Enquanto a fronteira entre Mato Grosso do Sul, no Brasil, e o departamento de Amambay, no Paraguai, se destaca pelo tráfico de drogas, a divisa entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este é a principal rota para produtos contrabandeados. Em 2016, a Receita Federal apreendeu o equivalente a US$ 67 milhões em mercadorias na região da Tríplice Fronteira. Estima-se que existam mais de 300 portos clandestinos operando no Rio Paraná, incluindo o lago da Usina de Itaipu. Nos dois casos há conexões com o universo agrário.

Com o aumento na fiscalização na Ponte da Amizade desde 2006, boa parte do fluxo de cigarros, drogas, armas e medicamentos migrou para os pequenos botes que atravessam diariamente o rio. Mesmo assim, no ano passado foram apreendidos o equivalente a US$ 4,8 milhões em produtos contrabandeados pela ponte binacional. Entre esses produtos estão os agrotóxicos. Do Brasil para o Paraguai e, principalmente, do Paraguai para o Brasil.

O Paraguai tem se tornado um laboratório de testes para venenos agrícolas, como adiantamos em reportagem do eixo Subimpério: “Brasileiros protagonizam conflitos agrários no Paraguai”. Isso inclui produtos proibidos no Brasil. Em 2016, o jornal gaúcho Zero Hora veiculou reportagem mostrando a facilidade com que agrotóxicos podem ser encomendados em Ciudad del Este.

Em uma das empresas visitadas pela equipe, um funcionário apresentou uma lista especial para brasileiros, contendo nomes dos agrotóxicos no Paraguai com seu nome correspondente no Brasil. Uma forma de driblar a legislação restritiva imposta pelo Ministério da Agricultura à importação de insumos agrícolas. Realizadas sem a apresentação da receita agronômica exigida pela lei brasileira, essas vendas incluem agrotóxicos como o Benzoato de emamectina e o Imidacloprido, que tiveram traços encontrados em alimentos comercializados na Central de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa), em Porto Alegre.

NEGÓCIOS À CARTES

Mapeamento da origem do contrabando no Brasil cita empresas do Grupo Cartes. (Imagem: Câmara dos Deputados)

Mas nenhum nome brasileiro pode competir em importância com o de Horacio Cartes. Multimilionário, dono de fazendas e do maior grupo empresarial do Paraguai, o presidente estende seus tentáculos – segundo parlamentares brasileiros – pelas fronteiras com o Mato Grosso do Sul e com o Paraná, por onde entra grande parte do contrabando de cigarros, medicamentos e eletrônicos.

Quem diz isso é o relatório final da CPI da Pirataria – investigação realizada em 2004 pela Câmara dos Deputados para apurar a origem dos produtos contrabandeados no Brasil. Ali foi apontado que uma das empresas do Grupo Cartes, a Tabacalera del Este S.A. (Tabesa), maior fornecedora de cigarros do Paraguai, respondia por 41,9% do mercado paralelo de cigarros no Brasil. O presidente negou as acusações.

Cartes era uma figura secundária na política até assumir a presidência do país em 2013, pelo Partido Colorado – o mesmo do ditador Alfredo Stroessner. Ao chegar ao poder ele escondia um longo histórico de acusações e processos judiciais. Sua ficha criminal foi misteriosamente perdida durante o governo de Nicanor Duarte (2003-2008), que teve sua campanha eleitoral em grande parte financiada pelo Grupo Cartes.

Em 1989, Cartes passou 60 dias preso por evasão de divisas. Em 1996, respondeu a processo por falsidade ideológica e estelionato. Em 2000, foi acusado de homicídio culposo em um acidente de trânsito. No mesmo ano, foi encontrado um avião de matrícula brasileira com 20 quilos de cocaína e 343 quilos de maconha prensada na fazenda La Esperanza, de sua propriedade, localizada no distrito de Capitán Bado, fronteira com Coronel Sapucaia (MS). Segundo sua defesa, a aeronave fez um pouso de emergência na área e não havia ligação com Cartes.

Horacio Cartes já foi preso por evasão de divisas. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Cartes é um dos maiores latifundiários do Paraguai. No relatório da Oxfam – base para a lista do observatório sobre os maiores latifundiários brasileiros no Paraguai – o Grupo Cartes figura em 15º lugar, com 34.400 hectares. Críticos do governo dizem que o presidente tem muito mais. Nessa lista o conglomerado aparece com a Ganadera Chajá, no departamento de Boquerón, e com a empresa Ka’aguy Pora S.A., no departamento de Alto Paraguay.

Esses dois departamentos (os equivalentes dos estados brasileiros) ficam no Chaco, a região Oriental do Paraguai, menos populosa, com maior percentual de população indígena e – ainda – com mais florestas. As culturas nessa região, em especial a pecuária e a soja, são ameaças à sobrevivência dos povos indígenas que ainda vivem isolados. Esse será o tema do próximo eixo da série De Olho no Paraguai: os Invasores do Chaco.

