Antropólogos, cientistas sociais, historiadores e geógrafos repudiam ameaças contra o Cacique Babau; eles apontam governo Bolsonaro e morosidade no processo de demarcação da TI Tupinambá de Olivença como responsáveis pela violência no sul da Bahia
Por Igor Carvalho
Um grupo de pesquisadores que estudam a história do povo Tupinambá divulgou na semana passada uma carta aberta em que repudia as ameaças de morte sofridas pelo cacique Rosivaldo Ferreira da Silva, o Babau. O indígena revelou, após denúncia feita ao Ministério Público Federal, um plano formulado por fazendeiros e policiais militares e civis para assassiná-lo. Os cientistas de diversas áreas – como antropologia e história – apontam “planos de extermínio” dos fazendeiros contra os indígenas.
Assinado por 25 pesquisadores de diferentes áreas e filiações, o documento exige a “urgente investigação das ameaças e planos de extermínio contra indígenas do povo Tupinambá, com a consequente responsabilização de todos os envolvidos” no caso do plano contra o cacique. O grupo também pede “a adoção imediata de medidas protetivas eficazes para os indígenas, particularmente, para o Cacique Babau, demais indivíduos nominalmente citados como possíveis alvos de ataques e todos aqueles que venham a ser ameaçados”.
A morosidade do processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença é descrita com detalhes pelos pesquisadores e apontada como principal motivo para a violência sofrida pelos povos indígenas nos municípios de Una, Ilhéus, Buerarema e São José da Vitória, que incidem no território reivindicado pela comunidade e já reconhecido pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Três instituições ligadas à Universidade Estadual de Feira de Santana – a Comissão de Ações Afirmativas, o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas e a Residência Indígena – também divulgaram uma nota conjunta em apoio irrestrito ao povo Tupinambá. Com pedido de apuração urgente das denúncias do Cacique Babau. Esse documento assinala que os Tupinambá foram os primeiros indígenas a entrar em contato com os portugueses em 1500, no sul da Bahia:
– Os Tupinambá da Serra do Padeiro se afiguram atualmente como uma das mais importantes e emblemáticas comunidades indígenas da Bahia e do Brasil no que diz respeito à sua contundente luta por direitos, tendo em Rosivaldo Ferreira da Silva e seus familiares exemplos de força e determinação em busca de direitos, sendo o maior deles o direito ao seu território tradicional.
No último dia 8 de fevereiro, Babau procurou o Ministério Público Federal (MPF) para denunciar que ele e sua família foram vítimas de ameaças de morte. O cacique levou um conjunto de provas, como imagens de seus parentes sendo perseguidos de carro, e testemunhas que estavam em uma reunião realizada no município de Itabuna, na Bahia, em que fazendeiros e policiais militares e civis planejaram o assassinato do líder indígena.
O documento assinado pelos 25 pesquisadores mostra que o processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença já se estende por 15 anos. “Todos os prazos legais estabelecidos pelo Decreto n°1.775/1996 foram violados”, diz a carta. Os estudiosos citam o subprocurador-geral da República Antônio Carlos Bigonha, que em referência ao caso Tupinambá apontou demora na assinatura da portaria declaratória de um processo “que cumpriu todos os requisitos legais e constitucionais e é um fator de acirramento do conflito na região”.
Ainda segundo o subprocurador-geral, essa assinatura é um ato “que poderia ser imediatamente praticado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro”.
Uma das signatárias do documento, a antropóloga Daniela Fernandes Alarcon estuda o povo Tupinambá desde 2010. Ela explica que setores da economia local ganham vantagem com a demora na demarcação da TI. O processo chegou ao Ministério da Justiça em 2012, conta ela, quando já estavam afastadas possíveis dúvidas sobre a tradicionalidade da ocupação da terra. Houve contestações, respondidas e indeferidas pela Funai.
“Desde então, o processo caminha lentamente, pois existe uma série de interesses na região”, diz ela. Os interesses seriam de pessoas e grupos que querem seguir explorando o território indígena: agronegócio, mineradora, setores hoteleiro e imobiliário. Segundo a pesquisadora, diversas ações civis públicas do MPF falam dessa morosidade e responsabilizam o Estado pela violência na região.
Os pesquisadores preocupam-se com o processo de criminalização das lideranças indígenas. Em especial, Babau. Parte do plano que teria sido formulado por fazendeiros e policiais era “plantar drogas” no carro do indígena e associá-lo ao tráfico de drogas. Babau chegou ser preso por porte ilegal de armas – segundo a defesa, plantadas. Na época ele integrava o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Uma das irmãs de Babau, Glicéria de Jesus da Silva, foi presa em 2010 junto ao filho de dois meses.
