Em sua décima edição, Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia reuniu 6 mil pessoas e celebrou legado de Marielle Franco; camponesas do Polo da Borborema debatem racismo e violência
Por Helena Dias e Inês Campelo, em Remígio (PB)
Em parceria com a Marco Zero Conteúdo
“Quem mandou matar Marielle Franco?”. Estampada em cartazes e gritada em uníssono por cerca de 6 mil mulheres – muitas delas negras, como a vereadora carioca cujo assassinato completou um ano nesta quinta-feira (14) -, a pergunta foi a tônica da décima Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, realizada em Remígio, no Polo da Borborema, Agreste da Paraíba.
Realizada anualmente no dia 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, o ato teve sua data alterada para homenagear Marielle e reforçar o tema deste ano: o combate ao racismo. Segundo Adriana Galvão, coordenadora da Marcha e assessora técnica da AS-PTA, associação que atua no fortalecimento da agricultura camponesa, o dia 14 foi escolhido por ser uma data simbólica:
– Na marcha passada, fizemos o tema da diversidade e já sabíamos que era importante trabalhar com o tema da identidade racial e do racismo. Eu acho que toda a simbologia que Marielle traz de uma mulher negra, periférica, bissexual que ocupa um espaço de poder com grande destaque, isso, por si só, já era uma inspiração para as mulheres locais e de todo o Brasil. Mas, ao calar essa voz, o tema se fortalece muito mais dentro da marcha, que vem para homenagear todas as mulheres que foram caladas ao ocupar esses espaços.
Além de Marielle Franco, também foi homenageada a sindicalista, agricultora e defensora dos direitos humanos Margarida Maria Alves, assassinada há 50 anos em Alagoa Grande (PB) e que segue inspirando a luta das mulheres camponesas no Polo da Borborema. Em parceria com a Marco Zero Conteúdo, De Olho nos Ruralistas contou algumas dessas histórias: “Margaridas e Marielles: quatro histórias de luta camponesa na Paraíba“.
A mobilização se concentrou durante cerca de três horas no Alto da Colina e cruzou a cidade até o Parque da Lagoa, onde o Grupo de Teatro do Polo da Borborema encenou uma peça sobre racismo e machismo. No palco montado pela organização, as participantes assistiram ao show da cantora Lia de Itamaracá e seguiram para a feira agroecológica Sementes e Sabores.
Durante toda a caminhada, moradores e comerciantes saíram de suas casas e estabelecimentos para ver as mulheres passarem. A aposentada Francisca Miguel de Souza acompanha a mobilização das agricultoras todos os anos: “A marcha está maravilhosa e muito bonita”. Filha de trabalhadores rurais, ela viveu da roça quando era adolescente e hoje completa a aposentadoria vendendo fiteiro. “Moro nesta rua há 40 anos mas não é sempre que vemos algo assim. Por isso, há dez anos eu vi a primeira marcha passar e faço o mesmo hoje”.
A origem camponesa é comum em Remígio. Maria da Paz foi agricultora durante quarenta anos. Hoje aposentada, aos 67 anos, atua no grupo de mulheres do Centro de Referência de Assistência Social do município de Lagoa da Roça. Ela lembra que estava no Rio de Janeiro quando a vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes foram assassinados a tiros: “Recebi a notícia como um choque, uma tristeza. Até então, eu não conhecia Marielle, mas me reconheço como mulher negra e estou aqui por todas nós, para combater o racismo e lembrar de dizer não à reforma da previdência de Bolsonaro”.
Há também quem saiu de longe para apreciar a marcha e se juntar à luta das mulheres do campo. Professora de artes do Instituto Nacional de Educação de Surdos, no Rio de Janeiro, Maria Lúcia Vinholi, de 53 anos, conheceu a marcha há cinco anos quando produziu estandartes para a mobilização, a pedido da AS-PTA. Diz que se encantou com a luta das agricultoras e, principalmente, com a força delas: “Aqui é muito verdadeiro. Há muito envolvimento dos jovens. Eles participam e sabem falar da agroecologia de maneira muito linda, comovente e envolvente. A gente se encanta e tem vontade de compartilhar essa realidade com os jovens de lá [do Rio]”.
Enquanto a marcha seguia pelas ruas de Remígio, a agricultora Josefa Miranda dos Santos, de 58 anos, montava sua barraca de frutas agroecológicas no Parque da Lagoa, onde começava a feira Sementes e Sabores, reunindo produtores da região. Ao mesmo tempo que vendia seus produtos, Josefa respondia à reportagem: “Me aposentei há quatro anos, mas continuo como agricultora. Participo da marcha desde a primeira, mas só nesta fiquei na feira”.
Formado por quinze municípios, o Polo da Borborema possui treze sindicatos rurais e cerca de 150 associações comunitárias, além de uma organização regional de agricultores que trabalham sob os princípios da agroecologia. Iniciado há 25 anos, através da capacitação e da assessoria técnica realizadas pela AS-PTA, o processo de transição agroecológica transformou a região em um dos poucos locais no Brasil a conter a entrada da monocultura, que avança no restante da Paraíba, com a cana de açúcar no litoral e a fruticultura irrigada no Sertão.
Em 2009, uma articulação de movimentos sociais se reuniu sob o Fórum do Território da Borborema para evitar que a Souza Cruz, maior produtora de tabaco do Brasil, expandisse suas plantações de fumo na região. Mas a vitória na queda de braço contra a multinacional não foi a única.
No ano seguinte, em 2010, os camponeses atuaram contra a distribuição de agrotóxicos pelo governo estadual, como medida de combate à chegada da mosca-negra-do-citrus (Aleurocanthus woglumi Ashby), praga que vinha devastando plantações inteiras no Nordeste. Junto a pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba, os agricultores e agricultoras do Polo demonstraram a maior eficácia do controle biológico, um dos princípios da agroecologia, evitando que a praga se propagasse pela região.
Segundo Adriana Galvão, da AS-PTA, os camponeses têm conseguido manter a Borborema como um polo e região agroecológica, mas observam com cautela o recente processo de reconcentração fundiária que vem ocorrendo em alguns municípios, pelas mãos do poder local:
– Com a expulsão do campo, as famílias vão para as periferias das cidades. Em muitos casos, as mulheres vão trabalhar como domésticas e os jovens perdem o vínculo da sucessão com a terra. Sem o direito de opção [de ficar ou sair do campo], são afetados pela violência urbana. É a destruição do tecido social.
Além de música e gastronomia, a 10ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia também teve teatro e uma necessária reflexão sobre os impactos do racismo na região. Secretaria do sindicato de trabalhadores rurais de Água Seca (PB), Marcia Araújo dos Santos também integra o Grupo de Teatro do Polo da Borborema. Na peça encenada ontem, ela interpretou a personagem Zefinha, uma jovem negra que sonha em concluir os estudos, mas tem de trabalhar como empregada doméstica para contribuir no sustento da família.
A história evidencia como o racismo e o machismo se manifestam no ambiente doméstico e também na relação entre patrões e funcionárias. “Minha mãe trabalhou em casa de família e essa peça que apresentamos hoje é muito parecida”, conta. “Ela tinha que dormir num quarto separado da casa dos patrões e só podia almoçar depois que eles almoçassem. Muitas mulheres se identificam com essa realidade. Eu me orgulho de ser negra e agricultora”.
Depois de cinco horas de passeata pelas ruas de Remígio, as camponesas encerraram a marcha em uma ciranda comandada por Lia de Itamaracá. São delas as mãos que ilustram a foto principal desta reportagem.