Brasil já tem mais de 1.000 indígenas e quilombolas mortos por Covid-19

País chega a 835 mortos entre as etnias, segundo a Apib, e 166 mortes em quilombos, conforme a Conaq; as duas populações fazem prevenção por conta própria e enfrentam a negligência e os ataques de órgãos dos governos federal e estadual

Por Márcia Maria Cruz

No momento em que o mundo supera 1 milhão de mortes por Covid-19, o Brasil ultrapassa a marca de mil mortos entre dois de seus povos mais atacados: os indígenas e quilombolas. Até esta quarta-feira (30), segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), foram 835 mortos pelo novo coronavírus em 158 etnias. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), por sua vez, já registra 166 mortes nos quilombos.

Atrás apenas dos Estados Unidos e da Índia no ranking mundial de casos, o Brasil tem o segundo lugar no número de mortes, 143.010. Entre os povos tradicionais e originários, a falta de políticas de enfrentamento à doença torna seus efeitos ainda mais devastadores. A população indígena, por exemplo, não chega a 1 milhão de habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas se aproxima, sozinha, das mil mortes.

Mesmo arredondando a população brasileira para 200 milhões de habitantes é possível perceber que a mortalidade entre as etnias é maior (quase um morto a cada 900 habitantes). Se essa proporção fosse a mesma em toda a população, o país já estaria com mais de 200 mil mortos. O IBGE nunca contou a população nos quilombos.

O panorama das mortes entre indígenas e quilombolas pode ser traçado graças ao esforço de organizações sociais que fazem o monitoramento por conta própria, diante da ausência de políticas públicas efetivas no governo de Jair Bolsonaro. “Mesmo com as perdas nosso povo foi forte para se levantar e ter iniciativa para nos proteger”, afirma um dos coordenadores executivos da Apib, Alberto Terena.

De acordo com a organização, o Brasil já teve, até esta quarta-feira, 34.178 casos de Covid-19 confirmados em 158 etnias. Entre os 835 indígenas mortos estão vários anciões, como mostrou o De Olho nos Ruralistas em levantamento sobre cem dessas mortes: “Estas são as faces de 100 indígenas mortos por Covid-19 no Brasil“. A maior parte dos óbitos entre as etnias ocorreu no Amazonas (201), Mato Grosso (135), Pará (89), Roraima (84), Mato Grosso do Sul (80) e Maranhão (68).

Reportagem mostrou as faces de cem indígenas mortos por Covid-19. (Imagem: Reprodução/De Olho nos Ruralistas)

GOVERNO BOLSONARO VETOU MEDIDAS EMERGENCIAIS

Nos territórios quilombolas, a Conaq e o Instituto Socioambiental (ISA) apontam 4.541 casos confirmados e 166 mortes, conforme a mais recente atualização, feita na última quinta-feira (24). Mais três óbitos com suspeita, sem confirmação de diagnóstico. As Unidades da Federação com mais número de mortos são o Pará (46), Rio de Janeiro (38), Amapá (24) e Maranhão (12). Somente esses quatro estados somam 118 dos 166 óbitos, ou 71% do total.

Diante do descontrole da Covid-19 nas aldeias e quilombos foi aprovado no Congresso o Projeto de Lei nº 1.142, que propunha uma série de medidas emergenciais para atendimento dos povos indígenas e comunidades quilombolas. No entanto, em 88 de julho, o presidente Jair Bolsonaro publicoU 16 vetos ao PL. Os artigos vetados asseguravam a distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas diretamente às famílias quilombolas e determinavam à União a criação de programa específico de crédito para quilombolas para o Plano Safra 2020.

O presidente vetou, ainda, artigo que garantia a inclusão das comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares como beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária. E um artigo que facilitava, em áreas remotas, o acesso ao auxílio emergencial nas próprias comunidades.

INDÍGENAS FIZERAM BARREIRAS SEM RECURSOS E SEM PROTEÇÃO

Para garantir o isolamento social, tanto as aldeias indígenas quanto as comunidades quilombolas fizeram barreiras sanitárias por iniciativa própria, desde o início da pandemia. Só que com os recursos disponíveis, em alguns casos com a colocação de troncos de árvores nas estradas, por exemplo. A vigilância por 24 horas é feita, em regime de revezamento, nas comunidades. E eles ainda enfrentam resistência do próprio Estado para garantir o isolamento.

Em 04 de abril, a Polícia Militar invadiu a Terra Indígena Xakriabá, em Minas Gerais. O povo Tupinambá teve a barreira desrespeitada pelo prefeito Vinicius Ibrann (PSDB). No mesmo mês, em menos de dez dias, foram abordados duas vezes para que desfizessem a barreira. Na ocasião, o cacique Babau Tupinambá contou ao De Olho nos Ruralistas que um delegado, cinco PMs e até um vereador, divididos entre um Gol vermelho e uma caminhonete da PM baiana pararam os veículos e pediram que um dos oito indígenas presentes se aproximasse para negociar.

