Neta de Chico Mendes inspira-se em infância nos seringais para defender a Amazônia

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Neta e bisneta, 30 anos após a morte de Chico Mendes. (Foto: Secom/Acre)

Novas gerações, como a da bióloga Angélica Mendes, somam forças para preservar identidade e lutar contra ameaças ao bioma, como o desmonte de conquistas obtidas após o assassinato do líder sindicalista, em 1988

Por Cristina Uchôa e Glauco Faria, em Xapuri (AC)

– Meu querido bisavô Chico Mendes, eu gostaria de ter conhecido você. Mesmo assim, ouvi falar de você, da sua história e sei que você sempre foi importante para o mundo e sempre será. Por sua causa a Amazônia é a maior floresta do mundo. Se não fosse por você aconteceria um desastre. Tomara que as pessoas tenham consciência e tenham aprendido que não podem viver sem a natureza.

Lívia e Angélica em frente da casa de Chico Mendes. (Fotos: Cristina Uchôa e Glauco Faria)

Os trechos acima são da carta que Lívia Mamede Mendes, de 9 anos, leu publicamente no dia 15 de dezembro, data em que Chico completaria 74 anos, diante de mais de uma centena de pessoas emocionadas. Elas se amontoavam em tendas preparadas para abrigar do sol equatorial, mas que serviram para isolar como podiam a força e o barulho de uma chuva torrencial em Xapuri, no Acre. Os 30 anos do assassinato do líder sindical e ambiental, no último 22 de dezembro, motivaram uma edição especial do encontro realizado realizado anualmente na sua terra natal, hoje com quase 15 mil habitantes.

No encerramento do ano de 2018, não foi só a efeméride redonda que motivou a presença de parceiras e parceiros históricos da militância no “Encontro Chico Mendes 30 anos: Uma Memória a Honrar. Um Legado a Defender”. Eles viajaram de diversas partes do país para lembrar de boas histórias do líder sindical, aquele que virou o jogo da causa da Amazônia e do meio ambiente no fim da década de 1980.

O contexto pós-eleitoral fez essas testemunhas históricas de sua trajetória de Chico Mendes compartilharem com as novas gerações da floresta como era o cenário enfrentado pelos sindicatos e demais grupos da região que começavam a se organizar nos anos 70 e 80. O período era ainda mais violento e cruel para os trabalhadores rurais e a população mais pobre do estado: além de Chico, inúmeros outros ativistas locais foram assassinados.

Foi também o panorama atual que inspirou a carta de Lívia, como descreve uma orgulhosa avó, Angela Mendes, sobre o texto elaborado pela menina “em cinco minutos”. “Ela me disse: ‘vovó, eu pensei no Bolsonaro quando escrevi minha cartinha’”, conta. Angela é a primeira filha de Chico Mendes. “E eu: gente, como assim?!. E ela disse que a parte em que fala sobre esperar que as pessoas tomem consciência de que não podem viver sem a natureza era para que ele entendesse isso.”

NETA DO SINDICALISTA FOI DOS SERINGAIS À BIOLOGIA

O mesmo estímulo de Lívia fez sua mãe, a também primogênita Angélica, filha de Angela Mendes, retomar um contato mais próximo com o legado de seu avô. Há dez anos, havia quem apostasse que ela levaria adiante como ativista as bandeiras de Chico. “Eles dizem isso porque eu já fui tudo, de representante de sala a capitã de time”, comentava à época, aos 19 anos, quando cursava Ciências Biológicas.

Hoje com mestrado, quase doutora e morando em Goiânia, Angélica diz que pretende sair do mundo “retido” da ciência e se engajar politicamente em algum espaço, motivada pelas ameaças que surgiram no período eleitoral, rondando os avanços obtidos após a morte de seu avô e outras tantas conquistas das últimas três décadas.

Em Xapuri a casa de Chico Mendes está conservada tal qual estava no dia do assassinato, em dezembro de 1988. Foi na frente dela que Angélica recebeu a reportagem do De Olho nos Ruralistas.

