Segundo relatório do MapBiomas, desmatamento no bioma foi de 410 mil hectares, um terço da área devastada no país no ano passado; devastação foi mais acelerada em Tocantins, no Piauí e na Bahia, três dos quatro estados que compõem a fronteira agrícola do Matopiba
Por Sarah Fernandes
Os índices de desmatamento no Cerrado alcançam grandes áreas do bioma e atingem majoritariamente unidades de conservação, terras indígenas, quilombolas e assentamentos. É o que aponta a primeira edição do Relatório Anual do Desmatamento no Brasil, lançado no dia 26 de maio pela iniciativa MapBiomas, juntando, pela primeira vez em um único documento, todos os alertas de desmatamento do país.
Isso ocorre porque, em geral, as áreas desmatadas no Cerrado são maiores que na Amazônia. “O desmatamento tem características diferentes nestes dois biomas”, avalia Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas. “Na Amazônia áreas são griladas para serem vendidas e para se fazer dinheiro nessa negociação. Já no Cerrado, o desmatamento acontece mais em função da agropecuária e do avanço da fronteira agrícola”.
Na comparação com anos anteriores, os dados oficiais não apontam aumento no desmatamento do Cerrado. “Um dos motivos para isso pode ser a recessão econômica, já que o desmatamento nesta região está muito ligado a atividade agrícola”, diz Azevedo. Ele diz que, caso a economia melhore, pode haver uma tendência de crescimento do desmatamento. “Em um período recessivo há uma queda na conversão de áreas nativas em áreas de agropecuária porque desmatar e preparar a terra custam”.
A média de área desmatada em cada alerta no Cerrado foi de 55 hectares, a segunda maior do país, atrás apenas do Pantanal, com uma média de 77 hectares desmatados a cada alerta. Biomas como o Pampa e a Mata Atlântica apresentaram médias menores devido à maior fragmentação da paisagem e ao menor tamanho das propriedades rurais das regiões.
O Cerrado é o segundo maior bioma da América do Sul e do Brasil, estendendo-se por 22% do território nacional. A vegetação típica da área varia entre campos, savanas e matas fechadas, com grande diversidade de espécies e imenso potencial hídrico. Atividades agropecuárias ligadas ao agronegócio e o crescimento das cidades são os principais fatores que tensionam as fronteiras de vegetação nativa do bioma, que se espalha por onze estados brasileiros.
Um dos dados mais preocupantes sobre o desmatamento no Cerrado é a velocidade com que a derrubada de vegetação nativa ocorreu na região em 2019. Esse processo foi mais rápido no Cerrado do que em qualquer outro bioma do país: uma média de 1.119,6 hectares desmatados por dia e vinte alertas diários. Esse indicador é calculado a partir da razão entre a área desmatada e o número de dias decorridos entre as imagens de antes e depois do desmatamento e, segundo o relatório, pode ser ainda maior.
Essa velocidade do desmatamento é sempre subestimada, informa o relatório do MapBiomas, pois nem sempre é possível obter uma boa imagem do dia exato do início ou do fim do desmatamento, especialmente nos períodos e locais com alta cobertura de nuvens.
O município baiano de Jaborandi registrou a maior velocidade média de desmatamento para um único alerta. Entre 8 e 27 de maio de 2019, foram desmatados, em média, 60 hectares por dia. Esse alerta diz respeito a uma fazenda registrada no Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais (Cefir-Bahia), mas não no sistema federal do Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Essa falha de informação pode indicar que a área teve autorização para desmatamento, mas o documento não foi localizado. Ao todo, 9.489 alertas de desmatamento no Cerrado ocorreram em imóveis rurais constantes no CAR.
Outro município do oeste baiano aparece em sexto lugar no ranking geral dos municípios com mais alertas de desmatamento. Em 2019, Formosa do Rio Preto registrou 77 alertas, compreendendo uma área de 21.801 hectares.
