Em meio à pandemia, eles têm medo de morrer, mas de morte “matada”; Agropecuária Mata Sul S/A vigia posseiros com câmeras em postes; boletins de ocorrência registram tentativas de atropelamento pelo dono da empresa, irmão de um prefeito da região
Por Yago Sales
Nos últimos dias, além de se preocupar com a pandemia do novo coronavírus, o agricultor Ernandi Vicente Barbosa da Silva, de 52 anos, tem medo de ser assassinado. Enquanto cuidava para que o pequeno roçado — mandioca, feijão, maracujá, milho, banana — vingasse, em um sábado de abril, Ernandi foi avisado para ter cuidado. Isto por causa de denúncias que vem fazendo contra a Agropecuária Mata Sul S/A no Engenho Fervedouro, no município de Jaqueira, na região de Palmares, no sul de Pernambuco.
Na quarta-feira (13), como ilustra a foto principal desta reportagem, os camponeses flagraram imagens da repressão feita por policiais militares durante uma reintegração de posse, com armas de grosso calibre. São setenta famílias de posseiros contra a empresa, arrendatária de uma usina. Moradores contam que crianças e idosos foram agredidos pelos PMs. Foram utilizados sprays de pimenta e balas de borracha.
A comunidade do Engenho Fervedouro se tornou um cenário de guerra nos últimos anos, com utilização de helicópteros e drones, vigilância cerrada, tentativas de atropelamento e utilização de agrotóxicos como se fossem armas químicas. Isto numa comunidade onde alguns posseiros estão lá há mais de sessenta anos.
Ernandi e outros camponeses são alvos do fazendeiro e empresário Guilherme Cavalcanti de Petribú De Albuquerque Maranhão, mais conhecido como Guilherme Maranhão, proprietário da Mata Sul S/A. A propriedade foi arrendada da falida Usina Frei Caneca, inicialmente em dezembro de 2013, pelo advogado Luiz de Sá Monteiro, sócio do escritório Sá Monteiro, Caribé & Advogados Associados. No contrato, o advogado também se define como pecuarista.
Com escritório em Recife, Luiz de Sá Monteiro costuma ser acionado por usineiros, sobretudo quando eles são acusados de fraudes imobiliárias com credores. Monteiro já exerceu os cargos de procurador do Estado de Pernambuco e secretário de Finanças da prefeitura do Recife. Também foi secretário da Justiça e, como substituto, secretário da Indústria e Comércio e da Fazenda. No extinto Banco do Estado de Pernambuco (Bandepe), ocupou cargos de diretoria até a presidência.
Nas últimas décadas, Monteiro fez fama em Pernambuco entre usineiros à beira da falência. Foi assim com a Usina Catende (Mata Sul) e na Usina Aliança (Mata Norte), empresas com valores bem maiores do que a Usina Frei Caneca. Caberia ao advogado dar um jeito de arrendar. No caso da propriedade em Jaqueira, colocando em risco a permanência dos camponeses. Utilizada para a monocultura de cana-de-açúcar, a propriedade se transformaria em pasto.
Cinco anos depois de arrendar as terras, em fevereiro de 2018, Monteiro foi ao cartório e cedeu a exploração da área para a empresa Negócios Imobiliários S/A, que depois passou a se chamar Agropecuária Mata Sul S/A, propriedade de Guilherme Maranhão. Pertencente a uma tradicional família de usineiros pernambucanos, ele é irmão do prefeito Marcello Maranhão (PSB), de Ribeirão, município a menos de uma hora de carro de Jaqueira.
A partir daí, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) alertou para investidas cada vez mais violentas contra os agricultores. Em uma das mais graves, no dia 23 de abril, o agricultor Ernandi e outros produtores registraram boletim de ocorrência na delegacia de Jaqueira após quase terem sido atropelados pelo fazendeiro. Segundo eles, propositalmente.
Os agricultores contaram que o pecuarista avançou, com a Toyota SW4 preta que conduzia, sobre um grupo de nove pessoas que voltavam para a sede do engenho. Entre eles, Ernandi. Ele contou que, ao avistarem o carro, deram passagem para o fazendeiro. Maranhão, após acelerar a caminhonete para cima do grupo, deu marcha a ré e tentou atropelá-los novamente. “Tinha crianças com a gente”, lembra-se o camponês. “Por sorte pulamos as cercas”.
