Operação em comunidades às margens do Rio Abacaxis envolveu 50 agentes das forças de segurança do estado no começo do mês; para organizações sociais, ação que resultou na morte dos PMs foi “vingança pessoal” de empresário com cargo de confiança no governo
Por Poliana Dallabrida
Ribeirinhos e indígenas acusam a polícia do Amazonas de espalhar o terror nas comunidades às margens do Rio Abacaxis, nos municípios de Nova Olinda do Norte e Borba, ao sul de Manaus. Entre os dias 4 e 14 de agosto, 50 agentes das forças de segurança do estado fizeram uma operação na região depois que dois policiais militares foram mortos, no dia 3 de agosto, supostamente em uma emboscada de traficantes de drogas.
Desde então, ao menos três ribeirinhos e dois indígenas foram mortos (o corpo de um deles ainda não foi encontrado). Segundo os moradores, nenhuma das vítimas tinha ligação com o homicídio dos policiais. Na operação, outras cinco pessoas ficaram feridas e cinco estão desaparecidas. Na última segunda (17), 54 organizações, como a Articulação das CPTs da Amazônia e várias unidades da Comissão Pastoral da Terra, denunciaram publicamente a ação violenta da polícia militar na área.
Intimidação de moradores, incluindo crianças e idosos, invasão de casas sem autorização ou mandado judicial, apreensão de celulares usados para filmar os abusos, proibição de circular pelo rio, tortura, queima de casas e execuções estão entre as denúncias feitas pelos moradores da região.
A ofensiva da PM na região começou depois que o empresário Saulo Moyses Rezende da Costa, então secretário-executivo do Fundo de Promoção Social e Erradicação da Pobreza do Governo do Amazonas, foi baleado no ombro ao tentar pescar sem autorização às margens do Rio Abacaxis, no dia 24 de julho. A região abriga ribeirinhos e camponeses, que vivem nos Projetos de Assentamento Extrativista (PAEs) Abacaxis I e II, e indígenas do povo Maraguá da aldeia Terra Preta, reivindicada como de ocupação tradicional.
Saulo Rezende da Costa é dono de uma pousada em Itacoatiara, na região metropolitana de Manaus, que recebe turistas para a pesca esportiva. Ele também é sobrinho do presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), o desembargador Domingos Jorge Chalub. Em dezembro de 2013, Costa foi preso por desacato ao ser parado em uma blitz da PM.
Segundo relatos de policiais militares, Costa deu uma carteirada nos agentes após ser constado que o nível de álcool em seu sangue estava acima do permitido. Foi quando afirmou que não poderia ser preso porque era conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e sobrinho do desembargador Chalub. Na ocasião, Costa foi preso e solto após o pagamento de fiança.
As águas do Rio Abacaxis são a fonte principal de sustento das comunidades ribeirinhas e indígenas. A pesca no local é permitida somente com autorização legal, para conter o assédio de empresários do ramo de pesca esportiva, que atrai turistas nacionais e estrangeiras para a pesca do tucunaré e outros peixes amazônicos. Membros das comunidades realizam uma espécie de fiscalização para permitir a pesca apenas de quem tenha autorização.
Maiká Schwade, integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Amazonas, afirma que, segundo relatos de moradores, Saulo Rezende da Costa ficou agressivo ao ter negada sua permissão para pescar no local. “Essa pessoa teria super agressiva quando recebeu a negativa da comunidade e teria feito ameaças”, explica.
Segundo a versão dada por Saulo da Costa no Boletim de Ocorrência (BO) registrado no dia seguinte ao conflito, ele saiu para pescar com seis amigos quando a barco em que estava foi cercado por milicianos “fortemente armados, com armas de fogo e armas brancas, além de tochas de fogo”. Ao tentar conversar os “líderes” para permitir que o seu grupo pescasse no local, os “milicianos” tentaram furtar objetos do bote onde estavam. Após fugir, Costa foi baleado no ombro. “Não se sabe quem atirou no sujeito”, ressalta Maiká Schwade, da CPT. “Isso precisa ser esclarecido”.
O controle do acesso de pescadores esportivos na região do Rio Abacaxis tem gerado tensão na região. “As comunidades vêm denunciando a pesca predatória há muito tempo e o governo do estado não tomou as providências”, explica Schwade, da CPT. Após o incidente com o empresário com cargo de confiança no governo de Wilson Lima (PSC), o secretário estadual de Segurança Pública, coronel da PM Louismar Bonates, afirmou não admitir “que alguém queira fechar um rio”.
