Trabalho escravo: entre 48 novos membros da “lista suja”, 33 são fazendeiros

Ministério da Economia divulga relação de quem explorou mão de obra ilegalmente nos últimos anos; ex-prefeito de Itarema (CE) e ex-vereador de Jales (SP) estão entre os listados; em um dos casos, no Mato Grosso, idoso dormia em galinheiro

Por Alceu Luís Castilho e Maria Lígia Pagenotto

Os proprietários rurais são os empregadores com mais nomes entre os novos integrantes da “lista suja” do trabalho escravo, segundo uma listagem divulgada hoje pelo Ministério da Economia. Do total de 48 novos nomes da relação – a primeira do governo Bolsonaro – 33 se referem a donos de terras, o equivalente a 70%.

O nome “lista suja” se refere aos dados que integram o “Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo”. A maioria das propriedades onde foram encontradas  irregularidades está localizada nos estados de Minas Gerais e Pará.

Em Alagoas, em duas fazendas do município de Feira Grande, os fiscais do trabalho libertaram 90 trabalhadores. Atrás deles, em número de funcionários explorados, aparece o proprietário de uma fazenda chamada Ferradura, de Patrocínio (MG). Nessa propriedade foram libertados, de uma vez, 36 trabalhadores.

Confira a lista dos 33 fazendeiros por Unidade da Federação, conforme levantamento feito pelo De Olho nos Ruralistas, com nome do proprietário, localização (propriedade rural, município) e número de trabalhadores libertados:

Alagoas

Bahia

Ceará

Goiás

Maranhão

Mato Grosso

Mato Grosso do Sul

Minas Gerais

Pará

Rio de Janeiro

Roraima

Tocantins

IDOSO SEM CERTIDÃO DE NASCIMENTO DORMIA EM GALINHEIRO

Galinheiro onde idoso dormia, em sítio no Mato Grosso. (Foto: Ministério do Trabalho)

Em idade de aposentadoria, o septuagenário Antônio Rodrigues de Jesus acertou um salário de R$ 6 por dia, para plantar milho e ordenhar vacas. Uma vez recebeu R$ 60, tudo de uma vez. E não mais. Em compensação, aos olhos do patrão, recebia pinga e fumo. E moradia. Seu caso foi definido pelo Auditoria Fiscal do Trabalho de Mato Grosso como análogo ao trabalho escravo.

Antônio dormia em um galinheiro. Sem certidão de nascimento, sabia que tinha 72 anos no momento do flagrante, em janeiro de 2017, no município de Confresa, no nordeste mato-grossense. Mais de dois anos depois, a “lista suja’ do trabalho escravo mostra o nome do proprietário do Sítio dos Cabritos, Carlos Alberto Bento.

Antônio: sem certidão de nascimento, sem carteira. (Fotos: Reprodução)

Nenhum outro trabalhador foi libertado na propriedade de 10 alqueires, apenas Antônio. A rede onde dormia estava no galinheiro. Antônio não tinha férias. Embora manuseasse uma motosserra, não recebeu nenhum equipamento de proteção. Apenas duas calças, duas camisas, dois calções. Um par de botinas. E um boné.

Bento o considerava “quase da família”, conforme o texto divulgado pelo Ministério do Trabalho e reproduzido pelos jornais regionais. Antônio não se lembrava direito dos familiares. Ele trabalhava das 5 ou 6 horas até o fim da tarde, 17 ou 18 horas. Parava para o almoço. Não tinha água potável, consumia de um córrego – o mesmo onde se banhava e lavava roupas.

Entre os novos casos de trabalho escravo divulgados em 2019, os primeiros na era Bolsonaro, a história de Antônio e de Bento tem uma variação importante em relação aos demais: trata-se de uma propriedade média; ou até pequena, para os padrões do Mato Grosso. Nos outros casos, os exploradores de mão de obra têm mais terras. E dinheiro, poder.

CASOS NO CEARÁ E EM GOIÁS ENVOLVEM POLÍTICOS

O observatório identificou dois políticos entre os integrantes da nova “lista suja”. Um deles, no Ceará: prefeito de Itarema entre 2013 e 2017, Benedito Monteiro dos Santos Filho (PSD) foi flagrado nos municípios vizinhos de Acaraú e Cruz. Três trabalhadores foram libertados de suas fazendas. O outro, o pecuarista paulista Durval Rossafa Rodrigues, foi vereador em Jales (SP) entre 1983 e 1988.