Angélica Mendes: “Abrir essa história para o mundo”. (Fotos: Cristina Uchôa e Glauco Faria)

– Eu tentei ser eu e não viver somente como neta. Fui procurando ter as minhas experiências, então hoje é muito bom ter esses dois pontos de vista. Um é a vivência de criança, de quando eu ia aos seringais, que me deu a vivência de ver a biologia na minha terra, mas fui em busca dos conhecimentos acadêmicos para as coisas de conservação, de biologia. Fiquei muito retida a essa questão acadêmica e agora, aos poucos, fui despertando um sentimento muito forte de não aceitar como as pessoas tratam o meio ambiente de uma forma descartável, não saberem que a gente precisa tanto disso.

O local funciona hoje como um museu/memorial, conservando até mesmo marcas de onde ficaram as poças de sangue após os tiros que o abateram no fim da tarde do dia 22 de dezembro, enquanto saía com uma toalha para o banheiro, que ficava na parte de fora.

No dia da conversa, Angélica e Lívia eram as celebridades do momento. Sua presença e o fato de estarem concedendo uma entrevista mexiam com a curiosidade e a emoção das pessoas, ansiosas para abraçá-las, conversar e tirar fotos. Nada disso impediu Angélica de contextualizar suas motivações atuais, um senso de urgência de se dedicar ao ativismo, surgido ao longo das últimas eleições, quando se envolveu em debates, alguns fervorosos, em redes sociais.

“Alguns dizeres de políticos querendo acabar com as Unidades de Conservação e com os direitos das pessoas indígenas, tudo isso me causou muita revolta”, explica. “Não tem como ficar sem tentar fazer sua parte”.

A neta de Chico Mendes conta como foi ficando incomodada com o comportamento de muitas pessoas nas mídias sociais:

– Percebi a postura de muitas pessoas nas mídias sociais, inclusive biólogos, gente que trabalha com meio ambiente, com um posicionamento político que vai contra o que a gente trabalha. A partir disso, eu e um amigo pensamos em abrir essa história para o mundo, que eu, como bióloga, como colega deles e neta do Chico Mendes, poderia alertar que não estavam entendendo muito bem, principalmente a mensagem que meu avô tentou passar. Fiz uma publicação no Facebook e as pessoas no grupo, em resumo, me perguntaram: ‘Onde é que você estava?’. E a questão é que eu estava amadurecendo para poder falar alguma coisa que tivesse bastante certeza, que eu não fosse me arrepender depois.

BOLSONARO QUER EUA EXPLORANDO AMAZÔNIA

Em inúmeras ocasiões o presidente Jair Bolsonaro investiu contra iniciativas de preservação do meio ambiente qualificadas por ele como “xiitas”. Em setembro, durante a cobertura eleitoral, o observatório destacou a promessa de que a Amazônia será explorada por países estrangeiros, Estados Unidos à frente: “Bolsonaro quer exploração da Amazônia ’em parceria com os Estados Unidos’“.

Bolsonaro: “Fuzilar a petralhada”. (Imagem: Reprodução/YouTube)

No início daquele mês, o presidente falou em Rio Branco que iria “fuzilar a petralhada” do Acre. Chico Mendes era filiado ao PT. Chegou a ser candidato a deputado estadual, em dobradinha com a seringueira – futura senadora e presidenciável – Marina Silva, hoje o principal quadro da Rede Sustentabilidade. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, não viu crime na declaração.

Em uma transmissão feita pelo Facebook, em novembro, Bolsonaro firmou que ambientalistas devem trabalhar “de verdade” e não “por interesse”. “Vocês do meio ambiente não sabem como é produzir, o quanto é difícil ser agricultor no Brasil, e vai lá sempre meter a caneta nos caras”, disse, defendendo a intensificação da atividade turística em áreas de preservação:

– Não é demarcar como parque nacional, estação ecológica, unidade de conservação e resolver o assunto. Nós queremos fazer o turismo nessa região porque traz divisa pra gente e você preserva. O turismo preservaria o meio ambiente e não essa forma xiita que o Ibama vem fazendo até hoje.

Na mesma transmissão, como em outras ocasiões, Bolsonaro atacou o que considera ser uma “indústria da multa”, mencionando órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O presidente já acenou com a possibilidade de fusão dos dois órgãos, o que, segundo especialistas, deve dificultar a já precária fiscalização em diversas unidades de conservação do país.

