Ele idealizou um bairro indígena em Manaus, o Parque das Tribos; vítima da Covid no dia 13, ele fez questão de reivindicar educação e saúde para as diversas etnias que ali se reuniram, diante dos conflitos com grileiros, madeireiros e garimpeiros nas aldeias
Por Maria Fernanda Ribeiro
A criação de um bairro indígena em uma metrópole cravada no meio da floresta amazônica era o sonho de Messias Kokama, 53 anos, que morreu no dia 13 de maio, vítima da Covid-19. Moradia digna para todos os povos que desejassem viver em Manaus, cidade de 1,7 milhão de habitantes, foi a grande luta do cacique, que não deixou apenas uma ideia como legado, mas uma comunidade onde vivem 700 famílias de 35 etnias do Amazonas, o Parque das Tribos.
Claudia lembra do encontro dele com o então governador José Melo (Pros), quando abriu o coração e compartilhou com o político sobre o sonho que o movia. Melo não só fez pouco caso dos anseios de Messias como o orientou que esquecesse isso. O político teve o mandato cassado em 2017 por compra de votos durante a eleição de 2014. Messias saiu do encontro disposto a mostrar para Melo que o sonho de alguém não se desdenha.
Em 2018, quatro anos após as famílias entrarem no terreno, o Parque das Tribos recebeu suas primeiras camadas de asfalto, resultado de uma nova parceria estabelecida por Messias, dessa vez com o prefeito Arthur Virgílio Neto (PSDB), o mesmo que tem se emocionado, em declarações à imprensa, com o caos da saúde de Manaus. Há quem diga que Virgílio se rendeu verdadeiramente aos encantos do líder indígena. Para outros, se tratou de mais um jogo político para angariar votos.
No dia 22 de agosto de 2018, homens e máquinas da Prefeitura de Manaus entraram na comunidade e as ruas — não todas — começaram a ser asfaltadas.
Foi um dia de comemoração no Parque das Tribos e as declarações de gratidão de Messias apareceram nas reportagens da imprensa oficial como um novo capítulo para os moradores da área, de esperanças renovadas e a certeza que a luta pela moradia de qualidade aos indígenas em contexto urbano, na busca por solidificar o espaço físico como terra de pertencimento coletivo, contaria, pouco a pouco, suas vitórias. “O não dos poderosos é o que fez ele ter coragem”, afirma Claudia.
Mas a satisfação de Messias vinha de que talvez o prefeito fosse o primeiro político que tenha enxergado a luta dos indígenas em contexto urbano por moradia digna e de qualidade legítima como qualquer outra. “Tenho muito apreço por essa comunidade”, declarou Virgílio Neto à época. Jogo político ou não, Messias era essa pessoa, que sabia estabelecer parcerias. Até com uma facção criminosa, contam, ele precisou sentar à mesa e conversar para que não mexessem com a sua comunidade. E deu certo.
Mas por que sair da floresta para morar na cidade? Eis a pergunta que os moradores do Parque das Tribos já estão exaustos de ouvir. Não há uma resposta única, mas a busca é sempre por condições melhores, seja para eles ou para as próximas gerações. São as cidades que se aproximam cada vez mais dos territórios indígenas — e não vice-versa, eles ressaltam.
Para o povo Kokama, habitante ancestral do Rio Solimões, o contato com a sociedade não-indígena remonta às primeiras décadas da colonização. De acordo com a publicação Povos Indígenas no Brasil, do Instituto Socioambiental (ISA), os aldeamentos e deslocamentos forçados, impostos primeiramente pelas missões e depois pelas frentes extrativistas, criaram um contexto adverso de reprodução física e cultural desses grupos, que lhes suscitou, por muitas décadas, a negação da identidade indígena.
Desde os anos 80, porém, a identidade Kokama vem sendo cada vez mais valorizada no contexto de suas lutas políticas, que incluem outros povos indígenas do Solimões. São lutas por terras, pelo acesso a programas diferenciados de saúde, educação e por alternativas econômicas.
