Portaria de Bolsonaro enumerou metas legislativas para 2022; depois de aprovar ontem o PL do Veneno, Câmara deve votar com urgência outras pautas de destruição do ambiente e que atacam direitos dos povos do campo, como a mineração em terras indígenas
Por Mariana Franco Ramos
Após a aprovação na Câmara, na noite de quarta-feira (09), do Projeto de Lei (PL) 6.299/02, apelidado de “Pacote do Veneno”, o Congresso se prepara para votar outras 44 propostas priorizadas pelo governo. Destas, onze têm relação direta com o campo. Publicada na edição de ontem do Diário Oficial da União, a portaria 667 indica que Jair Bolsonaro pretende “passar a boiada” já nos primeiros meses de 2022, ou seja, antes que a Casa se volte aos debates eleitorais.
A agenda legislativa prioritária traz itens como o PL 490/07, do Marco Temporal, que proíbe a ampliação de Terras Indígenas (TIs) já demarcadas e permite a exploração por garimpeiros, e o PL 191/2020, que regulamenta a mineração nas TIs, possibilitando inclusive a construção de hidrelétricas sem entraves. Ambos estão em tramitação na Câmara e contam com o respaldo da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e de seus financiadores.
Com 280 membros, de diferentes partidos, a bancada ruralista, representada pela FPA, é uma das maiores, mais influentes e mais organizadas do Congresso. Em ano eleitoral, suas pautas tendem a ter ainda mais apoio.
Nas últimas semanas, o Centrão vem pressionando Bolsonaro a emplacar uma das expoentes do grupo como vice em outubro. Trata-se da atual ministra da Agricultura e Pecuária, Tereza Cristina (DEM-MS). Segundo o Estadão, aliados do Planalto e até mesmo o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) acreditam que ela pode reduzir a rejeição ao presidente no eleitorado feminino, além de agregar setores do agronegócio.
No setor ambiental, os destaques são o texto que cria a Política Nacional sobre a Mudança do Clima (PL 6539/19), incluindo os compromissos assinados no Acordo de Paris; o que institui o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), de forma a regular a compra e venda de créditos de carbono; e o que sugere mudanças na Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei 11.284/2006), com o objetivo de acelerar processos de licitação (PL 5518/20).
Outra prioridade do Executivo que pode ameaçar o meio ambiente é o PL 1293/21, que estimula o autocontrole na produção de alimentos, revogando dispositivos legais que estabelecem penalidades relativas ao uso de agrotóxicos.
Dois dos itens mais impactantes do chamado “combo da morte” têm as digitais de integrantes da bancada ruralista. O deputado federal Neri Geller (PP-MT) foi o relator da nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 3729/04), apelidada de “a mãe de todas as boiadas”. Após a aprovação na Câmara, a proposta chegou ao Senado sob o número 2.159/21. Ela restringe, enfraquece ou, em alguns casos, até extingue parte importante dos instrumentos de avaliação, prevenção e controle de impactos socioambientais de obras e atividades econômicas no país.
Atual vice-presidente da FPA, Geller já ocupou o cargo de ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) no governo de Dilma Rousseff, em 2014, e por duas ocasiões foi secretário de Política Agrícola do Ministério, em 2013 e 2016. O ruralista foi citado em investigações contra a invasão de terras públicas e fraude na regularização de terras destinadas à reforma agrária no Mato Grosso, em 2014, como mostrou reportagem do De Olho nos Ruralistas.
Ele aparece no Mapa das Terras dos Parlamentares, projeto cartográfico do De Olho. O ex-ministro possui uma propriedade rural de 726 hectares em Diamantino (MT), onde o povo Paresi disputa parte do território, e uma fazenda em Sorriso (MT), local de conflito com os povos Kaiabi, Arapiaká e Munduruku. Nas eleições de 2018, declarou à Justiça Eleitoral R$ 9.018.296,15 em bens, montante dez vezes maior que o declarado doze anos antes.
Geller não esconde a proximidade da gestão Bolsonaro com o presidente da Câmara, o pecuarista Arthur Lira (PP-AL), que “tem compromisso com o setor” — como mostra o terceiro vídeo da série De Olho no Congresso:
Também no Senado, o Palácio do Planalto tem pressa em aprovar os PLs da Grilagem (PL 2.633/20 e PL 510/21), que incentivam a continuidade de ocupação de terra pública e do desmatamento. O autor do primeiro texto é Zé Silva (SDD-MG). O observatório contou que um aliado do político, Ewerton Giovanni dos Santos, criou a empresa de regularização fundiária Legaliza Brasil em 2019, mesmo ano em que Bolsonaro enviou ao Congresso a MP da Grilagem, precursora do PL 2.633.
Ele se apresenta como ex-secretário-adjunto da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Indicado por Silva, foi também diretor de Desenvolvimento de Projetos de Assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra (2016-2019), consultor jurídico geral do município de Gouveia-MG (2013-2016) e extensionista agropecuário da Emater-MG (1997-2012).
O Pacote do Veneno (PL 6299/2002) foi aprovado na noite desta quarta-feira (09), em votação remota, e já seguiu para apreciação do Senado. Foram apenas quatro horas de debate entre a aprovação do pedido de urgência e a apreciação pelo plenário virtual.
O projeto flexibiliza ainda mais o uso de agrotóxicos no Brasil, muitos deles cancerígenos, e concede mais poder ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), ao mesmo tempo em que desautoriza a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
A base aliada a Bolsonaro e os membros da FPA disseram em seus discursos defender a “modernidade” e a desburocratização. “Queremos liberar a injeção eletrônica e a esquerda diz que ela polui”, comentou Alexis Fonteyne (Novo-SP). “Vamos voltar aos cavalos”.
Alguns chegaram a comparar o uso de agrotóxicos nas plantações com o uso de remédios e de vacinas. “A diferença entre um veneno e um remédio é a dose”, afirmou Marcel van Hattem (Novo-RS). “Daqui a pouco vão dizer que aspirina é veneno, que a vacina é veneno”. Curiosamente, em 2020, no auge da pandemia, o governo federal recusou vacina da Pfizer pela metade do preço pago por Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia.
O relator da matéria, Luiz Nishimori (PL-PR), foi na mesma linha: “Os pesticidas são remédios para as plantas e a salvaguarda nos plantios”. Ele tem interesse direto na aprovação, uma vez que foi presidente da Mariagro Agrícola Ltda, hoje em nome de sua mulher, Akemi Nishimori. Outra empresa, a Nishimori Agrícola, está em nome de dois filhos. O Tribunal de Justiça do Paraná considerou, em 2015, que as empresas da família pertencem ao mesmo grupo. “Eu peguei o Covid ontem. Não queria ser medicado, mas precisei. A planta é a mesma coisa”, acrescentou.
As posições dos ruralistas e de seus aliados vão na contramão de dezenas de instituições científicas, de órgãos técnicos, de representantes do sistema de saúde e de organizações da sociedade civil, que se posicionaram contra o PL. Entre eles estão a própria Avisa, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Instituto Nacional do Câncer (Inca), a Organização das Nações Unidas (ONU), a Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal e do Trabalho.
“Ficou evidente quem eram os interessados na aprovação”, discursou Nilto Tatto (PT-SP). “O deputado Nishimori sabe muito bem que são as grandes corporações, os latifúndios”. O petista lembrou que durante a gestão Bolsonaro mais de 1.500 agrotóxicos foram liberados. “E o custo para a produção na agricultura continua aumentando”.
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas. |
Foto principal (Greenpeace): Câmara decidiu flexibilizar ainda mais o uso de agrotóxicos no país
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