Jeferson Alves ganhou projeção nacional ao cortar uma corrente que protegia Terra Indígena Waimiri Atroari, em Roraima; foi no intervalo entre as duas eleições que ele multiplicou seu patrimônio e se tornou pecuarista
Por Alceu Luís Castilho
Candidato a prefeito de Boa Vista pelo PDT em 2016, Jeferson Alves possuía naquele ano uma empresa de construção civil no valor de R$ 300 mil. E só. Dois anos depois, eleito deputado estadual pelo PTB, seus bens saltaram para R$ 1.665.000. Mais de cinco vezes mais. Tudo conforme os dados que ele mesmo divulgou para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Somente em cabeças de gado ele passou a possuir R$ 625 mil.
Foi nesse curto espaço de tempo que ele se tornou um pecuarista, com 250 cabeças de gado, no valor de R$ 2,5 mil cada. Um pecuarista muito peculiar, já que sem terra. As reses ficam em uma fazenda chamada Menininha do Kanto A, grafada assim mesmo em sua declaração de bens. Que a ele não pertence, conforme o documento apresentado ao TSE. Ele também não registrou a propriedade de nenhuma motosserra.
Alves se tornou notícia nacional ao aparecer em vídeo com o instrumento, na Terra Indígena Waimiri Atroari, enquanto quebrava a corrente que protegia o território, na BR-174, ocupado pelos Waimiri Atroari e por indígenas isolados. O próprio deputado divulgou ontem a destruição do objeto: “Nunca mais essa corrente vai deixar o meu estado isolado. Presidente Bolsonaro, é por Roraima, é pelo Brasil. Não a favor dessas ONGs. Nunca mais”.
Confira o vídeo:
A TI Waimiri Atroari tem a mineração como uma das principais ameaças ao território. A corrente quebrada por Jeferson Alves com motosserra e alicate é erguida pelos indígenas entre as 18 horas e 6 horas, para impedir o trânsito de carros de passeio. Uma audiência foi realizada em março de 2019 na Assembleia Legislativa de Roraima para discutir o bloqueio. À Veja, o deputado disse que a abertura da estrada à noite foi uma promessa de campanha de Jair Bolsonaro.
Procuradores do Ministério Público Federal estudam as medidas a serem tomadas contra o deputado. Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), os indígenas já substituíram a corrente rompida. Ela tem a função de proteger a fauna da região e os próprios povos originários, que possuem hábitos noturnos. A terra indígena ocupa os estados de Amazonas e Roraima.
O relatório da Comissão Nacional da Verdade informa que 2.650 indígenas Waimiri Atroari foram mortos entre 1964 e 1985, durante a ditadura militar. Como resume o site Amazônia Real, “em massacres, esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos”. Somente os Cinta-Larga, entre as dez etnias estudadas, tiveram menos mortos que os Waimiri Atroari.
A casa de Jeferson Alves fica em Boa Vista. Mas onde fica a fazenda onde ele tem os bois, a Menininha do Kanto A? (O nome é um trocadilho envolvendo o município de Cantá, vizinho da capital, e Maria Escolástica da Conceição Nazaré, a Mãe Menininha do Gantois, a mais famosa mãe-de-santo brasileira, uma referência importante no candomblé. Gantois é o nome de um terreiro em Salvador, com pronúncia francesa porque o dono do terreno era um belga.) O deputado não informa.
Mas uma fazenda chamada Menininha do Cantoá, com essa grafia, aparece em duas edições, de 2008 e 2009, do Diário Oficial do Estado de Roraima. Em setembro de 2008, a Fundação Estadual de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia notificou administrativamente — com multa e embargo — o proprietário Mauro de Rocha Freitas por desmatamento de duas áreas de 232,27 hectares e 527,71 hectares, mais da metade da área da fazenda, de 1.162 hectares, no município de Cantá, ao sul de Boa Vista.
De Olho nos Ruralistas não tem notícia de qualquer outra fazenda, em todo o Brasil, chamada Menininha do Gantois, Cantoá, Kanto A ou coisa parecida.
A propriedade na região da Serra da Lua voltou a aparecer no Diário Oficial meses depois, em fevereiro de 2009, em situação mais amena: o então governador José de Anchieta Junior oferecia isenção fiscal para a criação de bovinos e ovinos no local. Nessa ocasião a Menininha do Cantoá estava em nome de um dos irmãos de Mauro, Amarildo da Rocha Freitas. Mauro Rocha ganhou do tucano Anchieta, no mesmo dia, isenção fiscal para a pecuária na Fazenda Porangatu, de tamanho idêntico à Cantoá. Do total de 1.161 hectares, 942 hectares tinham sido embargados, também em setembro de 2008. Anchieta faleceu em 2018.
Amarildo e Mauro são irmãos do ex-deputado federal Urzeni Rocha (PSD), outro proprietário de terra na região da Serra da Lua, segundo ele em Boa Vista. Urzeni já deu parecer favorável a um projeto de lei, o PL 1610/1996, que prevê a mineração em terras indígenas. O projeto de autoria do senador Romero Jucá (MDB-RR) — que não foi reeleito em 2018 — voltou à pauta da Câmara em 2019, já durante o governo Bolsonaro. Urzeni foi acusado de comprar votos em 2004, quando Mauro foi candidato a prefeito de Cantá. Disse que o dinheiro vinha da compra de bois.
Um ano antes, em 2003, Urzeni Rocha teve uma fazenda ocupada por indígenas, a Itamaraty. Ela nunca apareceu nas declarações entregues à Justiça Eleitoral. O político disse na ocasião que a fazenda ficava em região homologada como Reserva Muriru pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Considerava ter direito à propriedade por não ter recebido indenização. O relatório de identificação da Terra Indígena Muriru, da etnia Wapixana (a mesma da atual deputada federal Joênia Wapichana, da Rede), mostrou em 1999 que um dos ocupantes não indígenas, desde 1994, era Manoel da Rocha Freitas Neto: 100 dos 751 hectares da Fazenda Parnavaí incidiam no território indígena.
Urzeni já esteve na lista suja do trabalho escravo, por explorar 26 trabalhadores em fazenda em Cantá. Eles bebiam água com lodo de um córrego, o mesmo utilizado pelo gado. O deputado chegou a ser indiciado por crime ambiental na Fazenda Aparecida, em Bonfim (RR), também em área indígena. É o mesmo nome da fazenda que ele declarou em Boa Vista, na Serra da Lua. A TI fica em Bonfim e Cantá, no nordeste de Roraima. O Supremo Tribunal Federal (STF) avaliou o caso, mas declinou em 2011, já que ele não tinha sido reeleito.
O clã goiano dos Rocha Freitas está ligado ao senador Romero Jucá. Em 2010, a Polícia Federal apreendeu em Boa Vista R$ 100 mil atirados de um carro que saíra do escritório do cacique, na época candidato à reeleição. O dinheiro estava com Amarildo Rocha. O irmão de Urzeni Rocha contou que recebera o envelope das mãos do senador. E que não sabia que ele continha dinheiro. Ao ver a PF, disse, ficou assustado. Ele chegou a ser detido pelo crime de desobediência. A PF suspeitava da utilização do dinheiro para compra de votos.
Justiça seja feita ao deputado da motosserra: em 2016, antes de ter seus bens multiplicados, Jeferson Alves considerava Romero Jucá um corrupto.