No dia 1º de agosto, 21 policiais militares foram deslocados para, segundo a PM, apurar os crimes de tráfico de drogas, formação de milícias armadas e plantio de maconha nas comunidades do Rio Abacaxis. O Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas afirmou, em nota, que “os agentes não se identificaram mesmo após horas de atuação e abordagem inicial por lideranças extrativistas” e “chegaram a informar alguns moradores que estavam no local em busca do possível autor do disparo contra o secretário”.
O barco usado pelos policiais era o mesmo que Saulo Rezende da Costa dirigia na tentativa de pesca no local. O uso da embarcação particular na operação foi confirmado pelo secretário estadual de Segurança Pública. “Tal uso, aliado à não identificação inicial, causou pânico em todas as comunidades e aldeias pensando se tratar de ato privado de vingança”, afirma nota do MPF. A instituição foi procurada pelo De Olho nos Ruralistas, mas afirmou que os procuradores não concederiam entrevistas sobre o caso.
Para Maiká Schwade, da CPT, essa operação é mais um exemplo do “uso de forças policiais para fins particulares” no Amazonas. “É como se fosse uma vingança pessoal”, avalia Schwade. “Não que não tivesse que ter investigação, mas teria que ter entrado num inquérito, iniciado uma investigação policial”.
No dia 11 de agosto foi publicada a exoneração de Saulo Moyses Rezende da Costa do cargo de secretário-executivo do Fundo de Promoção Social. Em resposta ao observatório, a Secretaria de Comunicação Social (Secom) do governo afirmou que a exoneração realizada a pedido.
Classificada como “fracasso total” e apressada em dar respostas midiáticas, a operação policial na região terminou com dois policiais militares mortos no dia 03: o cabo da PM Márcio Carlos de Souza e o 3º sargento Manoel Wagner Silva. “Tudo indica que esses policiais foram emboscados por traficantes”, diz Schwade, da CPT. A Secretaria de Segurança Pública do estado trabalha com a versão de que os autores dos disparos sejam integrantes do Comando Vermelho (CV). Outros cinco moradores do local foram mortos.
No dia seguinte às mortes, 50 agentes da PM foram deslocados para a região, incluindo o comandante da Polícia Militar no Amazonas, o coronel Ayrton Norte. “O comandante (Ayrton) Norte já está no terreno e estamos dando todo o suporte necessário”, afirmou o governador Wilson Lima, em coletiva de imprensa. Ele conta ter feito uma determinação: “Comandante, só volte a Manaus quando tiver uma resposta efetiva do que aconteceu. Enquanto não tivermos uma resposta do que aconteceu, não retorne”.
“A partir daí, o MPF passou a receber relatos de diversos atos de abuso e violação de direitos por parte da Polícia Militar contra moradores tradicionais do Rio Abacaxis”, afirma nota do Ministério Público Federal. Invasão de casas sem autorização ou mandado judicial, intimidação de moradores, inclusive idosos e crianças, apreensão de celulares que registraram os abusos, tortura e a restrição de circulação no Rio Abacaxis, impossibilitando o envio de alimentos e o socorro aos feridos pelas ações da Polícia Militar, são algumas das denúncias feitas pelos moradores ao MPF.
“Os indígenas seguem muito aterrorizados, inclusive os ribeirinhos, e estão sem água e sem comida com medo de se deslocarem”, afirmou Edna Pitarelli, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em coletiva de imprensa realizada na Arquidiocese de Manaus na segunda-feira, para denunciar os excessos da operação policial na região. Na mesma ocasião, Fernando Merloto Soave, procurador do MPF, lembrou que “há denúncias, há muito anos, dos ilícitos que ocorrem na região” e que “as próprias populações denunciam o tráfico, a mineração ilegal”.
Em resposta ao De Olho nos Ruralistas, a Secretaria de Comunicação Social do governo do Amazonas afirmou que, “ao contrário do que vem se tentando disseminar”, a atuação das forças de segurança em Nova Olinda do Norte “pretende restabelecer a ordem e livrar essas comunidades da opressão perpetrada por traficantes e lideranças locais, que agiam em uma parceria criminosa que vinha sendo ocultada dos órgãos federais, mas era amplamente conhecida pela população local”.
Até o momento, quinze pessoas foram presas, treze armas apreendidas e quatro plantações de maconha foram localizadas e destruídas. Entre os presos está Natanael Campos da Silva, líder da Associação Nova Esperança do Rio Abacaxis (Anera). Há denúncias de que Silva teria sido torturado por policiais militares na presença do comandante da PM do Amazonas, Ayrton Norte, no dia 05. Ele é acusado de ter repassado informações sobre os policiais aos traficantes locais no dia 03.
