Sob risco de aumento de contaminação, entidades buscam a Justiça para suspensão de reintegração de posse; PR e RS determinaram a suspensão, enquanto RJ e PE tramitam projetos nas respectivas Assembleias
Por Yago Sales e Bruno Stankevicius Bassi
Para os povos do campo, o combate à pandemia do novo coronavírus vai muito além da questão sanitária. A ameaça iminente de despejos judiciais em áreas sob conflito aumenta o risco de contágio e vem despertando a atenção de advogados e juristas em todo país.
Foram endereçados pedidos aos Tribunais de Justiça da Bahia, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco e Sergipe, além do Distrito Federal. No Rio de Janeiro, Pernambuco e Piauí a paralisação dos despejos também é tema de projetos de lei que tramitam nas respectivas Assembleias.
Essas iniciativas são acompanhadas, no âmbito federal, pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que expediu recomendações ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ao Comandante-Geral da Polícia Militar pedindo a suspensão por tempo indeterminado de ações de remoção. As recomendações tomam como base a nota conjunta assinada em 16 de março pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, pela Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas e pelo Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.
Na mesma semana, foi apresentado na Câmara o Projeto de Lei (PL) nº 692/2020, de autoria do deputado João Daniel (PT-SE), que altera o artigo 564 do Novo Código de Processo Civil, estabelecendo a suspensão por tempo indeterminado do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou mesmo extrajudiciais, por qualquer motivo, tanto na área urbana quanto rural, em caso de pandemia. O projeto ainda aguarda autorização do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para iniciar tramitação.
Também se manifestaram em favor da suspensão a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Enquanto não há uma diretriz clara do CNJ referente aos despejos, juízes e legisladores dos estados ajudam a estabelecer um entendimento favorável às suspensões. No dia 7 de abril, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou o projeto de lei 2.022/2020, que proíbe processos de remoção até o término da pandemia. O texto aguarda sanção do governador Wilson Witzel (PSC), diagnosticado com a Covid-19 na última semana.
Na região Sul, as suspensões vieram pela via judiciária. Em 20 de março, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná publicou decreto suspendendo o cumprimento de “ordens de reintegração de posse por invasões coletivas” até o dia 30 de abril. Mais permissivo, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul paralisou todos os atos, “salvo os que forem urgentes e deferidos durante o período”.
No restante do país, foram expedidas decisões sobre casos específicos. Ainda em março, atendendo a pedido do Ministério Público Federal (MPF), a procuradora Natália Lourenço Soares suspendeu o cumprimento da ordem de reintegração de possse em uma área pertencente à Usina Estreliana, em Gameleira (PE), ocupada, desde 1995, por 111 famílias sem terra. Em 2017, o acampamento foi alvo de pistoleiros, que incendiaram casas e barracos antes de fugir.
Enquanto isso, tramita na Assembleia Legislativa de Pernambuco um projeto de lei que estende a decisão a todo o estado. O mesmo também ocorre no Piauí.
No Distrito Federal, a Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário suspendeu, até o fim do mês, o despejo da ocupação Dorothy Stang, em Sobradinho. Na petição, endereçada também ao Governo do Distrito Federal, o defensor público Rodrigo Duzsinski afirmou que suspensões podem evitar contaminação em grande escala.
A ação conjunta da Defensoria Pública e do Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA) resultou na suspensão de reintegração da posse de um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) em Feira de Santana. No texto, os órgãos afirmam que, por ora, não discutem quem tem a posse da fazenda, mas que priorizam recomendações normativas do Ministério da Saúde de “isolamento social, para a preservação da saúde das pessoas”. Na decisão em que acata o pedido, a desembargadora Márcia Borges Faria afirma que se pretende evitar “danos potenciais de elevada proporção” frente à pandemia.
No mesmo caminho, a Defensoria Pública de Minas Gerais pediu ao Comando-Geral da Polícia Militar do estado que suspenda o cumprimento de reintegração de posse ou ações de despejo em todo o território mineiro. O documento destaca as consequências de remoção em período de calamidade pública e demonstra preocupação com o desamparo a que estariam sujeitas as famílias removidas. O documento lembra que entre as famílias existem crianças, adolescentes e membros no grupo de maior risco, como idosos, pessoas com deficiência, mobilidade reduzida, que vivem com doenças crônicas e HIV.
