Mais do que uma gafe, fala do titular do Meio Ambiente no Roda-Viva está alinhada com discurso de fazendeiros da UDR, nos anos 80, e inimigos do modelo extrativista; em Xapuri, amigos do sindicalista contam ter ouvido muita coisa parecida
Por Julia Dolce
“As pessoas do agronegócio da região dizem que ele usava os seringueiros para se beneficiar, fazia uma manipulação da opinião”, disparou na segunda-feira o ministro do Ambiente, Ricardo Salles, logo após dizer que não conhecia Chico Mendes, reconhecido oficialmente como um dos Heróis da Pátria. A intervenção do político no Roda-Viva, na segunda-feira, tornou-se conhecida principalmente pela pergunta marcante feita sobre o sindicalista acreano: “É irrelevante, que diferença faz quem é Chico Mendes neste momento?”
De Olho nos Ruralistas propõe uma pergunta adicional: o que diziam os assassinos e perseguidores de Chico Mendes?
Durante o cumprimento de prisão domiciliar, há 10 anos, o assassino Darly Alves afirmou, em entrevista realizada em sua casa, em Xapuri (AC), que se sentia insultado porque, na sua opinião, o seringueiro “não valia nada”. Em outra entrevista, realizada em 2013, seu filho Darci – aquele que disparou o gatilho – se irritou e deu opinião que lembra a noção de tempo do atual ministro de Jair Bolsonaro: “É coisa velha, já passou, é defunto velho”.
O advogado Gomercindo Rodrigues era amigo do seringueiro. Ele relata que já ouviu algumas vezes, da boca de ruralistas, a “versão” apresentada em rede nacional por Salles, que considera desrespeitosa e ideológica:
– Ele reproduz o discurso de assassinos e de seus apoiadores. Se trinta anos depois do assassinato um jornalista pergunta a respeito de Chico Mendes isso já deveria ser percebido por um ministro como algo relevante. Uma pessoa que ocupa este cargo fazendo tal declaração, sem reconhecer a relevância de Chico para o Brasil e o mundo, não deveria estar no governo. É um porta-voz da morte. Mas não temos nenhuma ilusão de que algo será tratado de forma séria neste governo, além dos interesses dos grupos econômicos e dos ruralistas.
Numa das vezes em que ouviu a versão do “outro lado”, Gomercindo estava em Goiânia, no aeroporto de um fazendeiro ligado à União Democrática Ruralista (UDR), Rubens Prata Carvalho. O pai do anfitrião tinha fazenda em Xapuri antes do assassinato de Chico Mendes. Rubiquinho aguardava seu líder, o atual governador goiano Ronaldo Caiado. “Ele não sabia quem eu era, pois só lhe fui apresentado como um advogado do Acre”, recorda-se Gomercindo. “Falou quase a mesma coisa sobre o Chico, depois de lançar vários xingamentos”.
A percepção sobre o discurso de Ricardo Salles é compartilhada pelo jornalista Elson Martins, também amigo do seringueiro assassinado. Ele é um dos fundadores do jornal Varadouro, uma das mais importantes experiências da imprensa alternativa do país, que pautava, principalmente, a resistência dos povos da floresta ao avanço dos latifundiários:
– Eu só esperava uma fala como a do ministro vindo de alguém da UDR. Ele não conhece a vida na Amazônia, não conhece nada sobre a luta dos seringueiros, dos ribeirinhos, dos posseiros e dos índios em defesa da floresta. Chico nasceu e foi criado na floresta, era um homem doce, sincero, honesto. Ele e os seringueiros salvaram o Acre, deixaram um grande legado para a ecologia. O estado inaugurou o discurso ecológico no Brasil. Para quem tem bom senso e humanismo, Chico é uma figura intocável. Ele foi morto exatamente pela UDR e o ministro faz coro a esse assassinato.
Dercy Teles é uma figura histórica do movimento seringueiro por ter sido uma das primeiras mulheres a presidir o Sindicato dos Trabalhadores Rurais nos anos anteriores ao mandato de Chico Mendes. Ela diz que a fala do ministro do meio ambiente reflete “o que há de mais conservador no ruralismo atual”.
