Roteiro de missionários incluiu construção de pistas de pouso clandestinas, contrabando de sementes e viagens sem autorização em busca das etnias a serem convertidas; na guerra de propaganda, valeu até fraude em documentário
Por Leonardo Fuhrmann
Em seu diário, o missionário Nivaldo Oliveira de Carvalho, da Jocum, contava sobre viagem feita em 1995 rumo a territórios de indígenas isolados no Alto Rio Piranha, na Amazônia. “O diabo não esta satisfeito em perder terreno para nós e vai tentar o que estiver ao alcance para nos fazer recuar, voltar atrás”, escreveu. “Mas em nome do Senhor Jesus Cristo continuaremos até o tempo determinado pelo Senhor. Neste local, certamente nem a Funai, nem a Polícia Federal poderá nos encontrar”.
Terão sido republicanas as iniciativas da Jovens Com Uma Missão (Jocum), a ONG à qual pertence a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves?
A presença de missionários da organização tem sido apontada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) nos últimos anos como uma ameaça à preservação cultural, à integridade do território e à própria vida dos indígenas Suruwahá, que vivem no sul do Amazonas, na região do Médio Purus, próximo da divisa com Rondônia.
O Ministério Público Federal tenta, desde 2003, expulsar o grupo evangélico do local, sem sucesso. A presença dos religiosos é apontada como causa de surtos de gripe e malária, doenças que não haviam atingido este povo. A população Suruwahá, que já é pequena, está em queda: de 145 pessoas, em 2004, para 137.
E tem mais: os missionários são acusados de escravizar indígenas, extração ilegal de sangue, contrabando de sementes (inclusive de mogno, uma das madeiras mais nobres da região) e construção de pistas de pouso clandestinas.
O roteiro da fé ganha toques de aventura, com utilização de radioamador pirata e missões secretas em busca de novos povos isolados. Três jovens missionários foram flagrados pela Funai em 1995 quando tentavam fazer uma expedição ilegal para tentar estabelecer contato com o povo isolado Hi-Merimã.
A Jocum se aproveitou de uma picada que havia sido feita pela Funai em 1983, ano do primeiro contato oficial dos brancos com os Suruwahá. Criticado por ter aberto um varadouro desde o Rio Cuniuá – habitado pelos ribeirinhos – até o centro das malocas, o coordenador da expedição, Sebastião Amâncio, alegou que fizera contato com um grupo missionário que se estabeleceria na região. A Jocum chegou lá dois anos depois.
Há informações da presença deles junto aos indígenas desde a década anterior. A primeira denúncia de furto de madeira data de 1988, quando 284 toras retiradas da área indígena Deni foram avistadas boiando no Rio Cuniuá. O responsável pelo desmatamento seria um missionário chamado Kelk, da Jocum (inicialmente identificada como Jovum), e Zena de Oliveira Lopes, o Zena Alecrim. Naquela época, a Funai já identificara quatro pistas de pouso dos missionários dentro de territórios indígenas.
No início dos anos 2000, uma nova denúncia contra a Jocum partiu da Associação Jupaú, do povo Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. Segundo os indígenas, os missionários estavam comercializando ilegalmente sementes de mogno no exterior. A Jocum alegou que as operações faziam parte de um convênio com a Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa), que não se manifestou sobre o assunto.
As denúncias de que os missionários tentavam abordar (e converter) indígenas isolados veio na década de 1990. Os diários de Nivaldo Carvalho, aquele do “nem a Polícia Federal poderá nos encontrar”, e de outros missionários foram apreendidos quando eles foram flagrados em território dos Hi-Merimã. Legalmente, a abordagem aos grupos isolados só pode ser feita pela Funai.
Os missionários do grupo já haviam sido flagrados na cabeceira do Rio Branco tentando fazer contato clandestino com os Hi-Merimã no início dos anos 1990. Uma correspondência interna da Funai mostra que os missionários tinham se instalado junto a essa etnia em meados dos anos 1980, sob o argumento de que não necessitavam de autorização porque a área indígena ainda não estava demarcada.
A Jocum alegou na ocasião que buscava os indígenas porque um grupo deles havia saído da mata e feito contato espontâneo com os ribeirinhos. Teriam chegado a morar com uma família, que teria assassinado todos os adultos do grupo, e permanecido com as crianças. Os missionários alegam que foram buscar o contato com os Hi-Merimã para reaproximar os órfãos do grupo.