A Apib monitora e sistematiza os dados desde maio, junto às organizações regionais de base. Diante da preocupação com a pandemia, a organização tentou garantir o fornecimento às aldeias de máscaras, álcool em gel, e demais equipamentos de proteção individual (EPI’s). A Apib também cobra as responsabilidades da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e do governo federal como um todo.

Diante da inércia do governo, Alberto Terena afirma que a Apib assumiu o papel de prevenção à Covid-19 nas aldeias.

— Não houve iniciativa por parte do governo federal para o combate à pandemia. Nós tivemos de mobilizar barreiras sanitárias, com pessoas voluntárias dentro das nossas comunidades para fazermos as barreiras sanitárias nas entradas de nossas aldeias, para controlar a saída e entrada de pessoas. Fizemos com toda a dificuldade e sem nenhuma proteção.

Barreira organizada por indígenas na comunidade de Goj Veso (RS). (Foto: Ivan Cesar Cima/Cimi Sul)

Alberto Terena conta que, no início, eles tinham um pouco de álcool em gel: “Nem máscaras nós tínhamos”. Eles não tinham os recursos para obter os materiais de proteção pessoal e, mesmo assim, fizeram as barreiras. O trabalho de prevenção foi iniciado no dia 06 de março, de forma autônoma. A ação foi eficiente por quatro meses. Mesmo com todo o esforço, porém, o novo coronavírus chegou às aldeias: “Seis Terena morrem com sintomas de Covid-19 após inauguração de estrada com prefeito e deputados“.

Alberto conta que houve surto nas treze aldeias de Aquidauana. “Estávamos aflitos”, diz. Quando as primeiras mortes pela doença ocorreram, os povos ficaram assustados. “Em uma semana perdemos sete pessoas e muitas pessoas foram internadas”. A situação se agravou diante da dificuldade de fazer o isolamento social devido à proximidade entre as comunidades. “Já estávamos perdendo vidas para a Covid. Todos os dias recebíamos notícias de pessoas falecendo”.

O enfrentamento à Covid-19 se torna ainda mais difícil quando indígenas e quilombolas precisam lidar com boicote e negligência por parte do governo federal. Alberto Terena conta que a Sesai dificultou que organizações não governamentais prestassem auxílio às comunidades e impediu a atuação dos Médicos Sem Fronteiras:

— Temos de enfrentar a pandemia e os ataques do secretário da Sesai, ataque do general Heleno, tentando incriminar a nossa organização, nossas representações e tentando nos intimidar. Para que não tenhamos a força necessária para defender o nosso povo. É lamentável o que esse desgoverno tem feito.

ORGANIZAÇÕES ACIONAM STF POR DIREITOS FUNDAMENTAIS

Nos quilombos, a falta de titulação impediu que os líderes possam determinar as medidas de fechamento da comunidade a quem vem de fora: “Quilombolas do Vale do Ribeira lutam com as próprias armas diante do avanço da Covid-19“. Sem os títulos das terras, turistas não respeitam a determinação das comunidades de permanecerem em quarentena, como no Quilombo de Porto Velho, no Vale do Ribeira (SP). Outro problema são as empresas que possuem fábricas em territórios quilombolas.

As organizações quilombolas denunciam ainda o descaso da Fundação Cultural Palmares na elaboração de políticas para o atendimento aos quilombos.

Diante das ações contínuas do governo federal de desrespeito aos direitos de indígenas e quilombolas e, sobretudo, a negligência de órgãos governamentais para garantir medidas emergenciais de combate à pandemia, as organizações indígenas e quilombolas recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF).

A iniciativa inédita de apresentar uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) foi tomada pela Apib. Em 05 de agosto, o plenário da corte referendou uma decisão liminar do ministro Roberto Barroso que obriga o governo federal a adotar medidas urgentes para conter o avanço da pandemia nas TIs.

O mesmo caminho jurídico foi adotado pela Coalizão Negra, que protocolou a ADPF 742 no STF, no dia 09, e terá a relatoria do ministro Marco Aurélio Mello. A peça solicita que, em trinta dias, sejam distribuídos gratuitamente equipamentos de proteção individual ao quilombolas, além de água potável, materiais de higiene e desinfecção; pede ainda a implementação de medidas de segurança alimentar, com a distribuição emergencial de cestas básicas.

As organizações também procuram fazer um enfrentamento político ao governo federal. A Coalizão Negra protocolou, em 12 de agosto, o 56º pedido de impeachment contra Bolsonaro. Os integrantes realizaram, nessa data, um ato em frente da Esplanada dos Ministérios.

A Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (Eaacone), em parceria com a Conaq e associações de comunidades quilombolas, protocolou uma representação acerca da situação nos quilombos paulistas, exigindo a criação de um Plano Estadual de Enfrentamento da Covid-19.

Márcia Maria Cruz é jornalista. |

Foto principal (Reprodução/Apib): indígenas e quilombolas acionam STF contra omissão do governo

|| A cobertura do De Olho nos Ruralistas sobre o impacto da pandemia nas comunidades quilombolas tem o apoio da Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo da Google News Initiative ||

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