Empresas beneficiadas durante a pandemia pelo governo Rui Costa estão envolvidas em conflitos com indígenas, como a Veracel, e suspeitas de grilagem; Celso Kieling, acusado de matar o pai, e neto de ex-deputado também ganharam autorizações
Por Sarah Fernandes
Os dados fazem parte de um levantamento da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), que analisou as portarias publicadas em Diário Oficial pelo Inema. As autorizações beneficiam fazendeiros e empresas com denúncias de violações de direitos humanos, como a Veracel Celulose, envolvida em conflito com indígenas, a Canabrava Agropecuária, suspeita de grilagem de terras, e o fazendeiro Celso Kieling, acusado de assassinar o pai e a irmã por herança.
No topo da lista de maiores beneficiados, aparece a francesa Voltalia, do ramo de energia solar e eólica. Sozinha, a empresa recebeu licença prévia para explorar uma área de 3.334 hectares no município baiano de Ourolândia.
Outra multinacional que se destaca no levantamento é a Veracel Celulose, que obteve licenças de instalação para cultivo de monocultura de eucalipto nos municípios de Eunápolis, Itagimirim e Santa Cruz Cabrália. Joint venture entre a brasileira Suzano e a finlandesa Stora Enso, a Veracel é alvo de pelo menos dez ações judiciais envolvendo o desmatamento de áreas de Mata Atlântica, expulsão de camponeses e invasão de terras indígenas. O terriório da empresa no município já foi definido como “cemitério de eucaliptos“.
Demarcada em 1982, a Terra Indígena Barra Velha está com os estudos para ampliação travados desde 2008, após o povo Pataxó retomar parte do território tradicional ocupado pela empresa em 2005, para o plantio de 1.700 hectares de eucalipto. Em 5 de junho, o Ministério Público Federal (MPF) encaminhou um ofício ao Ministério da Justiça solicitando a expedição imediata de portaria declaratória reconhecendo os novos limites da TI.
Em abril de 2019, a Veracel foi condenada pela 6ª Vara do Trabalho de Salvador a pagar R$ 2 milhões por dano moral coletivo. Segundo a denúncia, a multinacional seria responsável pelas práticas de terceirização ilícita, precarização das relações de trabalho e descaso com o meio ambiente. Ainda cabe recurso.
Até o prefeito de Cabrália, Agnelo Júnior (PSD), diz que a empresa ocupa terras devolutas, públicas. Em março, a Veracel recolocou em uma estrada pública uma porteira que ele havia mandado retirar.
Depois da publicação desta notícia, a empresa enviou ao observatório a seguinte nota: “Em resposta a reportagem, Veracel diz que não planta em áreas reconhecidas como indígenas“.
Outra autorização que chama a atenção foi concedida ao fazendeiro Celso Kieling. Em 2010, ele e seu irmão Nilson foram presos em Salvador acusados de mandar matar o pai e a irmã para receberem, a título de herança, uma fazenda no valor de R$ 25 milhões, em Barreiras, município na região oeste da Bahia.
Após diversos recursos, o caso ainda não foi julgado. Em setembro de 2019, última informação disponível, os réus respondiam ao processo em prisão. A mãe dos réus, Leonilda Maria Kieling, é assistente de acusação e chegou a ser sequestrada durante o crime, mas teve a vida poupada.
Kieling recebeu licença para derrubar 654 hectares de vegetação em Jaborandi (BA), município que ganhou destaque no Relatório Anual de Desmatamento por ter registrado a maior velocidade média de derrubada da vegetação para um único alerta: 60 hectares por dia. Mais quatro autorizações de desmatamento foram expedidas pelo governo baiano para Jaborandi.
Entre as empresas do agronegócio, a maior licença de supressão vegetal ficou com a Canabrava Agropecuária, autorizada pelo governo da Bahia a desmatar uma área de 3.159 hectares em Formosa do Rio Preto. O município, que recebeu outras quatro autorizações, é um dos principais polos de produção no Matopiba — fronteira de expansão agropecuária que inclui o oeste da Bahia e partes do Maranhão, Tocantins e Piauí — e aparece em sexto lugar no ranking geral dos municípios com maior número alertas de desmatamento do país, segundo o Relatório Anual de Desmatamento de 2019.
Só no ano passado, Formosa do Rio Preto registrou 77 alertas que, juntos, compreenderam uma área de 21.801 hectares. Um deles, da própria Canabrava: entre 18 de agosto e 12 de outubro de 2019, o Deter Cerrado (Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real) identificou a supressão de 663 hectares de Cerrado nativo na Fazenda Santa Maria d’Oeste 14, de posse da empresa, convertidos para o plantio de soja.
Com sede em Uberaba (MG), onde se destacou como uma das principais criadoras de cavalos quarto de milha do país, a Canabrava Agropecuária é dona de trinta propriedades contíguas em Formosa do Rio Preto. Com mais de 87 mil hectares, a área é alvo de disputa judicial com o fazendeiro Ildo João Rambo desde 2017.
Atual presidente da Canabrava, Mário Renato Palmério Assumpção é neto de Mario Palmério, deputado federal por Minas Gerais entre 1950 e 1962 e embaixador do Brasil no Paraguai entre 1962 e 1964, durante a ditadura de Alfredo Stroessner. Em Uberaba, Mário Renato encabeçou as negociações com a Chongqing Grain Group Corp, estatal chinesa do setor de commodities agrícolas, para atrair investimentos no Triângulo Mineiro. Controladora da Unvierso Verde Agronegócios, a Chongqing concentra ao menos 100 mil hectares de terra no país, parte deles improdutivos.
A maior parte da área liberada para desmatamento é de vegetação nativa do Cerrado: dos 34.307 hectares liberados para supressão vegetal pelo governo baiano, 66,5% pertencem ao bioma, segundo a AATR. Boa parte destinada ao agronegócio.
Dentre as autorizações de desmatamento, 55 foram para empresas ligadas ao setor, sendo dez para a monocultura de eucalipto. O segundo setor mais beneficiado foi o de energia, com 31 licenças. As indústrias química e petrolífera obtiveram 28 autorizações, seguidas pelo setor de mineração, com 23 liberações, e de turismo, com 10, quase todas ligadas a construção imobiliária. As autorizações restantes foram liberadas para os setores de construção civil, infraestrutura e abastecimento e saneamento.
As áreas de Cerrado onde o desmatamento foi autorizado pelo governo baiano são tradicionalmente ocupadas por comunidades tradicionais que dependem desse ecossistema para sobreviver e manter seu modo de vida. Vale destacar que parte dessas liberações demandam estudos técnicos, o que já tem provocado a circulação de pessoas ligadas a empresas em territórios de populações tradicionais em meio à pandemia.
| Sarah Fernandes é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Gustavo Vanni/Reprodução): soja e eucalipto tomam lugar do Cerrado no oeste baiano
LEIA MAIS:
Em resposta a reportagem, Veracel diz que não planta em áreas reconhecidas como indígenas