A prática entre esses religiosos é comum até hoje. Em dezembro, a Funai interrogou o missionário batista estadunidense Steve Campbell, financiado pela Greene Baptist Church. Para chegar ao local, ele cooptou indígenas Jamamadi, que participaram de uma expedição da Funai em setembro. Mesmo sem autorização para morar no local, a família de Campbell tem pista de pouso própria na terra desta etnia e fala seu idioma. Costuma dificultar o acesso de outros brancos ao local e perseguir possíveis adversários. Nascido nos Estados Unidos, o missionário chegou a solicitar à Funai um Registro Administrativo de Nascimento Indígena para ser reconhecido como Jamamadi.
Em audiência pública na Câmara, em dezembro de 2005, o então vice-presidente da Funai, Roberto Aurélio Lustosa Costa, apontou o contato como uma das principais causas de doenças entre os povos originários. “O que os destruiu, em grande parte, foi o contato com a sociedade civilizada”, afirmou. “De todas as doenças citadas, 90% são doenças de civilização, adquiridas após o contato. É evidente que a medicina tradicional desses índios jamais alcançará as doenças de civilização, muitas vezes males trazidos por mudanças na alimentação, pelo contato, pela inexistência de anticorpos”.
Ao longo da audiência, a representante da Jocum, Bráulia Ribeiro, defendeu a necessidade de contato com os indígenas para diminuir os problemas de saúde de origem genética, provocados por casamentos consanguíneos. Lustosa demonstrou preocupação com isso: “Estou pressupondo que a Jocum planeje, em algum momento, levar esses índios a se relacionarem com outras comunidades para quebrar esse isolamento genético. Isso seria temerário. Ainda não temos conhecimento de um plano nessa ordem, mas gostaríamos de ser informados se houver algum encaminhamento nessa direção”.
Para falar sobre os riscos do contato indiscriminado com povos isolados, o dirigente da Funai usou o exemplo de um grupo isolado na região do Rio Pardo, na fronteira entre Pará e Mato Grosso:
– Refiro-me a um grupo de cerca de 20 índios que está isolado e ameaçado de extermínio. Esse grupo era constituído por 30 ou 40 índios; muitos deles talvez já tenham sido alvejados por pessoas que estão grilando e loteando aquela terra. Nossa equipe encontrou marcas de loteamento de madeira com os nomes dos pretensos proprietários. Apreendemos um grupo de pessoas naquela área indígena com bombas de efeito moral. Esse episódio foi divulgado na mídia. Essas pessoas queriam impedir a sobrevivência desses índios, porque estavam interessadas naquela terra.
Ele finaliza o trecho da seguinte forma: “É possível que essa população tenha caído em função de todo esse assédio”.
A proteção à saúde e o combate ao suicídio, comum na cultura dos Suruwahá, são os argumentos usados pela Jocum para permanecer irregularmente junto aos indígenas desde os anos 1980. No entanto, a presença dos brancos é apontada por antropólogos como o principal motivo para as últimas ondas de suicídios. Foram 38 casos entre 1980 e 1995.
Além disso, os missionários incitam os indígenas a resistir aos contatos da Funai e da Fundação Nacional da Saúde (Funasa), onde funciona uma Secretaria Especial de Saúde Indígena.
Para continuar lá, os missionários alegam que fazem parte da família dos indígenas e que continuam porque é da vontade deles. Religiosos como o casal Edson e Márcia Suzuki se aproximaram dos povos indígenas para desenvolver estudos linguísticos. O objetivo do estudo, no entanto, era usar o conhecimento obtido para aplicar na evangelização. Eles chegaram a criar uma representação da figura cristã de Jesus e incorporá-la à cultura Suruwahá.
A organização tem parceria com outros grupos evangélicos, como o Movimento Novas Tribos do Brasil, que tem Edward Gomes da Luz como um dos líderes, e a Missão Além Fronteiras, de José Carlos Alcântara. O grupo de Luz é responsabilizado pela morte por gripe de 37 indígenas da etnia Zoé, outro grupo isolado que habita o noroeste do Pará. O Novas Tribos foi expulso em 1991, mas a Funai suspeitava que o grupo continuava atuando na região.
