Relatório feito após visita ao MS critica juízes federais, governos e desmonta argumentos dos fazendeiros; confira trechos mais importantes
Por Izabela Sanchez – de Campo Grande
Ligado diretamente à Presidência da República, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) pode representar mais um peso na balança de poder que envolve a situação dos índios Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul. A entidade esteve em comitiva no Estado entre agosto e setembro de 2016, onde visitou diversas comunidades – reservas, terras ocupadas e acampamentos em beira de estrada. O resultado é um relatório alarmante sobre a realidade dos indígenas no Estado.
Intitulado ‘Tekoha: Direitos dos Povos Guarani e Kaiowá“, o relatório critica o poder público de forma abrangente. Após constatar a fome, a saúde precária e demais violências sofridas pelas comunidades, o Consea afirma que os Guarani Kaiowá vivem uma tragédia humana no Mato Grosso do Sul. O teor de denúncia do relatório não economizou nos detalhes: de juiz ruralista à omissão do governo estadual, passando pela perseguição de pistoleiros aos agentes de saúde da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
O PAPEL DO AGRONEGÓCIO
A presidente do Consea, Maria Emília Lisboa Pacheco, destacou a tradicionalidade da terra para os Guarani Kaiowá. A necessidade que eles têm de matas, com frutos para coleta, plantas medicinais, áreas para plantio da roça familiar ou coletiva. Cultura que eles estão sendo impedidos de viver. “A comitiva constatou um quadro de violência com mortes por assassinato, manifestações de preconceitos e violação de direitos humanos, em especial o Direito Humano à Alimentação Adequada”, diz o relatório. “Uma verdadeira tragédia humana!”
A presidente do Consea critica o que chamou de “expansão do agronegócio, com um alto nível de degradação ambiental e contaminação por agrotóxicos do solo e dos mananciais”, além do “confinamento a que estão submetidos esses povos”. Para a entidade, a questão só tem uma resposta: demarcação e titulação de terra, a garantia do Direito Humano à Alimentação e o acesso a políticas públicas, “em conformidade com as cláusulas de nossa Constituição cidadã”.
O documento também destaca a história da colonização do Estado, e critica a marginalização dos índios durante o processo. Desde 1920, época da criação dos “aldeamentos” pelo Estado, as diminutas áreas reservadas para a população Guarani:
– Entre os anos 50 e 70, a expansão do agronegócio no Centro-Oeste brasileiro deu-se por meio da expulsão dos povos indígenas Guarani e Kaiowá de suas terras tradicionais, que contou com o apoio e o incentivo governamental das três esferas (União, estado e município) e dos três Poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo), demonstrados objetivamente por meio da autorização da emissão de títulos de propriedade para terceiros, pela impunidade dos crimes cometidos contra os povos indígenas do estado e pela ausência de políticas públicas adequadas de saúde, educação e alimentação.
Para a presidente, a violação aos direitos territoriais dos índios continua até hoje, e pode ser ilustrada pela “consumação de interpretações jurídicas preconceituosas e parciais em prol dos interesses econômicos locais”.
EM SEIS MUNICÍPIOS, A MESMA TRAGÉDIA
O relatório deu atenção especial a situação das crianças Kaiowá, que enfrentam, entre outras adversidades, a desnutrição, a falta de políticas de saúde e a marginalização da educação pública. O Consea cita dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) para relatar a desnutrição de crianças menores de 5 anos. No município de Antônio João, por exemplo, as crianças apresentaram um déficit de altura em relação à idade de 24,6%:
– As áreas de retomada/acampamentos indígenas apresentam o pior quadro de vulnerabilidade social. De acordo com dados disponibilizados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, há uma média anual de 250 crianças indígenas menores de cinco anos com déficit nutricional (baixo peso e muito baixo peso) de um total de 6.194. Estes números não se restringem apenas às crianças indígenas.
A comitiva visitou seis municípios de Mato Grosso do Sul e diversas comunidades. Em Rio Brilhante, o Consea esteve na comunidade Laranjeira Nhande Ru, que existe há 9 anos e integra o Grupo de Trabalho Brilhante Peguá II da Fundação nacional do Índio (Funai), que realiza estudos demarcatórios. Trinta e seis famílias ocupam uma área aproximada de 15 hectares, de acordo com o documento.
O local, no entanto, fica em uma Área de Preservação Permanente (APP). “No local em que se encontram, não possuem acesso a água potável, tampouco a espaço adequado para formação de roças de subsistência”, cita o relatório. Os indígenas sobrevivem de trabalhos esporádicos, como diaristas, e da coleta de material reciclável.
AGROTÓXICOS CEGARAM BEBÊ
Entre as violências percebidas pela comitiva está o despejo de agrotóxicos sobre as comunidades. Os venenos, conforme os relatos, causam doenças e os Guarani Kaiowá recebem atendimento precário da Sesai. O relatório do Consea aponta “desrespeito à distância mínima recomendada para a aplicação de agrotóxicos, causando a contaminação dos córregos e de crianças pela pulverização, que, inclusive, atingiu um bebê que perdeu a visão de um dos olhos”.