No dia 7 de abril, a juíza Tatiana Pattaro Pereira, da 14ª Vara Cível Federal de São Paulo, aceitou o pedido de tutela provisória da Defensoria Pública de São Paulo e suspendeu, por tempo indeterminado, as obras em terreno vizinho da Terra Indígena Jaraguá pela Construtora Tenda, que tem entre seus acionistas o bilionário Jorge Paulo Lemann e um fundo do Banco Itaú. A decisão leva em conta o cancelamento da audiência marcada para o dia 6 de maio, em função da recomendação do CNJ de adiamento de prazos processuais.
Outros dois despejos, desta vez urbanos, foram evitados com base no perigo de contágio do coronavírus, um em São Bernardo do Campo e outro na capital paulista. Neste último, o juiz Alexandre Bucci, da 10ª Vara Cível de São Paulo, suspendeu por trinta dias a remoção de 41 famílias no bairro da Bela Vista, região central, argumentando a necessidade de garantir a segurança dos policiais. Para o magistrado, haveria “aparente oportunismo” das famílias ocupantes, mas a medida se justifica para “não trazer aos agentes públicos mais problemas do que aqueles atualmente já enfrentados por toda a sociedade paulistana”.
Embora reconheçam a importância dessas medidas, especialistas consultados pela reportagem afirmam que é necessário um posicionamento de instâncias superiores para evitar que despejos sejam realizados durante a pandemia. “Enquanto não houver uma decisão de um tribunal superior ou uma decisão administrativa do TJBA, isso acaba ficando a cargo de cada juiz, de cada magistrado, de cada comarca”, afirma Mauricio Correia, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais do Estado da Bahia. “Essas medidas não deixam de ser relevantes, mas a importância de ações como essa da Defensoria é dar um alcance geral, pois muitos entes privados veem nisso uma oportunidade de avançar sobre os territórios”.
Para Maíra Moreira, assessora jurídica da Terra de Direitos, a falta de uma diretriz única no nível federal e estadual aumenta o risco de que proprietários rurais tentem desocupar as áreas em disputa à força, aproveitando-se da indefinição do Judiciário: “Ataques são um risco. Quando olhamos os requerimentos da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, ela também aciona diretamente a chefia das instituições policiais no sentido de garantir que quaisquer tipo de ameaças nesse contexto sejam contidas”.
Segundo Maíra, há um risco de que proprietários procurem finalizar medidas de despejo por conta própria. “Por isso há também um desafio de apoio e proteção à essas comunidades”, afirma.
É a situação vivida pela Comunidade Terra Livre, em Resende (RJ), desde o dia 7 de abril, quando o juiz Marvim Ramos Rodrigues Moreira, da 1ª Vara Cível de Resende, acatou uma ação de reintegração de posse movida por Orlandino Klotz Neto. Ele foi autorizado a expulsar cerca de cem famílias do MST que ocupam a área desde 1999. Na manhã da última sexta-feira (17), seguranças privados tentaram invadiram a área à força para remover os moradores, que resistiram. Um dia após o episódio, a liminar foi suspensa por tempo indeterminado pela desembargadora Maria Aglaé Tedesco Villardo.
O advogado Mauricio Correia observa que, em geral, os grupos sob ameaça de despejos, urbanos ou rurais, são já vulneráveis e têm recorte de gênero e de raça. Ele observa que, em uma situação como essa, de fragilidade num nível generalizado, essas populações vão ter mais dificuldades para enfrentar as consequências da Covid-19.
— O despejo num momento como esse chega a ser uma questão de violação de direitos humanos. Impedir o acesso de famílias rurais à terra e ao meio de produção é também impedir que essas famílias possam contribuir para o abastecimento, quando todos os esforços têm que estar voltados ao enfrentamento dos efeitos da pandemia.
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Foto principal: Despejo do acampamento 17 de Abril em Santana do Acara no Ceará. (Foto: Divulgação/MST)