Luz é pai do missionário e antropólogo Edward Mantoanelli Luz, expulso em 2013 da Associação Brasileira de Antropologia por suas posições contrárias aos direitos dos povos indígenas. Ele tem uma empresa de consultoria que faz laudos para contestar demarcações de terras, muitos deles em áreas centrais no debate feito por ruralistas no Congresso. Em um dos casos, foi contratado pelo órgão ambiental do governo catarinense para fazer um laudo contra a demarcação de terras Itaty. Ele não visitou o local para fazer seu estudo e a conclusão já estava pronta antes de chegar ao estado.
Outras acusações graves pesam contra a atuação desses religiosos na floresta. Um missionário dos Estados Unidos que atuava com o Novas Tribos no Amazonas e no Acre foi preso em Orlando com material de pedofilia gravado nas tribos. O acusado admitiu ser o protagonista das imagens com crianças indígenas.
Ligada à Jocum, a organização Atini, que tem a ministra Damares Alves entre seus fundadores, foi criada a pretexto de proteger as crianças indígenas. Um de seus principais alvos é a prática de algumas tribos isoladas de abandonar crianças que nascem com determinados problemas de saúde ou de relações indesejadas. Para justificar essa ação, a Atimi faz um esforço para apresentar o problema como algo comum e generalizado entre as comunidades indígenas. Uma de suas armas é o falso documentário Hakani – a história de um sobrevivente, em que o abandono de uma criança para morrer é encenado como se fosse verdadeiro.
A Justiça Federal retirou o vídeo do ar, a pedido do Ministério Público Federal, por conta da fraude. Os procuradores da República entraram com um pedido para que a entidade pague por dano moral coletivo aos povos originários em razão da divulgação. Eles consideram que a ficção incita o ódio contra os povos originários. A falsificação serviu também de pretexto para que dois deputados federais evangélicos apresentassem um projeto de lei para acabar com o abandono dessas crianças.
O trabalho missionário é desenvolvido junto com outras entidades evangélicas, como a Jocum, criada nos Estados Unidos nos anos 1960 e em atividade na Amazônia desde 1975. A Jocum responde junto com a Atini pela produção do documentário falso.
A organização também é acusada também de retirar clandestinamente indígenas das reservas. O que pode ser caracterizado como sequestro. O argumento para isso costuma ser humanitário: a alegação de que os missionários buscam tratamento de saúde para eles em hospitais de grandes cidades, como São Paulo.
Esse trabalho é utilizado pela entidade em suas campanhas para arrecadação de dinheiro. Mas, além de ilegal, a prática também esconde a acusação de adoções ilegais de crianças. Em pelo menos um caso, o Ministério Público Federal pediu a devolução de uma criança adotada para a tribo de origem. Alguns líderes do grupo, entre eles a própria ministra Damares, se orgulham de ter adotado crianças indígenas.
Após a publicação desta reportagem, o observatório entrevistou um antropólogo que desenvolve trabalho na região, em parceria com a Funai. Ele diz que a população Suruwaha de fato diminuiu durante os anos 2000, mas voltou a crescer a partir de 2008, quando a Funai conseguiu retomar a área e expulsar a Jocum. Ele não relaciona à queda populacional à presença dos missionários: “Os fatores determinantes geralmente estão relacionados a dinâmicas internas da tribo”, afirma. Segundo ele, não há risco de extinção.
O antropólogo não quis se identificar com medo de represálias. Ele conta que ainda existem crianças da etnia sob a guarda da Atini na sede da entidade, em Brasília. Em relação à acusação de desmatamento, o pesquisador sustenta que Kelk não era um missionário, e sim um líder comunitário. “Ele era mais um apoiador e a comunidade dele de fato fazia extração ilegal de madeira da reserva”. Participação direta da Jocum nas atividades extrativistas, ele não viu.
O que ele viu foi sessão de exorcismo. Quando os missionários aplicavam remédio contra a malária nos indígenas, conta o antropólogo, eles simulavam rituais de exorcismo para fazê-los acreditar que tinham poderes mágicos. Em 2000, ainda conforme o relato do pesquisador, os missionários chegaram a levar indígenas convertidos da etnia Maori, da Nova Zelândia, para a simulação desses rituais.