Em um evento paralelo de homenagem aos 30 anos sem Mendes, que reuniu cerca de 500 trabalhadores rurais e extrativistas e foi organizado pela STR, a seringueira atualizou a Declaração de Xapuri, reafirmando o comprometimento com a defesa dos ideais e do legado do ambientalista. ela observa que o desafio para a manutenção das reservas extrativistas parece cada vez maior, inclusive o da Resex que leva o nome de Chico Mendes, criada em 1990.
Sem algum projeto de geração de renda para que as comunidades se mantenham por meio do extrativismo, avalia Dercy, a pecuária vai tomando conta do territóio. “Atualmente, a reserva Chico Mendes está ameaçadíssima”, relata. Até o fim de 2017, a Resex Chico Mendes já havia perdido 6,5% de sua área original de 970.570 hectares para a pecuária. “No domingo entraram 15 caminhões boiadeiros dentro dela para retirar gado, e as instituições ambientais nem interferiram”.
O avanço do agronegócio nas reservas acreanas assustam aqueles que compartilharam com Chico Mendes a utopia de um desenvolvimento sustentável. O discurso ruralista ganha cada vez mais coro no Acre. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, foi ali que Jair Bolsonaro teve seu melhor desempenho, com 77% dos votos válidos.
O pleito retirou do poder o PT, que comandava o estado havia 20 anos. Quem assumiu o governo foi Gladson Cameli (PP). Foi durante a campanha em Rio Branco que Bolsonaro prometeu “fuzilar a petralhada“.
Em visita na semana passada a uma plantação de soja de 700 hectares no estado, de propriedade do empresário Jorge Moura, Cameli afirmou que o Acre “está pronto para crescer com o agronegócio”. “Acabou o tempo em que o trabalhador rural era perseguido por querer plantar”, disse.
O governador é um dos sócios da empresa Marmude Cameli, madeireira que briga na Justiça há cerca de 30 anos contra o pedido de indenização dos indígenas Ashaninka, população que vive na fronteira do estado com o Peru. Confira aqui o resumo feito pelo observatório durante as eleições: “Candidato ao governo do Acre tem empresa acusada de retirar madeira de área indígena“.
“O atual governo deixa muito claro que segue a linha do ministro Ricardo Salles e que vai incentivar o agronegócio, esse que acaba com o meio ambiente em todos os sentidos”, afirma a seringueira Dercy Teles. “Não à toa tem acontecido tantos desastres ambientais Brasil afora”.
O advogado Gomercindo Rodrigues conta que já há uma série de conflitos de terra e pedidos de reintegração de posse em reservas extrativistas. “A pressão dos ruralistas sobre o modelo das reservas vem se ampliando”, diz. Alguns dos conflitos ocorrem em Xapuri, onde ele atua em processos judiciais. “Estão usando os mesmos métodos de antes de Chico Mendes, quando os fazendeiros entravam com documentos afirmando que os posseiros são invasores e os juízes concordavam”.
Gomercindo está atuando em dois processos de reintegração de posse. Conta que existem mais três. “Em outra região, do outro lado da reserva, cerca de 80 famílias seringueiras estão sob pressão de ser expulsas de suas casas”, relata.
O jornalista Elson Martins considera o atual governo ainda mais ameaçador do que o da ditadura de 1964, que ele ajudou a combater:
– A coisa está mais brava. O que acontece hoje é uma ameaça a tudo que se conquistou entre 1970 e hoje. Vivemos a retomada da destruição, estão colocando nos principais cargos de decisão pessoas que já estiveram aqui no passado para destruir a floresta. Assassinaram Chico Mendes antes que todo o povo do estado tivesse tomado conhecimento de suas potencialidades e de sua riqueza enquanto moradores da floresta.
Há quase dois meses, no dia 22 de dezembro, encontros, cerimônias e matérias jornalísticas em diferentes partes do Brasil homenagearam os 30 anos do assassinato de Chico Mendes. Alguns dos participantes relataram ao De Olho nos Ruralistas preocupação com o momento político: “Conflitos fundiários no Acre podem voltar ao nível da década de 80”. A reportagem marcou a estreia da editoria De Olho na Resistência.
O sindicalista acreano dá nome ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, autarquia sob as asas do Ministério do Meio Ambiente – comandado por Ricardo Salles.