O clima aumentou a sanha da bancada ruralista. Os parlamentares aprovaram em dezembro, em uma comissão mista, a redução de três unidades: o Parque Nacional de São Joaquim, em Santa Catarina; a Floresta Nacional de Brasília e o Parque Nacional de Brasília. Isso foi feito a partir de emendas “jabuti” na Medida Provisória 852.

Angélica Mendes fala com pesar sobre os retrocessos:

– Eu achava que a gente ainda tinha muito a melhorar mas que estava no caminho. Agora, não só os políticos mas as pessoas em geral (contaminadas pelas pessoas mais influentes, poderosas), pensam que a gente não está progredindo e elas estão retrocedendo nesse pensamento. Estamos voltando mais de 30 anos nessa questão de preservação.

MULHERES PARTICIPAVAM DOS ‘EMPATES’

Um desafio que as gerações que participaram da luta pela terra e pela preservação da floresta têm com os jovens de hoje é fazer despertar a consciência ambiental e a ideia de que é necessário preservar o que foi conquistado no passado, à custa da vida de muitos, por meio de mobilizações.

Encontro Chico Mendes destacou protagonismo feminino: (Foto: Gleilson Miranda/Secom-AC)

O protagonismo das mulheres na Amazônia foi motivo de quatro painéis durante o Encontro Chico Mendes 30 anos, no dia 16 de dezembro. A agência governamental Notícias do Acre – até então sob um governo petista – fez um relato sobre o tema: “Guardiãs da floresta: o protagonismo das mulheres na preservação e construção de políticas públicas na Amazônia“.

A técnica de enfermagem Neide Ribeiro era pequena quando seu pai começou a participar dos empates, iniciados por lideranças como o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, Wilson Pinheiro, e que se tornaram célebres com Chico Mendes e seus companheiros.

Os empates consistiam em uma técnica de resistência para evitar a derrubada da floresta pelos peões e jagunços a mando de fazendeiros e pecuaristas: seringueiros e trabalhadores locais se uniam, ombro a ombro, muitas vezes de braços dados, para proteger com seus corpos a mata nativa. Em muitas ocasiões as mobilizações contavam com mulheres e crianças. Como Neide. Elas funcionavam como uma espécie de blindagem.

Neide fala sobre a ofensiva de grandes compradores de terras que chegaram à região nos anos 1970:

– O Acre estava sendo atacado por todos os lados. Como a gente, jovem naquela época, sofria muito para viver, aprendeu a valorizar. Agora, existem pessoas que, com as melhorias, às vezes compram uma casa boa, uma Hilux (caminhonete de tração 4 X 4) e, porque têm uma cabeça de gado, já se põem no lugar do fazendeiro. Um engano, porque ele esqueceu que continua um seringueiro. Com essa soberba, o fazendeiro veio e ganhou espaço.

De fato, a expansão da pecuária é uma das preocupações de hoje para a manutenção das “reservas extrativistas”, espaços territoriais reservados dentro de Unidades de Conservação (UCs), criados a partir de ideias originais de Chico Mendes onde comunidades tradicionais preservam a floresta e fazem do extrativismo sua principal atividade econômica.

Embora seja limitada a 5% em cada “colocação” – unidade de produção do seringueiro, dentro de um seringal -, o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) divulgou um estudo no qual identifica 2.552 áreas desmatadas no interior de áreas protegidas da região amazônica ou em suas proximidades em 2017. Ainda que o número represente uma redução de 26% em relação a 2016, o aumento da atividade põe em questão, como observa Neide, a própria identidade dos mais novos na comunidade.

Ângela, Angélica e Lívia: três gerações de Mendes. (Fotos: Cristina Uchôa e Glauco Faria)

É também por isso que, aos 29 anos, Angélica tem se engajado nas atividades do Núcleo de Juventude do Comitê Chico Mendes. Ela conhece a atenção e a confiança que o avô depositava nas futuras gerações. “Recentemente em Goiânia tive a oportunidade de encontrar uma prima, e foi muito interessante ela contando de como ele se dava bem com os filhos dela, de como ele adorava criança. Ele tinha esse contato com os jovens”, conta Angélica, com sorriso de neta. E sabe que essa história de avô já se conecta com o que Chico Mendes vislumbrava sobre o papel da juventude. “Ele falava ‘o jovem do futuro’; e é isso, a gente tem que conversar com os jovens, porque eles vão ser a mudança que a gente precisa”.