Os irmãos Josimar Moraes Lopes, de 26 anos, e Josivan Moraes Lopes, de 18, estavam em um barco que seguia em direção ao município de Nova Olinda do Norte, no dia 05. Moradores que vivem às margens do Rio Abacaxis ouviram disparos e viram uma lancha com PMs cruzar o rio. O corpo de Josimar foi encontrado dois dias depois no Igarapé Bem Assim, localizado dentro da TI. Josivan continua desaparecido.
A comunidade acusa a PM de ter matado os dois irmãos. “O território deles está a dezenas de quilômetros da boca do Rio Abacaxi”, contextualiza Maiká Schwade, da CPT. “Eu quero justiça pelo que a polícia fez dentro da minha comunidade, dentro do meu rio, onde não deveria ter entrado sem autorização”, afirmou à Folha a cacique Alessandra Munduruku, tia dos jovens.
Indígenas Maraguá da comunidade Terra Preta conviveram por quatro dias com três corpos de ribeirinhos mortos, segundo relato de moradores, também por PMs. No dia 09, os corpos de três moradores da comunidade Monte Horebe, pertencente ao Projeto de Assentamento Agroextrativista Abacaxis II, foram encontrados pelos indígenas: o casal Anderson Monteiro e Vanderlania Araújo e o adolescente Matheus Araújo, de 16 anos, filho de Vanderlania.
“Esses corpos levaram dias para serem removidos e a comunidade ficou sem água”, afirma Schwade, da CPT. “O rio tem a foz afogada e a água não circula. Já tem relatos de muita diarreia”. Ele explica que a CPT e o Cimi se organizaram para fornecer água para a comunidade.
Diante das denúncias de abusos, assassinatos e perseguições, o Ministério Público Federal acionou a Justiça Federal, no dia 06, para que a Polícia Federal fosse à região investigar e coibir as violações. No dia seguinte, a juíza federal Rafaela Cássia de Sousa acatou o pedido e determinou o envio de agentes da PF para o local.
O governo do Amazonas pediu à Justiça Federal que reconsidere a decisão de permitir o envio de agentes da PF.
“O órgão classifica a abordagem armada, existente no local em que a Anera atua, como uma atividade irregular, esclarecendo ainda que cabe à polícia judiciária do Amazonas a função de investigar os crimes ocorridos naquela região”, afirma a Secretaria de Comunicação do Amazonas, em nota enviada ao De Olho nos Ruralistas.
Na quinta-feira (20), a Justiça Federal determinou que o governo do Amazonas suspendesse a operação no Rio Abacaxis, atendendo a pedido da Defensoria Pública da União (DPU). Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, a fase ostensiva da operação foi encerrada no dia 14 de agosto.
Em resposta ao De Olho nos Ruralistas, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM) afirmou, em nota, que confirma a morte de sete pessoas, entre elas dois policiais. “Todos os crimes estão sendo investigados pela Polícia Civil”.
Natanael Campos da Silva, um dos quatro presos suspeitos de participação na morte dos dois agentes, é, segundo a SSP-AM, “líder comunitário local que, em associação com traficantes que invadiam terras indígenas, fazia abordagem armada de embarcações na região, ocasiões em que ocorriam crimelideranças de ameaças e até saques”.
Silva afirmou ao MPF ter sido torturado por policiais militares. “Essa , juntamente com alguns familiares do indivíduo apontado como líder da organização criminosa, fez denúncias sobre supostos abusos ao MPF”, diz nota da pasta. “Na mesma ocasião em que relatou ter recebido informes dos supostos abusos a Justiça, o MPF pediu, inclusive, salvo conduto para que o líder da Associação não fosse preso, mesmo antes dele ser considerado suspeito pela morte dos policiais”.
Em relação às denúncias dos moradores da região, a SSP-AM explicou que a Corregedoria Geral do Sistema de Segurança está investigando e ouvindo testemunhas dos casos. “Caso sejam comprovadas ilegalidades, serão tomadas as medidas cabíveis”.
A SSP-AM repudiou a avaliação de que operação que resultou na morte de dois policiais foi mal planejada. Para a pasta, tal afirmação “parte de parlamentares de oposição ao governo, que infelizmente desconhecem a rotina da atividade policial”.
| Poliana Dallabrida é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Divulgação/SSP-AM): linha de investigação por tráfico foi ênfase dada pelo governo estadual