Um mês antes de levar sete tiros, Edeilson Alexandre foi alvo de uma operação desencadeada pela Polícia Civil, que levou até criança para delegacia; ameaças de seguranças da Agropecuária Mata Sul S/A têm provocado a fuga de famílias que viviam no local há décadas
Por Yago Sales
Uma mal explicada operação autorizada pela Justiça, uma suposta lista com nomes de pessoas marcadas para morrer e um atentado a tiros contra um camponês já levaram duas famílias a abandonar casas e roçados na comunidade do Engenho Fervedouro, no município de Jaqueira, zona da Mata Sul de Pernambuco. O clima de tensão aumentou depois que Edeilson Alexandre Fernandes da Silva, de 24 anos, foi alvejado com sete tiros em uma emboscada no dia 16, em uma área marcada por conflito com a Agropecuária Mata Sul, que contratou empresa de segurança armada para fazer rondas e vigiar os agricultores com câmeras instaladas em postes e drones.
Antes de ser baleado em uma das mãos, nas costas e nas nádegas e de ser internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), onde permanece em estado grave, Edeilson cuidava da plantação de milho, macaxeira e banana durante o dia e cumpria expediente em um posto de gasolina, como vigilante, à noite.
Monossilábica, a mulher dele, que pediu para não ter o nome divulgado, tem medo enquanto conversa com o De Olho Nos Ruralistas. Em poucas palavras, ela lembra que o marido andava cabisbaixo, preocupado, depois de ter uma arma apontada à sua cabeça, vinte dias antes do atentado, por homens que se identificaram como policiais civis: “Olha, moço, a gente fica com medo”.
Embora trabalhasse como vigilante de madrugada, Edeilson foi baleado enquanto ia ao trabalho, por volta das 17 horas, assim que saiu de casa, bem perto da comunidade. Ele pilotava sua motocicleta, que ficou com o tanque perfurado. Pouco depois, a mulher ouviu pelo menos dez estampidos de dentro de casa, onde decidiu ficar quieta, agarrada aos filhos, de 3 e 5 anos.
“Como ele tinha acabado de sair, eu imaginava que os tiros poderiam ter sido nele”, lembra. Ele pilotou a motocicleta um quilômetro adiante até cair, ensanguentado, na sede de Fervedouro. Em um áudio a que a reportagem teve acesso, a primeira pessoa que viu o crime conta, para uma agricultora, que saiu de casa e viu o momento em que Edeilson caía da motocicleta.
No boletim de ocorrência registrado na delegacia de Catende, a mulher do camponês relata que ele foi abordado vinte dias antes do atentado por dois homens que se identificaram como policiais. Sem mostrar qualquer documento, um dos homens apontou uma pistola para a cabeça do agricultor e exigiu uma suposta arma, enquanto outro estava no banco do motorista do carro. Um dos homens, contou ela, tentou efetuar um disparo, mas a arma falhou. A poucos metros, uma testemunha pode ter evitado o crime: um vaqueiro da Agropecuária Mata Sul, não identificado.
Outro homem, em um carro preto, apareceu, ainda de acordo com o B.O., e perguntou aos supostos policiais se tinham encontrado alguma coisa. Com a negativa, eles saíram acelerando os carros. Dias depois, antes da tentativa de homicídio, Edeilson foi avisado de que uma motocicleta rondava a comunidade. Por precaução, ele guardou sua moto na casa de um dos moradores e foi levado ao trabalho de carro.
Na delegacia, uma das testemunhas do atentado contou que um funcionário da Agropecuária Mata Sul colocou luvas, aferiu os batimentos cardíacos do agricultor, e disse que ele “ainda estava vivo” e mexido no próprio celular antes de embarcar em um carro. Outra testemunha, segundo o BO, viu dois homens fugindo do local após os disparos. A reportagem não conseguiu contato com a empresa.