CHICO ESCREVEU SOBRE ‘JOVENS DO FUTURO’

A “juventude do futuro” é a destinatária de um bilhete-poema escrito por Chico Mendes, encontrado pelo advogado Gomercindo Rodrigues (comumente chamado pelo apelido Guma) em seu escritório. Ele conta que o sindicalista esteve ali em 6 de setembro de 1988 para usar o telefone – o do sindicato estava, mais uma vez, cortado por falta de pagamento.

Guma lê, relê, menciona e publica a carta sempre que pode, como indicam diversas conversas com jovens de Xapuri e pouco mais de uma dezena de publicações sobre Chico Mendes que se encontram em seção dedicada a “lideranças regionais” na Biblioteca Municipal de Rio Branco.

Hoje na faixa dos 50 anos, aquele jovem advogado que colaborava com o sindicato e os seringueiros na década de 1980 mantém seu vigor e seu compromisso com os desafios da região, articulando soluções para os atuais conflitos fundiários. E mantém também fervorosa emoção ao se lembrar do antigo companheiro, da noite de sua morte, transformando os sentimentos em convocatória ao ler, em voz alta, mais uma vez a carta, assinada por Chico Mendes:

“Atenção jovem do futuro
6 de setembro do ano de 2120, aniversário do primeiro centenário da revolução socialista mundial, que unificou todos os povos do planeta num só ideal e num só pensamento de unidade socialista, e que pôs fim a todos os inimigos da nova sociedade.
Aqui ficam somente a lembrança de um triste passado de dor, sofrimento e morte. Desculpem. Eu estava sonhando quando escrevi estes acontecimentos que eu mesmo não verei. Mas tenho o prazer de ter sonhado”.

Depositar na juventude a esperança sobre a causa ambiental não é novidade. A mensagem principal da Conservação Internacional circulada mundialmente o Dia do Meio Ambiente de 2017, por exemplo, era a seguinte: “Faça uma coisa pelo futuro hoje: ouça as ideias de uma criança”. A bandeira da educação ambiental e mesmo da implementação de metodologias como “ecoliteracy” (letramento ecológico, em tradução livre) são levantadas pelas correntes verdes desde antes da Eco 92.

O que se viu no encerramento do encontro “Legado de Chico Mendes 30 anos depois” atualizou a noção de diálogo intergeracional: como num rito de baile de formatura, trinta integrantes dos movimentos e sindicatos, que conviveram com Chico Mendes vivo, entraram em fila pareando com trinta jovens, atualmente ligados a diferentes militâncias, como indígenas, negras, feministas, extrativistas, universitárias ou midiativistas, entre outras, para se dirigir ao palco do evento.

Coube à atriz Lucélia Santos (outra ativista histórica que se aproximou de Chico Mendes e jamais se desvinculou da Amazônia) ler a “Carta de Xapuri”, encerrando de forma apoteótica os três dias de atividades. “Ninguém abandona a defesa dos povos da floresta! Ninguém desiste do legado de Chico Mendes! Ninguém solta a mão de ninguém!”, convocou a intérprete, tremendo, ao finalizar a leitura.

Ao final do encontro, o Núcleo de Juventude do Comitê reivindicava a autoria da ideia do formato da atividade final, assim como de outras diversas inovações no modelo de evento praticado anualmente em memória de Chico em Xapuri. Mais do que uma “passagem de bastão”, eles não queriam que fosse postergada sua participação como protagonistas nesse momento histórico. Tampouco acelerada a aposentadoria dos mais velhos. Entenderam que o momento atual é de união, de dar as mãos, os braços, juntar os ombros, para criar “o empate do século 21”.

“Empatar”, ao longo dos debates, assumiu para todas as pessoas presentes um novo significado: o de expressão de resistência aos retrocessos anunciados. Estão todos preparados.

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