Os indígenas relataram aos membros da comitiva a dificuldade de acesso a alimentos “devido à impossibilidade de plantio de roça, pesca e caça em função da proibição do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama)”. E também a interrupção, há aproximadamente dois meses, do fornecimento de cestas de alimentos para crianças e mulheres gestantes.
Outra situação descrita pelos povos indígenas é a falta de acesso ao transporte escolar dentro das comunidades, especialmente em dias de chuva. As crianças, obrigadas a percorrer o caminho a pé, são vítimas constantes de atropelamento.
“UM AMBIENTE RACISTA”
A comitiva também visitou o município de Caarapó, onde percorreu a Reserva Tey Kue e a terra ocupada pelos índios em 2016. Foi esse o cenário do assassinato do agente de saúde Clodiodi Aquileu Rodrigues, no dia 14 de junho. Em todas as comunidades o Consea se deparou com os mesmos problemas: diminuição ou paralisação do envio de cestas básicas, ausência de documentos dos indígenas, dificuldade de acesso às escolas.
Segundo a presidente do Conselho, as retomadas representam a situação mais caótica. Os Guarani Kaiowá relataram uma rotina de falta de água para beber, contaminação por agrotóxicos e falta de alimentos. Tudo isso além da omissão do poder público: ausência de poços artesianos e um número pequeno de famílias cadastradas em programas como o Bolsa Família, federal, e o Vale Renda Indígena, estadual.
Os Guarani Kaiowá também relataram à comitiva perseguições e insegurança constante em meio às fazendas, onde veem seu direito de ir e vir prejudicado. Para o Consea, Mato Grosso do Sul representa um ambiente racista para os índios. O racismo denunciado pelos índios é ilustrado por situações humilhantes: dificuldade de arrumar emprego, ou de serem atendidos pelos postos de saúde; e até a dificuldade de conseguirem atestados quando estão doentes.
Em uma das aldeias visitadas, o grupo ouviu um relato de racismo institucional no ambiente escolar. Um diretor de escola teria humilhado publicamente estudantes do ensino médio, chamando-os de “índios fedidos”. Até os funcionários da Sesai destacaram total insegurança ao visitarem as retomadas. Isso porque, conforme o relatório, são ameaçados por seguranças contratados pelos fazendeiros.
O DESPEJO DE BUMLAI E O CONFINAMENTO
O Consea constatou que as aldeias e reservas tornaram-se insustentáveis para o bem estar dos indígenas. O espaço irrisório desses locais não é suficiente para que as famílias morem, plantem e estabeleçam sua cultura tradicional. As consequências da marginalização dos índios também foram denunciadas: os Guarani e Kaiowá são cada vez mais alcançados pelas drogas, álcool e violências.
A visita a retomadas, comunidades e aldeias nos municípios de Coronel Sapucaia, Amambaí, Antônio João e Dourados constatou algumas situações gritantes. Pore exemplo, Apyka’i. Trata-se de uma comunidade na beira da BR-463, próximo de Dourados, onde vivem, improvisadas em barracos, cinco famílias. Isto após elas terem sido alvos de reintegração de posse cumprida pela Polícia Federal, por ordem do Juiz Fábio Kaiut Nunes, da 1ª Vara Federal de Dourados, em julho de 2016.
Antes, Apyka’i era composta por nove famílias que ocupavam parte da fazenda Serrana, área da Usina São Fernando, arrendada pelo pecuarista José Carlos Bumlai, preso desde 2015 na Operação Lava Jato. Desde que foram despejadas para a beira da estrada, oito crianças indígenas já teriam sido atropeladas. Diz o relatório do Consea:
– As famílias vivem em moradias de lona e madeira sem energia elétrica e água potável e sem estrutura para cozimento de alimentos, tendo disponível pequena quantidade de gravetos para acender o fogo. Além desses problemas, as crianças estão expostas ao risco de atropelamento na rodovia, pois já ocorreram oito mortes de crianças por esse motivo, segundo relatos.
JUÍZES RURALISTAS
O Consea reuniu-se em setembro com dois juízes federais em Mato Grosso do Sul, Moisés Anderson da Silva e Fábio Kaiut Nunes. Segundo o Conselho, os magistrados representam parcialidade e defesa da propriedade privada. O relatório destaca o trabalho do magistrado Fábio Kaiut, juiz substituto da 1ª Vara Federal de Dourados:
– O entendimento jurídico amplamente adotado nas decisões da Comarca de Dourados, inclusive nas liminares concedidas, tem sido pautado preponderantemente na defesa do direito à propriedade privada, que é considerado um instituto jurídico legítimo. Segundo os juízes federais, o Estado brasileiro concedeu os títulos de posse da terra aos proprietários atuais. Na perspectiva da 1ª Vara, a revisão dessa titularidade em favor dos povos indígenas Guarani e Kaiowá feriria o princípio da segurança jurídica, pois anularia atos jurídicos.
Os juízes relataram ao grupo que as propriedades rurais incidentes nas terras reivindicadas são de “agricultores de pequeno porte, que teriam cerca de 30 hectares de terra por título de posse”. “De acordo com essa linha de interpretação jurídica”, observa o relatório, “ocorre no Mato Grosso do Sul um conflito entre pequenos agricultores, cujos direitos são considerados legítimos, e indígenas, que atuam de forma ilegal ao invadir essas ‘pequenas’ propriedades privadas”.