Outra tendência preocupante é o desmatamento dentro de áreas protegidas. Das 1.453 unidades de conservação (UCs) do país, 226 registraram ao menos um alerta de desmatamento em 2019. Ao todo, a derrubada de vegetação nativa em áreas protegidas representou 11% do total nacional e 12% de toda área desmatada no país no último ano. Uma dessas UCs é a maior ilha fluvial do mundo, a do Bananal.
O maior número de ocorrências desse tipo ficou na Amazônia, onde 13,0% da área desmatada está total ou parcialmente sobreposta a UCs. Na sequência veio o Cerrado, com 10,8%. As unidades de conservação do Cerrado com maior área desmatada foram a Área de Proteção Ambiental (APA) do Rio Preto, na Bahia, com 13.449 hectares, e a APA Ilha do Bananal/Cantão, no Tocantins, na zona de transição entre Cerrado e Amazônia, com 9.756 hectares, onde, no ano passado, foram localizados indícios da presença de indígenas isolados.
O desmatamento acelerado atingiu também áreas historicamente ocupadas por comunidades tradicionais. Entre os quilombolas, o maior desmatamento registrado no país foi na comunidade de Barra do Aroeira, em Lagoa do Tocantins (TO), onde 602 hectares de vegetação nativa foram derrubados em 2019.
De Olho nos Ruralistas detalha, em reportagem específica, os impactos do desmatamento sobre os quilombolas: “Quilombo mais desmatado em 2019 disputa território com políticos do PSL e do PR“.
O problema se repete em terras indígenas: das 573 TIs demarcadas no Brasil, 213 registraram ao menos um evento de desmatamento em 2019. Isso representa 5,9% do total de alertas do país e 3,6% da área total desmatada. “É uma situação alarmante, pois as áreas indígenas são historicamente as mais protegidas”, disse Tasso, durante o evento de lançamento do relatório, realizado virtualmente em razão da pandemia do novo coronavírus.
Para se ter uma ideia, compara o pesquisador, entre 1988 e 2015 foi registrado menos de 0,5% de desmatamento nesses territórios. “E hoje vemos esse crescimento”.
Segundo Tasso Azevedo, em grande parte isso se deve à expansão do agronegócio. Ele diz que no Cerrado se observa menos a expulsão de população tradicionais de seus territórios, como ocorre na Amazônia:
— Essas comunidades enfrentam outro grave problema, que é a pressão da agropecuária sobre o meio ambiente. Para expansão dos plantios, principalmente de soja, são usados agroquímicos, geralmente pulverizados em grandes áreas, e isso traz consequências para as comunidades tradicionais, que podem ter fontes de água e solo contaminados.
Além do Cerrado, outros biomas registraram índices de desmatamento preocupantes. Em todo o território nacional foram identificados e validados 56.867 alertas de desmatamento. Em área, 3.339 hectares de vegetação nativa derrubados por dia. Ou um Parque do Ibirapuera por hora.
Um grupo de apenas cinquenta municípios responde por 44% dos alertas e 50% da área desmatada no Brasil. O ranking é liderado por Altamira (PA), que teve a maior área desmatada detectada em 2019, somando 54 mil hectares. São Félix do Xingu, também no Pará, foi o município com o maior número de alertas: 1.716. Quase cinco por dia.
Os estados que apresentaram a maior quantidade de eventos de desmatamento foram Pará (18,5 mil), Acre (9,3 mil), Amazonas (7 mil), Rondônia (5,3 mil) e Mato Grosso (4,7 mil). Em relação à área desmatada, os estados que concentraram os piores indicadores foram Pará (299 mil hectares), Mato Grosso (202 mil hectares) e Amazonas (126 mil hectares). Os três estados responderam por pelo menos metade de toda área desmatada detectada no Brasil em 2019.
Esses desmatamentos estavam autorizados? Não: a quase totalidade dos alertas em 2019 (99% deles) não possuíam autorização para supressão de vegetação nativa, o que sugere ilegalidade.
| Sarah Fernandes é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Agência Fapesp): incêndio no Cerrado