Messias Kokama era um homem conciliador que, além de ter um bairro inteiro para erguer, ainda precisava administrar, como cacique-geral que era, brigas e desavenças entre os moradores. “Tem bronca entre os parentes pra resolver”, dizia. Não que fosse sempre plácido: suas palavras podiam ser certeiras como flechas e explosivas como pólvora. Mas se Messias falava, os demais ouviam.
Ele compartilhava todo o seu conhecimento e gostava de espalhar em detalhes toda a sabedoria que nutria. Compreendia o mundo e não fugia dele. Enfrentou mandados de reintegração de posse e nunca deixou de comparecer a uma audiência.
Os amigos garantem que tanta sabedoria vinha do conhecimento que adquiriu por conta própria. Se a presença dele um dia foi requisitada para ajudar a implantar o Parque das Tribos, é porque conhecia de lei e se baseava no Estatuto do Índio e na Organização Internacional do Trabalho (OIT) para enfrentar os não-indígenas sem nunca baixar a cabeça.
Por isso sua presença foi solicitada, por exemplo, para ajudar a resolver os imbróglios do terreno de Raimunda da Cruz Ribeiro, sua tia que teria perdido a área onde hoje é o Parque das Tribos por falta de pagamento de impostos.
Segundo texto publicado na Nova Cartografia Social da Amazônia, pelo pesquisador Glademir Sales dos Santes, o nome de registro do líder é Messias Martins Moreira. Ele nasceu em 19 de setembro de 1966 e saiu da comunidade Tabaco, na região do Alto Rio Solimões. Em Manaus, se uniu à sua tia Raimunda e à prima Lucenilda Ribeiro de Albuquerque, mãe e filha que migraram do município de Alvarães para organizar o Parque das Tribos.
Os Kokama fizeram as primeiras reuniões de planejamento da formação do bairro em 2012, realizadas no barracão, localizado no terreno da senhora Raimunda Kokama, situado fora do assentamento Parque das Tribos. A partir daí, Messias Kokama foi reconhecido cacique. Apurinã, Baré, Baniwa, Mura, Kokama, Karapano, Barassano, Piratapuia, Tuyuka, Tariano, Ticuna, Dessano, Marubo, Uitoto, Miranha, Curipaco, Wanano, Sateré, Tukano e até o povo Tupinambá, da Bahia, eram algumas das etnias que se encontravam sob sua liderança.
Eles tinham escola, asfalto e luz, mas faltava o posto de saúde. “Escola é parte fundamental da vida do ser humano e um polo de saúde também”, repetia o líder Kokama ao defender os dois direitos básicos. Ele dizia que sem isso tudo continuaria a ser um sonho. O que Messias queria mesmo é que os povos fossem vistos com outro olhar, como aqueles que querem garantir o espaço social para a afirmação étnica, para garantir a proteção social e produção de expressões culturais; e não como criminosos ou invasores.
O Parque das Tribos encontra-se em litígio e somente quando for oficialmente reconhecido como bairro é que os moradores vão poder comemorar a realidade na qual se transformou a jornada do cacique que liderou muitos povos de uma vez só.
O empecilho para a continuidade dessa história foi a saúde: a etnia Kokama é a que mais acumula casos de infecção e óbitos pelo coronavírus, segundo dados da Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai). São 286 casos confirmados e dezenove mortes.
Além de cacique, Messias era o pastor da Igreja Pentecostal da Missão. Sua despedida cumpriu os rituais cristãos, mas também teve dança indígena, num velório que durou cerca de uma hora. Primeiro a morrer no Parque das Tribos, ele resistiu a procurar ajuda, com medo de se contaminar no hospital.
“Acho que já estou com esse corona aí”, disse para Claudia. Messias foi enterrado ao lado da mãe. “Conseguimos dar a ele um enterro digno”, lamenta a amiga. “Ele fez bem para muita gente e merecia isso”.