O Consea rebate essa opinião:
– Foi perceptível ao longo das visitas que se trata de grandes propriedades de soja e de cana-de-açúcar destinadas à exportação de commoditties. (…) A tese adotada pela Comarca de Dourados desconsidera os direitos territoriais indígenas garantidos pela Constituição Federal e se pauta exclusivamente no direito à propriedade privada.
O Conselho Guarani Kaiowá Aty Guasu entregou uma carta aos membros da comitiva, na qual denunciam a “perseguição” do juiz Fábio Kaiut Nunes, que forçaria a polícia a cumprir ordens de despejo “mesmo quando a polícia entende a ação como excessiva e não quer cumprir”. Segundo o relatório, “fica evidente que os princípios da imparcialidade e do contraditório são negligenciados nas ações que tramitam na referida comarca, comprometendo a segurança jurídica defendida pelos próprios magistrados”.
GOVERNO DO MS É OMISSO
O grupo também se reuniu com o Ministério Público Federal (MPF-MS) e com secretarias estaduais: Secretaria de Governo e Secretaria Estadual de Direitos Humanos, Assistência Social e Trabalho (Sedhast). Para o Consea, a posição do governo estadual é a mesma da Justiça Federal de Dourados. O documento expôs a opinião do secretário de governo Eduardo Riedel, ex-presidente da Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), braço direito do governador Reinaldo Azambuja (PSDB):
– Riedel defendeu que os fazendeiros possuem direitos igualmente legítimos aos direitos dos indígenas, pois o Estado ratificou os títulos de propriedade emitidos aos fazendeiros. Alegou ainda que os fazendeiros podem ser considerados agricultores familiares, pois suas propriedades não ultrapassam 30 hectares.
O relatório observa que, diante disso, o governo entende não ser possível atender integralmente ao modelo territorial proposto pelos Guarani Kaiowá. O governo também afirma que algumas organizações de defesa dos direitos indígenas têm fomentado uma “política de conflito”. O Consea rebate novamente a afirmação de que o conflito envolve pequenos proprietários. E faz mais críticas ao governo: “pesar desse Inquérito Civil, o governo estadual deixou de entregar cestas de alimentos para famílias que residem em áreas de retomada, alegando que vivem em áreas não regularizadas”.
O MPF-MS e a Defensoria Pública da União ingressaram na Justiça contra a União e o governo do Estado, neste mês, para garantir o fornecimento mensal das cestas básicas aos indígenas. “No entendimento do MPF, a decisão do governo estadual é uma ação discriminatória, visto que a garantia de direitos fundamentais é obrigação do Poder Público, independentemente da situação fundiária das populações”, enfatiza o relatório.
Para o Consea, a Subsecretaria de Políticas Públicas para a População Indígena, vinculada à Sedhast, falha na representatividade: “A comitiva percebeu que a representação indígena que compõe o quadro de recursos humanos dessa subsecretaria é majoritariamente do povo Terena que possui uma realidade socioeconômica distinta da situação vivida pelos povos Guarani e Kaiowá”.
CRIANÇAS DESNUTRIDAS
A comitiva também visitou espaços da saúde indígena, como a Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai), onde constatou situação de vulnerabilidade de recém nascidos:
– Crianças com baixo peso ao nascer devem receber atenção à saúde por profissionais especializados(as), em locais estruturados para o tipo de cuidado necessário. Não foi o que a comitiva observou e ouviu durante a visita à Casai, demonstrando uma conduta omissa da saúde do município, onde um prematuro (nascido com menos de 39 semanas) de baixo peso (menor que 2.500 kg) 45 foi entregue à Casai com sua mãe adolescente e inexperiente, local sem a menor estrutura para o cuidado de neonatos e puérperas.
Conclusão do Consea: uma tragédia humanitária.
– A comitiva concluiu que a realidade vivida pelos povos Guarani e Kaiowá pode ser denominada como uma tragédia humanitária e denota explicitamente a negação sistemática de direitos humanos em função da omissão do Poder Público. Foi possível constatar em todas as comunidades visitadas a ocorrência de fome e desnutrição, a precariedade do acesso a saúde, a água e a educação, a ausência de documentação civil, um constante sentimento de medo de ataques violentos por ordem dos fazendeiros da região e uma forte criminalização das lideranças indígenas que resistem e reagem aos abusos de poder dos órgãos de polícia.
O Consea finaliza afirmando que a demarcação das terras indígenas é “a condição primária para a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada dos povos indígenas Guarani e Kaiowá do Cone Sul do Mato Grosso do Sul e para o acesso a todas as políticas públicas previstas no Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional”.
Elogios, somente para os indígenas. Para a comitiva, os Guarani Kaiowá apresentam “sentimento e a atitude firme de resistência e forte disposição de continuar lutando por seus direitos, bem como a convicção do direito ao território e das garantias constitucionais apesar de todas as adversidades e retrocessos”.
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