No mesmo dia, Guilherme Maranhão foi à delegacia de Jaqueira e contou uma história diferente. Segundo o fazendeiro, os posseiros “cercaram seu veículo e desferiram golpes de facão e foice nos vidros e lataria”. Para a escrivã, Maranhão contou que o conflito ocorreu quando foi à região instalar os postes com câmeras. Os camponeses afirmam que a intenção era a de vigiá-los.
Entre os dias 3 de fevereiro e 5 de maio de 2020, funcionários, um advogado e o próprio Maranhão registraram cinco boletins de ocorrência contra os agricultores. No dia 3 de fevereiro, Erikyson Diego Felix Bezerra, funcionário da agropecuária, foi reclamar dos trinta metros de cerca de arame cortados. No dia seguinte, enquanto o advogado da fazenda, Anderson Feitosa, reclamava que os agricultores danificaram o sistema de água e que soltaram o rebanho, o chefe de segurança da fazenda, Maurício Jacinto de Santana, afirmou que um grupo, que teria impedido de funcionários de trabalhar com os gados, o teria ameaçado de morte.
Dois dias depois, 5 de fevereiro, Bezerra voltou à delegacia: reclamava que os moradores teriam impedido, de novo, que os funcionários entrassem no pasto e ameaçado soltar os bois. Três meses depois, no último dia 5, em mais um episódio de conflitos, Santana registrou boletim de ocorrência acusando os camponeses de estarem armados durante uma discussão por causa da instalação de câmeras.
No dia seguinte à tentativa de atropelamento, o agricultor Ernandi cuidava da plantação quando foi avisado que corria risco de vida. “Um morador da comunidade tinha sido procurado por alguém da empresa e disse que a coisa era muito séria para mim”, diz ele, preocupado. “Eu temo pela minha vida e da minha família”. Ernandi conta que essa fonte pediu sigilo.
Antes disso, conforme contam camponeses ouvidos pelo De Olho Nos Ruralistas, a empresa Mata Sul instalou postes e câmeras viradas para as comunidades. Além disso, seguranças fortemente armados da empresa de segurança BBC Vigilância e Serviços e possíveis policiais militais da reserva ou aposentados que controlam acessos passaram a servir como interlocutores de ameaças. Sempre que o sinal das câmeras cai, ou os postes aparecem danificados, policiais militares em viaturas são chamados para tirar satisfação com os moradores, acusando-os pelos danos.
“Se não deixarem colocar câmeras, vocês vão se foder”
A reportagem teve acesso a vídeos que mostra policiais acompanhados pelos seguranças e funcionários da Agropecuária Mata Sul em pelo menos duas situações. Um exemplo: no dia 07, PMs distribuídos em duas viaturas foram à região. Um vídeo gravado por uma agricultora mostra os policiais conversando com seguranças que acompanhavam a batida de dentro da caminhonete da empresa de vigilância, contratada pela Mata Sul para monitorar a propriedade. Um policial tira a arma do coldre, segurando-a na altura do peito, causando medo entre os camponeses.
Uma mulher sugeriu que as pessoas fizessem uma live no Facebook para “evitar o pior”. Segundo uma agricultora que pediu anonimato, um dos policiais ameaçou: “Se não deixarem colocar câmeras, vocês vão se foder. Vocês não têm dinheiro”.
Pelo WhatsApp, os camponeses avisam sobre qualquer movimentação nas imediações dos sítios. Foi assim por volta das 14 horas do dia 7 de abril, quando um helicóptero sobrevoava as lavouras. A violência foi registrada em vídeo e noticiada pela Regional Nordeste da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
De longe, Reginaldo Felix Filho avistou quando a aeronave despejou um líquido branco sobre a plantação de banana: “Eu e alguns agricultores nos reunimos e seguimos o helicóptero para saber onde estava abastecendo, mas por causa das cercas, era impossível. Quando começamos a filmar, o helicóptero desapareceu”.
No contrato — ao qual a reportagem teve acesso — ficou acertado que a agropecuária pagaria R$ 3 mil para cada um dos 8 hectares onde o piloto Bernardo Nicoletti Heller despejaria “adubo foliar liquido”.
Em resposta ao Ministério Público do Estado de Pernambuco sobre denúncias dos agricultores do uso de agrotóxico, no entanto, a agropecuária argumenta que o helicóptero utilizou “jatos de água sobre grama plantada com papel hidrossensível, com o objetivo de averiguar a eficácia e a faixa de aplicação, bem como a quantidade de gotas lançadas”.