“Esse é apenas um dos dispositivos usados para criminalizar lideranças”, afirma Daniela. “Babau é uma liderança relativamente jovem, mas que ganhou bastante respaldo dentro do movimento indígena e por parte de organizações dentro e fora do país”. Ela aponta a acolhida da comunidade indígena como importante argumento para validar a atuação do cacique: “Os Tupinambá criaram uma rede de apoio muito forte. Esse reconhecimento ao Babau só acontece por conta de sua coerência e combatividade”.
Uma testemunha da reunião entre fazendeiros e policiais afirmou que a morte de Babau deveria ocorrer “agora”. Já que seria facilitada pela conjuntura política do país. Doutoranda em Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Daniela Alarcon considera o governo Bolsonaro responsável pelo acirramento do conflito, mas assinala que os governos anteriores foram responsáveis por violações de direitos indígenas e nunca resolveram os conflitos no campo. “Cardozo teve chance de assinar a portaria declaratória dessa terra indígena, mas não o fez”, afirma, em referência ao ex-ministro José Eduardo Cardozo, da Justiça.
A pesquisadora diz que as falas do presidente legitimam as ações violentas dos fazendeiros:
– No governo Bolsonaro, a situação está muito pior. Antes da eleição, quando Bolsonaro ainda era candidato, já mapeávamos ameaças aos Tupinambá e as encaminhamos ao Ministério Público Federal. Nossas preocupações não se dão no vazio, o governo Bolsonaro cria um caldo para ações violentas de pessoas que estão nessa área e que se sentem incitadas a agir. Quando ele diz que em seu governo os índios não terão nenhum centímetro de terra, esse recado chega lá para um fazendeiro, um dono de hotel, um comerciante que se sente legitimado para agir.
Em sua denúncia, Babau deu nome a dois dos integrantes da reunião organizada para planejar sua morte. Um deles, o fazendeiro Alfredo Falcão. O outro, Abiel Santos, presidente da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Ilhéus, Una e Buerarema (Aspaiub). Santos teve encontro com Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Depois disso, em audiência, Mendes atacou as comunidades indígenas na região de Ilhéus.
Signatária do documento divulgado pelos 25 pesquisadores, a antropóloga Susana de Matos Viegas critica esse encontro. Ela observa que o judiciário tem em mãos o ato declaratório que, segundo ela, deveria ter sido assinado há anos. “Os contatos com proprietários que em processo formal foram ouvidos e a quem foi respondido cabalmente no sentido dos direitos plenos dos Tupinambá são absolutamente irregulares”, considera. “Contrários a um estado de direito e ao respeito à constituição e subsequente legislação e portarias sobre regularização de terras indígenas”.
Doutora em Antropologia e professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Susana também analisa o discurso de ódio de Jair Bolsonaro:
– É um outro nível de ataque ao estado de direito. Ele envolve o descumprimento dos princípios de respeito à dignidade humana. É um assalto a séculos de história civilizacional que nos mostrou que um chefe de Estado que não tenha como princípio primordial respeitar e fomentar o respeito pela diversidade está agindo contra e em desrespeito ao que deveriam ser as suas funções mais elementares. Não há como considerar tal atitude menos do que autoritária e de ameaça à humanidade no sentido pleno e lato do termo.
Confira a nota completa divulgada pelos 25 pesquisadores:
Carta aberta de pesquisadores com trabalhos junto ao povo Tupinambá
13 de fevereiro de 2019
No final de janeiro de 2019, o povo Tupinambá descobriu e trouxe à luz um intrincado plano voltado ao extermínio de lideranças indígenas, arquitetado por indivíduos e grupos contrários à demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. Visando o assassinato do cacique Babau (Rosivaldo Ferreira da Silva) e de alguns de seus familiares, inclusive de uma adolescente, o plano seria executado com a participação de agentes do poder público, que vinham participando de reuniões voltadas ao delineamento dos ataques.
Dispondo de um conjunto robusto de evidências, incluindo depoimentos de testemunhas e imagens de câmeras de segurança, os Tupinambá denunciaram o plano em reuniões presenciais com autoridades do governo estadual da Bahia, do governo federal, do Ministério Público Federal, de instâncias internacionais e de entidades de proteção aos direitos humanos. A gravidade do caso levou à publicação de reportagem em destaque no jornal Folha de S. Paulo, em 10 de fevereiro de 2019.
Os fatos ocorrem em um contexto marcado, entre outros aspectos, por recorrentes declarações anti-indígenas por parte do presidente da República, Jair Bolsonaro, e pela nomeação de representantes de setores contrários aos direitos indígenas justamente para pastas que têm a atribuição de garantir tais direitos. Esse cenário tem sido terreno fértil para invasões de terras indígenas, assassinatos de lideranças e outras graves violações, conforme noticiado na imprensa, e como se verifica no caso tupinambá.
O processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença já se estende por 15 anos. Todos os prazos legais estabelecidos pelo Decreto n° 1.775/1996 foram violados. Como declarou recentemente o subprocurador-geral da República Antônio Carlos Bigonha, em referência ao caso tupinambá, “a demora na assinatura da portaria declaratória de um processo que cumpriu todos os requisitos legais e constitucionais é um fator de acirramento do conflito na região”. Ainda segundo o subprocurador-geral, “essa assinatura é um ato que poderia ser imediatamente praticado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro”.