Pelo menos 1.200 famílias vivem nos Engenhos Caixa D’água, Barro Branco, Laranjeira, Fervedouro e Várzea Velha. A Agropecuária Mata Sul pertence ao empresário Guilherme Cavalcanti de Petribú De Albuquerque Maranhão, conhecido como Guilherme Maranhão. Ele arrendou a propriedade da falida Usina Frei Caneca. De Olho nos Ruralistas detalhou em maio os conflitos na região: “Helicópteros, PMs, drones, chuva de agrotóxicos: os ataques contra camponeses em um engenho em Pernambuco“.
Em um deles, Guilherme Maranhão, que é irmão do prefeito Marcello Maranhão (PSB), de Ribeirão, município a menos de uma hora de carro de Jaqueira, tentou atropelar agricultores durante a instalação de câmeras, de acordo com denúncia registrada em um boletim de ocorrência. O escritório de advocacia Queiroz Cavalcanti, que defende a Agropecuária Mata Sul, informou por e-mail que não atua nessa ocorrência e não quis comentar o assunto.
Um dos líderes da comunidade, José Adriano de Andrade, de 42 anos, contabiliza ao menos duas famílias que decidiram fugir com medo de um boato de que uma lista de agricultores “marcados para morrer” estaria circulando na região. “A gente fica com medo, principalmente porque precisamos sair da comunidade”, diz Andrade.
Ele conta que Edeilson era um dos mais ativos em qualquer situação de conflito com a agropecuária: “Estava sempre engajado para evitar a destruição dos sítios e ajudava a impedir a instalação de câmeras que a empresa utiliza para vigiar a gente e não o gado. A gente acredita que ele foi alvo, porque era uma voz aqui e tinha uma rotina para trabalhar fora da comunidade”.
No dia 16 de junho, Edeilson e outros camponeses foram alvos de mandado de busca e apreensão no Engenho Fervedouro, em uma operação encabeçada pela Polícia Civil de Pernambuco, intitulada Jaqueira. Em viaturas, seis delegados ligados à 13ª Delegacia Seccional, 30 policiais civis e 20 policiais militares percorreram doze endereços da comunidade. “Os policiais não encontraram o que o juiz procurava”, diz Andrade. Ele também seria alvo da operação, mas, assim como Edeilson, não foi encontrado, porque a área do seu sítio estava intransitável, por causa do lamaçal provocado pela chuva.
No pedido de prisão temporária e de busca e apreensão domiciliar em 12 endereços, a Polícia Civil justifica a ação para “apurar uma série de crimes de dano, ameaça e cárcere privado praticados por um grupo de pessoas às instalações e funcionário da Fazenda Jaqueira”, de propriedade da Agropecuária Mata Sul S/A.
Na decisão, a juíza Carolina de Almeida Pontes de Miranda escreve que “contra alguns elementos da citada quadrilha pesam ainda indícios da prática de tráfico de drogas e comércio ilegal de armas de fogo”. No documento, a juíza salienta que a “movimentação de grande número de trabalhadores, colocação de iluminação e câmeras de vigilância atrapalharia o tráfico de drogas”.
Durante a operação com forte efetivo policial, contudo, a agente de saúde comunitária Valderice Severiana da Silva, de 41 anos, teve a casa revirada e foi obrigada a acompanhar os policiais à delegacia, ainda que seu nome não constasse no mandado de busca e apreensão. Os policiais procuravam outra pessoa. Valderice ouviu na delegacia, e o mandado confirma a informação, que os policiais procuravam uma “tal de Maria da Associação”, que é ligada à liderança dos agricultores que costumam protestar contra a vigilância da Agropecuária Mata Sul e contra o despejo de agrotóxicos nas plantações.
— Eu ficava perguntando qual Maria eles procuravam, mas eles não sabiam. Os policiais reviraram até o quarto dos meus filhos, e só depois eu soube que estavam atrás de drogas.