Em um dos vídeos gravados pelos camponeses, no entanto, é possível ver uma ave agonizando no chão. Além de dor de cabeça, vômito e tonteira, eles contam que perderam plantações. “Fora os animais que morreram e fontes de águas que foram contaminadas”, lembra Felipe Felix, de 15 anos, filho de Reginaldo. Em sua defesa ao Ministério Público, a agropecuária sugere que os posseiros não têm provas da pulverização e que poderiam ter utilizado imagens da internet para denunciar o uso do agrotóxico.
Também pelo grupo do WhatsApp, os camponeses compartilharam que havia um drone sobrevoando as casas no dia 8 de maio. “Isso é uma provocação”, reclama uma delas. “Eles precisam vigiar os bois e não a gente”.
Cerca de 1.200 camponeses vivem na região, distribuídos em cinco propriedades: os Engenhos Fervedouro, Barro Branco, Várzea Velha, Laranjeira e Caixa D’Água. Parte deles reclama de tentativa de expulsão em forma de ameaças e destruição das plantações pela empresa Negócio Imobiliária S/A, que, em 2017, arrendou as terras da desativada Usina Frei Caneca.
Somados a débitos fiscais, previdenciários e dívidas trabalhistas com parte dos trabalhadores rurais, a Usina Frei Caneca deve mais de R$ 200 milhões à União. A agropecuária, contudo, não produz cana-de-açúcar. Arrendou 5 mil hectares, cerca de 60% de todo o município de Jaqueira, para criar cabeças de gado, que circundam os assentamentos.
Advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Bruno Ribeiro de Paiva reafirma as ameaças sofridas pelos agricultores. “Tudo parte das empresas Negócio Imobiliário S/A e Empresa Agropecuária Mata Sul S/A, que destrói lavouras arbitrariamente, inclusive utilizando gado de sua propriedade. Os agricultores também são ameaçados pessoalmente, de forma constante. Algumas vezes, nessas suas ações truculentas, as empresas têm recebido o ilegal acompanhamento e o arbitrário apoio de agentes policiais”.
Segundo o advogado da CPT, as duas empresas integram um grupo econômico que é conhecido por ter quebrado outra grande usina na Mata Sul, a Usina Estreliana, fechada há três anos e atualmente em regime de recuperação judicial. “O processo tem claros indícios de ser uma tentativa de fraude à execução de credores públicos privados e trabalhistas”, acredita Paiva. “Os débitos da Usina Estreliana ainda são maiores que o passivo da Usina Frei Caneca”.
O advogado fala em sonegação de impostos e de “um histórico bastante conhecido em Pernambuco quanto a práticas de ilegalidades e de gestões ruinosas e fraudulentas”. E reclama que o Poder Judiciário atua com parcialidade: “Esse poder tem sido favorável às manipulações das empresas citadas. Essa posição, infelizmente, estimula o ciclo de violências. A Justiça não tem analisado com isenção e equidade, as petições e os direitos dos trabalhadores posseiros, o que se repetiu nas decisões judiciais proferidas”.
Um dos coordenadores da CPT, Plácido Junior, defende que os conflitos são “mais um capítulo dessa história da violenta apropriação de terra a qualquer custo, apenas com novos contornos.” Geógrafo, Júnior lembra que a concentração de terras na Região ocorreu com um processo violento contra comunidades camponesas e contra os povos originários.
— A história do latifúndio no Brasil é a história da violência contra povos originários, do trabalho escravo e da tomada das terras camponesas. Em Jaqueira já existiu um aldeamento indígena e já foi refúgio de ex-escravos, quilombos que foram perseguidos e tiveram suas terras e territórios tomados. Todas as terras no município de Jaqueira estão encharcadas do sangue desses povos.
Para o De Olho Nos Ruralistas, Júnior pergunta: “Como a falida usina Frei Caneca conseguiu ter 5 mil hectares de terras na região?”. Ele mesmo responde: “Na Zona da Mata de Pernambuco as usinas falem, os usineiros não. Este é um dito popular na região. Os usineiros não falem e não pagam suas dívidas com terras”.
Júnior ainda lembra que a Usina Frei Caneca, que arrendou as terras à agropecuária, havia acordado que pagaria dívidas trabalhistas em terras aos agricultores. “Esta mesma usina reconhece que centenas de famílias vivem em suas terras, pois a maioria das dívidas trabalhistas não foram quitadas, e outra parte deveria ser paga com terra, em um acordo feito pela própria usina, mas que nunca foi registrado junto ao cartório de registro de imóveis, portando nulo”, explica.