Na condição de docentes e pesquisadores de diferentes áreas disciplinares, vinculados a universidades do Brasil e do exterior, que, ao longo das últimas décadas, têm desenvolvido investigações acadêmicas e produzido estudos de outras naturezas, laudos e relatórios junto ao povo Tupinambá, posicionamo-nos publicamente uma vez mais, demandando:
Nossa produção científica, à disposição do público em geral, documenta detalhadamente o esbulho praticado contra os indígenas e as violações de seus direitos constitucionalmente garantidos, bem como sua resistência, na constante atualização de modos de vida, identidades e projetos coletivos, assentados em relações específicas com o território.
Reafirmarmos, baseados em anos de pesquisa, que a conclusão imediata do processo administrativo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença é o único caminho para garantir os direitos de indígenas e não indígenas, contribuindo para cessar os conflitos na região.
André Augusto Bezerra, doutor em Humanidades e Direitos (Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos/Universidade de São Paulo)
Ayra Tupinambá – Vanessa Rodrigues dos Santos, geógrafa, mestranda em Relações Étnico Raciais (Universidade Federal do Sul da Bahia)
Casé Angatu Xukuru Tupinambá – Carlos José Ferreira dos Santos, doutor em História e Cultura da Arquitetura (Universidade de São Paulo), professor (Departamento de Filosofia e Ciências Humanas/Universidade Estadual de Santa Cruz e Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia)
Cecilia McCallum, doutora em Antropologia Social (University of London), professora associada ao Departamento de Antropologia e Etnologia e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (Universidade Federal da Bahia)
Cinthia Creatini da Rocha, doutora em Antropologia Social, pós-doutoranda em Antropologia Social (Universidade Federal de Santa Catarina)
Daniela Fernandes Alarcon, doutoranda em Antropologia Social (Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Epaminondas Reis Alves, historiador, mestre em Relações Étnicas e Contemporaneidade (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)
Erlon Fabio de Jesus Costa, mestre em Desenvolvimento Sustentável junto a Povos e Terras Indígenas (Universidade de Brasília), especialista em Psicologia Social (Universidade Estadual de Santa Cruz), professor da rede estadual e municipal de Ilhéus
Ernenek Mejía Lara, doutor em Antropologia Social (Universidade Estadual de Campinas),pós-doutorando em Antropologia Social (Universidade Federal da Bahia)
Helen Catalina Ubinger, mestra em Ciências Sociais com concentração em Antropologia (Universidade Federal da Bahia), doutoranda em Sociedade e Cultura na Amazônia (Universidade Federal do Amazonas, Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia)
José Valdir Jesus de Santana, doutor em Antropologia Social (Universidade Federal de São Carlos), professor no Departamento de Estudos Básicos e Instrumentais (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)
Laila Thomaz Sandroni, doutora em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), pós-doutoranda em Ecologia Aplicada (ESALQ/USP)
Larissa Santiago Hohenfeld, historiadora, mestranda em Estudos Étnicos e Africanos (Universidade Federal da Bahia)
Luisa Elvira Belaunde Olschewski, doutora em Antropologia Social (University of London), professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Marcelo da Silva Lins, doutorando em História (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), professor assistente do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (Universidade Estadual de Santa Cruz)
Mauricio Pinheiro, mestre em História e Sociedade (Universidade Estadual Paulista)
Nathalie Le Bouler Pavelic, doutoranda em Cultura e Sociedade (Universidade Federal da Bahia, em cotutela com o Institut Interdisciplinaire d’Anthropologie du Contemporain, Laboratoire d’Anthropologie des Institutions et des Organisations Sociales/École des hautes études en sciences sociales)
Patricia Navarro de Almeida Couto, mestra em Ciências Sociais com concentração em Antropologia (Universidade Federal da Bahia), professora no Departamento de Ciências Sociais Aplicadas (Universidade Estadual de Feira de Santana)
Ricardo Sallum Freire, indigenista, mestre em Geografia (Universidade Federal da Bahia)
Sirlândia Santana, doutora em Ciências Sociais (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)
Susana de Matos Viegas, doutora em Antropologia (Universidade de Coimbra), professora do Instituto de Ciências Sociais (Universidade de Lisboa)
Taís Carvalho, mestra em Cultura e Sociedade (Universidade Federal da Bahia)
Teresinha Marcis, doutora em História Social (Universidade Federal da Bahia), professora do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas e coordenadora do Colegiado de História (Universidade Estadual de Santa Cruz)
Thais Brito, doutoranda em Antropologia Social (Universidade Federal da Bahia), Festival Cine Kurumin
Ulla Macêdo, mestre em Ciências Sociais com concentração em Antropologia (Universidade Federal da Bahia), Fundação Osvaldo Cruz