ENTRE PARENTES E AMIGOS

Nos anos 1990, Cartes comprou uma fazenda pertencente a Milton Machado. O brasileiro era investigado por tráfico de drogas pelo Departamento de Investigações sobre Narcóticos dos Estados Unidos (DEA), após aviões carregados de cocaína terem sido interceptados no local. Machado era amigo íntimo de Stroessner. Durante a farra com as terras públicas promovida pelo ex-ditador, o brasileiro recebeu 49 terrenos.

Em 2002, Cartes comprou mais de 12 mil hectares do brasileiro Fahd Jamil Georges, considerado um dos líderes do tráfico de drogas em Pedro Juan Caballero, associado ao grupo de Fernandinho Beira-Mar. Mais recentemente, em 2016, o tio do presidente, Juan Domingo Viveros Cartes, foi detido sob acusação de tráfico de drogas.

Empresas de Cartes têm terras no Chaco. (Foto: Daniel Santini)

O Grupo Cartes reúne 30 empresas. Nove delas foram adquiridas após a ascensão de seu dono à presidência do Paraguai. Além de indústrias e distribuidoras de cigarro, Horacio Cartes possui fazendas de criação de gado, indústrias de bebidas, hotéis e o tradicional clube de futebol Libertad. A empresa mais célebre do grupo, no entanto, é o Banco Amambay.

Considerado um dos principais bancos privados do país, o Amambay foi, por muitos anos, dirigido por Ramón Telmo Cartes, pai do presidente paraguaio. Em 2013, uma denúncia do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos colocou o banco no centro de um escândalo de lavagem de dinheiro. Através de uma offshore nas Ilhas Cook, os dirigentes do Amambay teriam evadido mais de R$ 321 milhões, segundo estimativas da 2ª Vara Criminal Federal em Curitiba.

Entre janeiro e novembro de 1996, diretores do banco – com a ajuda de agentes das transportadoras de valores TGV e a Prossegur – montaram um esquema fraudulento onde carros-fortes levavam dinheiro vivo sacado na Tesouraria do Banco do Brasil em Foz do Iguaçu para a sede do Amambay, em Ciudad del Este.

Os carros transitaram livremente pela Ponte da Amizade por 413 vezes sem apresentar declaração de porte de valor em espécie à Receita Federal. O dinheiro era então enviado para o Amambay Trust Bank Ltd nas Ilhas Cook, um banco de fachada criado para lavar o dinheiro oriundo do tráfico de fronteira.

O Ministério Público Federal denunciou seis executivos do Banco Amambay por formação de quadrilha e evasão de divisas. Entre eles estavam uma diretora do banco, Guiomar de Gásperi Chaves, e Ramón Telmo Cartes, falecido em 2011. Ele era pai de Horacio Cartes. Os executivos foram absolvidos em 2009, por falta de evidências.

GRILAGEM E DISPUTA COM CAMPONESES

Guiomar de Gásperi é filha de Gustavo de Gásperi, célebre jurista paraguaio. Latifundiário. Falecido em 2015, ele recebeu homenagem póstuma da Asociación de Productores de Soja, Cereales y Oleaginosas del Paraguay (APS), que o chamou de “grande defensor da democracia”. Mas as terras ocupadas pela família De Gásperi no distrito de Capiibary, no departamento de San Pedro, são alvo de uma antiga disputa com movimentos camponeses.

Camponeses acusam família De Gásperi de ordenar batidas policiais no assentamento Tapiracuái Loma. (Foto: EA)

Segundo lideranças camponesas, os 5 mil hectares da Estancia Panambí são terras griladas há mais de 30 anos, cujos títulos foram falsificados durante a ditadura de Stroessner. Em sua defesa, De Gásperi afirmava que a pressão dos camponeses era uma vingança pessoal do então presidente Fernando Lugo (2009-2012), em virtude de suas críticas ao governo da Frente Guasú.

Em 2013, sem ordem judicial, mais de 400 policiais invadiram o assentamento Tapiracuái Loma, vizinho da propriedade de Gustavo De Gásperi, e desalojaram 300 famílias. Eles destruíram uma escola rural reconhecida pelo Ministério de Educação. Alguns meses depois, em janeiro de 2014, oito camponeses foram detidos pela polícia. Eles alegam terem sido torturados.

As lideranças locais acusaram Gustavo de Gásperi de se valer da proximidade de sua filha Guiomar com o presidente Cartes para ordenar a remoção dos camponeses que lutavam pela reforma agrária. Após a morte de Gustavo de Gásperi, há dois anos, a família passou a arrendar trechos da propriedade a colonos brasileiros, que agora herdam o conflito com os camponeses.

Reportagem atualizada em 19/02/2020