“Qual o objetivo do arredamento e do subarrendamento?”, pergunta Plácido Júnior. “Qual o objetivo da mudança do nome da empresa? Expulsar os camponeses posseiros das terras para recuperar os 5 mil hectares de terra que estão cheias de dívidas, pois, se fossem cobradas, estas terras deveriam ser utilizadas como forma de pagamento”.
Segundo ele, a agropecuária atua em duas frentes: no judiciário, tentando dar legitimidade a um arrendamento muito peculiar. Uma área de 5 mil hectares foi arrendada por apenas R$ 18 mil, por vinte anos. E os primeiros vinte anos não foram pagos. Em segundo lugar, com a violência, inerente ao latifúndio.
Plácido Junior usa a expressão “guerra” para classificar os conflitos entre a empresa e os posseiros. “A utilização do veneno aplicado pela empresa contra as comunidades camponesas no mês de abril foi uma tática de guerra, contra as comunidades e contra a vida no município de Jaqueira”.
Ele ainda denuncia que o veneno utilizado, segundo os camponeses, foi o Tordon:
— Na guerra contra o Vietnã, os EUA utilizaram o agente laranja como forma de eliminar as folhas das árvores nas florestas para visibilizar os vietnamitas e poder combatê-los abertamente. Terminada a guerra do Vietnã, com vitórias dos vietnamitas, esta tecnologia nociva à vida foi reempregada na agricultura. Alguns dos venenos que compunham o agente laranja são utilizados até os dias atuais na agricultura, que são o Tordon e o glifosato. Criados para a guerra, estes venenos foram utilizados posteriormente no agronegócio.
Devido ao monocultivo de cana-de-açucar, a Zona da Mata de Pernambuco tem apenas 5% da sua vegetação original. Como as famílias camponesas são o principal empecilho para impedir uma das maiores fraudes na aquisição de terra, argumenta o advogado, o campo precisa ser “limpo” para as terras continuarem concentradas. “A limpeza no campo em Jaqueira é a expulsão das famílias, seja com veneno ou seja com ameaça de morte, como é o caso de posseiro ameaçado”.
Em uma comunidade vizinha, a de Barro Branco, funcionários da Agropecuária Mata Sul tentaram cercar a fonte de água dos moradores, no dia 3 de abril. O mesmo tinha acontecido no dia 20 de março, ainda segundo a Comissão Pastoral da Terra. Os camponeses temem a contaminação por coronavírus.
O empresário Guilherme Maranhão e o prefeito de Ribeirão, Marcello Maranhão, são parentes de Gustavo Maranhão, dono da Usina Estreliana. A reativação da usina no município de Ribeirão tem o apoio do deputado estadual Clóvis Paiva (PP), por sua vez dono de engenho, filiado ao Sindicato da Indústria do Açúcar e Álcool de Pernambuco, e do próprio prefeito.
Em abril, Marcello Maranhão formou uma comitiva com diretores da Estrelliana para reativação da empresa de sua família. Essa usina tem um histórico de violência que precede o próprio golpe de 1964. Em julho de 2019, o deputado e Guilherme Maranhão, representando a Estreliana, estiveram com o governador Paulo Câmara (PSB), um aliado do prefeito Marcello, durante pedido de reabertura da usina em Ribeirão. Como resultado, Clóvis Paiva anunciou um investimento de R$ 6,5 milhões na usina.
Um dos dois diretores da Estreliana, Guilherme Maranhão é dono de uma usina em Ribeirão, a Ribeirão Energia Ltda. O irmão Marcello, por sua vez, conforme declaração entregue ao Tribunal Superior Eleitoral em 2018, possui dois engenhos em Cabo de Santo Agostinho, na região metropolitana do Recife.
O observatório tentou contato com a Agropecuária Mata Sul S/A, mas não foi atendido. Em conversa com a reportagem pelo Whatsapp, o chefe de segurança Maurício Jacinto não quis responder às perguntas. Pediu identificação do repórter, depois disse que procuraria o advogado. “Só falo por ordem judicial ou da fazenda”, disse, em áudio, antes de bloquear o contato.
O escritório de advocacia Queiroz Cavalcanti, que defende a empresa, ficou de responder a um questionário enviado pela reportagem por e-mail.