Dez trabalhadores foram libertados em 2017 em propriedade que leva o nome de Durval, a Fazenda Rossafa, no município goiano de Serranópolis, quase na fronteira com o Mato Grosso do Sul. Mas só agora o nome dele entrou na lista. O fazendeiro octogenário, conhecido como Balim Rossafa, é personagem recorrente nas colunas sociais do município, localizado no oeste paulista. Ele faz parte da direção da Santa Casa local.

O ex-prefeito cearense também é conhecido por um apelido: Binu Monteiro. A libertação de três trabalhadores em duas fazendas de sua propriedade também ocorreu em 2017, ano em que ele deixou a prefeitura de Itarema – não conseguiu a reeleição. Uma delas, a Fazenda Lagoa dos Cannes (ou Canema).

Os três funcionários moíam folhas de carnaúba e extraíam pó para a fabricação de cera. O roteiro da exploração de trabalho se repete: instalações sanitárias inadequadas, dormitórios improvisados: eles dormiam dentro do baú de um caminhão [ver foto principal], dividindo espaço com a máquina de moagem. Sem ventilação, o baú virava um forno.

FAZENDEIRO EM MINAS VENDE CAFÉ GOURMET

Helvécio produz café gourmet com certificação; em sua fazenda foram resgatados trabalhadores. (Foto: Reprodução)

Especializada em trabalho escravo, a ONG Repórter Brasil repercutiu hoje a nova “lista suja” destacando um caso ocorrido no Triângulo Mineiro. Segundo o repórter Daniel Camargos, o fazendeiro Helvécio Sebastião Batista comercializa o Café Fazenda Cedro, marca gourmet que “ostenta selos de boas práticas de certificadoras internacionais”. Seis trabalhadores foram libertados em julho de 2018 na Fazenda Cerro II, no município de Serra do Salitre.

A organização Rainforest Alliance informou à Repórter Brasil que suspenderá a certificação da marca. Segundo os auditores-fiscais do trabalho, os funcionários cumpriam jornadas de até 17 horas de trabalho. Na outra ponta, a das prateleiras, o café “com fragrância e aroma frutado” da Fazenda Cedro é vendido por até R$ 40 o pacote. Batista diz que a acusação é improcedente.

Um pouco mais ao norte, ainda no Cerrado mineiro, o Ministério do Trabalho libertou em junho do ano passado 19 trabalhadores numa fazenda em Córrego Danta, a Santa Izabel II. Segundo o G1, o proprietário, Emílio Augusto Barbosa Ferreira, mantinha entre os trabalhadores um adolescente de 17 anos. Ele trabalhava com os pais na colheita.

Os trabalhadores tinham saído da Bahia dois meses antes. Pagaram os R$ 200 de cada passagem e chegaram a um local sem instalações sanitárias – precisavam usar o mato. A água vinha de uma nascente. Os alimentos eram comidos no chão. Como o ponto de comércio mais próximo ficava a 20 quilômetros da fazenda, compravam do fazendeiro e endividavam-se. Já possuíam R$ 7 mil em dívidas.

TRABALHADORES MANUSEAVAM AGROTÓXICOS SEM PROTEÇÃO

No sudoeste do Tocantins, em Sandolândia, não longe do Rio Araguaia, o Grupo Móvel do Ministério do Trabalho resgatou há dois anos três trabalhadores em uma fazenda chamada Boa Vista. Com a nova lista do trabalho escravo, ficamos sabendo do nome do proprietário, um empresário de Palmas chamado Anicácio Oliveira Macedo.

Resgate de trabalhadores em Sandolândia, Tocantins. (Foto: Ministério do Trabalho)

Segundo os fiscais, os trabalhadores – que faziam roçado de pastagens – estavam alojados em barracos de lona, sem banheiros e sem acesso à água potável. Ministro do Trabalho à época, Ronaldo Nogueira disse que o Brasil não pode conviver com essa prática nefasta, “um atentado contra a dignidade humana”.

Os agricultores manuseavam agrotóxicos sem treinamento e sem os equipamentos de segurança obrigatórios. O salário? Menos de um salário mínimo.

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