Por meio do beneficiamento de frutos como baru, pequi e jatobá, camponesas de Anastácio conquistam independência financeira; apesar do potencial econômico, Cerrado continua sendo devastado no Mato Grosso do Sul
Por Sara Almeida Campos, em Anastácio (MS)
Dono da maior concentração fundiária entre as 27 unidades da federação e palco de um dos principais conflitos indígenas da América Latina, o Mato Grosso do Sul parece um foco improvável para iniciativas que buscam o resgate e a valorização de ingredientes tradicionais do Cerrado. Mas é em Anastácio, município dominado pela pecuária, que um grupo de assentadas da reforma agrária vem mostrando o potencial do agroextrativismo e dos frutos nativos na geração de renda local. A cidade abriga uma das principais unidades de processamento da JBS no estado. Com menor visibilidade, as camponesas mostram seu protagonismo.
A Associação de Mulheres do Assentamento Monjolinho (Amam) nasceu em 1990 a partir da necessidade de registrar a comunidade no Programa do Leite, durante o governo de José Sarney. “Para conseguirmos leite para as crianças e grávidas a gente tinha que fazer um cadastro”, relembra Maria da Penha Macedo da Cruz, uma das fundadoras da Amam. “Foi aí que nos juntamos para formar nosso clube de mães”.
Dois anos antes, o grupo ocupara uma região até então improdutiva, que deu origem ao Monjolinho, o primeiro assentamento de reforma agrária titulado no Mato Grosso do Sul. “Abrimos caminho com facão e enxada”, conta a camponesa Izabel de Souza. “Foi difícil, mas a gente conseguiu. Graças a Deus tudo deu certo. Todo dia é uma nova batalha”.
Nos anos 2000, o grupo decidiu aproveitar a organização formalizada para gerar renda além da agricultura de subsistência, na época com pouca expressividade na região. As agricultoras iniciaram o artesanato em crochê e a pintura em panos de prato, mas a rentabilidade era muito baixa. Foi então que as mulheres encontraram, na própria paisagem em que viviam, em meio ao Cerrado sul-mato-grossense, a solução para garantir uma maior autonomia financeira.
A região era ocupada por carvoarias que utilizavam o cumbaru – árvore comum em todo o bioma – como matéria-prima, ignorando completamente o potencial gastronômico e nutricional de seu fruto, o baru. Maria da Penha conta como foi:
– Começamos a fazer a torra e utilizamos a amêndoa para preparar farinha e pães. Também extraímos o óleo. Não tínhamos o costume de consumir o baru, mas disseram para nós que ele fazia bem à saúde das crianças, que começaram a ser curadas de infecções. Depois de ver isso na prática, arregaçamos as mangas.
A iniciativa deu origem a uma nova fase para as mulheres do Assentamento Monjolinho. Por meio da Amam, as agroextrativistas passaram a beneficiar outros ingredientes do Cerrado, como o jatobá, a bocaiúva e o pequi. A comercialização de pães e outros produtos é garantida por políticas públicas direcionadas ao abastecimento de mercados institucionais pela agricultura familiar, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), sendo a principal fonte de renda e empoderamento das integrantes da Amam.
O Cerrado é o principal bioma do Mato Grosso do Sul, cobrindo 61% do território do estado, mais conhecido pelo Pantanal. É também o mais ameaçado: 76,1% da cobertura vegetal original do Cerrado sul-mato-grossense já foi completamente degradada em função da expansão da pecuária e das monoculturas. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), até 2010 o estado perdeu 164.448 km² de Cerrado, uma área maior que o estado do Acre.
Em Anastácio não é diferente. De acordo com dados da plataforma MapBiomas, o município possui 158 mil hectares de pastagens e um rebanho de 288.994 cabeças de gado bovino – uma média de 11 bois por habitante. Ao todo, a atividade agropecuária ocupa 62,3% da área de Anastácio.
A localização estratégica, no meio do caminho entre o Pantanal sul-mato-grossense e a capital Campo Grande, atraiu a instalação, em 2014, de uma unidade do frigorífico JBS, centralizando o processamento de carne na região pantaneira, onde estão 3 dos 20 maiores rebanhos bovinos do país: Corumbá, Aquidauana e Porto Murtinho.
Em outubro de 2017, a suspeita de prejuízos aos cofres do estado causados pelo frigorífico, levantada durante a CPI das Irregularidades Fiscais e Tributárias, levou ao bloqueio de R$ 730 milhões da JBS, que respondeu paralisando o abate em suas sete unidades. Temendo demissões em massa, centenas de funcionários protestaram em frente da Prefeitura Municipal de Anastácio. Manifestações semelhantes se replicaram em outros municípios, forçando o governo sul-mato-grossense a desistir da queda de braço e negociar um acordo com a empresa dos irmãos Wesley e Joesley Batista.
Os pecuaristas de Anastácio têm poder econômico e político. O prefeito Nildo Alves (PSDB-MS), em sua declaração de bens à Justiça Eleitoral, listou 11.442 cabeças de gado e sete fazendas. Mas o município tornou-se conhecido por outro produto: a farinha de mandioca, herança de migrantes nordestinos que chegaram na região na década de 1940. A Farinha do Pulador já cativou a mesa dos sul-mato-grossenses e é o tema do principal evento turístico de Anastácio, a Festa da Farinha, que atraiu cerca de 15 mil visitantes em sua última edição.
Os frutos do Cerrado, foco de trabalho das 15 agricultoras da Amam, caminham para atingir a mesma popularidade: também em Anastácio, o Grupo Baru, do assentamento São Manoel, vem expandindo a comercialização e chegando a novos públicos.
As iniciativas de resistência e preservação do Cerrado – de seus frutos, seus costumes, sua gente – frente ao avanço do agronegócio serão tema de uma nova editoria do observatório De Olho nos Ruralistas. Construída a partir de uma rede de correspondentes nos 11 estados que formam o bioma, a editoria De Olho no Cerrado terá como foco as ameaças e as resistências protagonizadas por camponeses e povos tradicionais.
Uma das líderes da Associação de Mulheres do Assentamento Monjolinho, Maria da Penha começou cedo sua luta pela terra. O pai, Dalvino Vieira Macedo, peregrinou com a família por diferentes estados, como Paraná, Espírito Santo e Mato Grosso. “Percorremos vários lugares colhendo café, mamona, feijão, algodão”, relembra. “Era uma família grande, com oito irmãos. Um dia nunca clareou com a gente dentro de casa. Acordávamos de madrugada pra trabalhar na roça. A gente não estudou. Nossa escola era o cabo da enxada”.
Mesmo com a autonomia financeira, possibilitada pelo beneficiamento do baru, havia outro problema a ser enfrentado. O machismo foi um dos grandes obstáculos para a materialização da sede da Amam. A camponesa perdeu a conta de quantas vezes ouviu de homens de Anastácio que o trabalho com frutos do Cerrado “não ia dar em nada” e que “mulher não ia conseguir erguer a associação”. Durante a obra, materiais de construção foram roubados. “Juntamos dinheiro dia e noite”, conta ela, emocionada com a lembrança da resistência. “Depois a gente conseguia repor cada material tirado da gente”.
Izabel de Souza, outra das lideranças, tenta superar a morte da filha, Rita de Souza. Em 2016, a estudante de engenharia foi mais uma vítima entre as estatísticas de feminicídio. “Tudo me lembra ela, até a sede da associação”, ressalta a agricultora, responsável por garantir as refeições durante os dias de produção. “Foi ela quem projetou todo esse espaço e não viveu a tempo de ver tudo isso pronto”.