Olho na Resistência, programa semanal sobre os povos do campo lançado em setembro, mostrou a luta dos quilombolas pela preservação do Parque do Jalapão:

EM CINCO ANOS, OBSERVATÓRIO EXPÕE OS DONOS DO BRASIL

A comemoração dos cinco anos do De Olho nos Ruralistas traz ainda várias peças de divulgação, visando a obtenção de mais 500 assinaturas, por um lado, e levar as informações a um público mais amplo, por outro. É urgente a necessidade de o país conhecer melhor o poder dos ruralistas e de formar no Congresso uma bancada socioambiental, um conjunto de parlamentares que defendam direitos elementares, previstos na Constituição e nos pactos civilizatórios internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Assista ao vídeo do aniversário:

No dia 14 de setembro, inauguramos a versão audiovisual da editoria De Olho na Resistência, que divulga informações sobre as iniciativas dos povos do campo e as alternativas propostas para o ambiente e a alimentação saudável. Você pode apoiar o observatório aqui.

Bruno Stankevicius Bassi é repórter e coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |

Imagem principal (Reprodução): barragens construídas por sojeiros causam seca inédita na bacia do Rio Formoso

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