Sem ninguém para tomar conta dos filhos dela, os policiais pediram a Valderice que deixasse as crianças em casa, desacompanhadas. “Tentei evitar, mas tive que levar meus filhos para a delegacia, porque não tinha com quem deixar”, conta. “Eles não sabiam meu nome, mas tinham uma foto minha de quando teve um dos conflitos com a agropecuária e fui fotografada”. Nada foi encontrado em sua residência.
Andrade e outros camponeses que pediram anonimato conta que a polícia utilizou uma lista com nomes de pessoas marcadas para morrer para pedir mandados de busca e apreensão à Justiça.
Em entrevista a um site local, o delegado Ariosto Esteves, que comandou a operação, contou outra história. “Nesses meses a gente observou uma série de crimes, entre eles, cárcere privado. A gente observou que tem uma facção que estava utilizando alguns agricultores para intensificar o tráfico de drogas”, explicou, em um vídeo. “Em razão disso, a gente conseguiu identificar algumas pessoas que poderiam estar envolvidas com elas, sob o pretexto de ser uma questão de terra, buscar direitos fundiários, que na verdade não era”.
Esteves justificava, assim, o cumprimento de mandado de apreensão e a prisão de uma pessoa em flagrante: “A gente conseguiu intensificar a identificação dessas pessoas envolvidas com alguns criminosos”.
Procurado pela reportagem, o delegado descartou qualquer relação do atentado contra o agricultor com os conflitos fundiários. Fez isso antes de qualquer pergunta. “Sobre esse cidadão do posto, eu não posso comentar, porque não estou presidindo o inquérito, mas, até onde a gente sabe, ele mora na zona rural, mas é frentista, segurança de um posto e teria algumas inimizades. Na minha ótica, não tem muito a ver com conflito agrário.”
Para ele, os camponeses levados à delegacia são “criminosos”. Em relação às versões sobre o mandado, não soube avaliar se havia contradições: “Essa operação não foi eu quem presidiu. Foi uma operação com mandado judicial, de prisão, de busca, coisa de polícia mesmo. Foi uma operação muito exitosa. Não encontramos droga, mas pegamos três armas de fogo”.
O delegado negou que a operação tenha sofrido influência da empresa agropecuária. “Algum órgão de imprensa disse que foi um caso de luta de camponês contra agropecuária, mas o rapaz não é camponês, é vigilante de posto”, disse, antes de apagar as mensagens de áudio que enviou pelo WhatsApp.
Advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Bruno Ribeiro de Paiva afirma que a operação seria uma forma de buscar a criminalização dos assentados:
— É uma construção articulada entre o delegado Flávio [Marcel Sorolla] e a Agropecuária Mata Sul para criminalizar inocentes, impactando-os, e para tentar desgastar sua imagem na sociedade. Aquela comunidade está lá há muitas décadas, pacificamente morando e tirando o seu sustento, em paz e sem qualquer antecedente criminal por qualquer de seus membros. Nunca praticaram ilegalidades ou crimes de qualquer natureza. Só depois da chegada dos grileiros é que se tenta atribuir a eles condutas criminosas.
O advogado afirma que tem provas do conluio. “O próprio fracasso das buscas e das prisões arbitrárias comprovam essas minhas afirmações, pois nada foi encontrado, apesar de vasculharem as casas das pessoas”, argumenta. “Comprova que foi somente para coagir e intimidar, não para investigar ou apurar as falsas denúncias de tráfico de drogas, algo incabível numa comunidade rural que há décadas se dedica a produzir alimentos”.
O delegado Sorolla, responsável pelo inquérito que associou os agricultores ao tráfico de drogas, está de férias e não foi encontrado. O delegado João Bosco Alves, que investiga a tentativa de homicídio de Edeilson, não atendeu as ligações da reportagem.
| Yago Sales é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Reprodução): conflitos se multiplicam no Engenho Fervedouro, em Pernambuco