Iniciativa mundial das Nações Unidas foi vencedora do Prêmio Nobel da Paz; representante no país diz que retomada de investimentos públicos em cooperativas da agricultura familiar é prioritária para impedir avanço da insegurança alimentar
A redução substancial do apoio governamental ao pequeno agricultor, que responde por parte importante do sistema agroalimentar do Brasil, exerceu forte influência no movimento de retorno do país ao mapa da fome. Enquanto o poder político do agronegócio tem evitado que os incentivos ao setor encolham em consequência das sucessivas crises econômicas dos últimos anos, o fomento ao produtor familiar — o camponês — perdeu orçamento e encolheu ao ponto de quase desaparecer.
Essa é a análise do representante do Programa Mundial de Alimentos (WFP, pelas iniciais em inglês) no Brasil e diretor do Centro de Excelência contra a Fome da organização, Daniel Balaban. A WFP foi agraciada no início de outubro com o Prêmio Nobel da Paz por sua contribuição no esforço de buscar soluções para reduzir o problema da insegurança alimentar no planeta, fator importante na eclosão de guerras e conflitos.
A redução da assistência a esses pequenos agricultores, explica Balaban, tem um efeito duplo sobre o aumento da pobreza e, consequentemente, da fome: além de deixar de produzir alimentos em suas lavouras, parte considerável desse contingente de desassistidos acaba migrando para centros urbanos em busca de postos de trabalho cada vez mais escassos.
Balaban lembra que a pandemia de Covid-19 deve agravar o drama das pessoas que passam fome no Brasil e no mundo, mas ressalva que o problema já vinha se aprofundando entre os brasileiros há pelo menos cinco anos. No entanto, segundo ele, há razões para projeções otimistas: o país já foi modelo mundial no combate à fome e tem um dos agrossistemas mais organizados do mundo em termos de equilíbrio de safras e previsões de quebras.
Leia a seguir a íntegra da entrevista concedida a Roberto Lameirinhas:
De Olho nos Ruralistas –A escolha do Comitê Nobel, que premiou o Programa Mundial de Alimentos da ONU com o Nobel da Paz, ressaltou a emergência da agenda da segurança alimentar na atualidade. Que ameaças o senhor considera mais significativas para os planos de combate à fome no mundo? E no Brasil?
Daniel Balaban – O Premio Nobel é um reconhecimento de que acabar com a fome é um primeiro passo muito importante para a paz. De que há uma correlação muito forte entre conflitos, entre guerras, e a fome. Locais onde há fome são mais suscetíveis a conflitos. Há vários estudos que, em relação ao mundo, fazem a ligação entre essas duas vertentes. Assim como crises econômicas, desigualdades sociais são fatores causadores da fome no planeta. Hoje temos 690 milhões de pessoas no mundo, segundo o último relatório da ONU, que estão em estado de insegurança alimentar e nutricional — falamos de mais de três populações inteiras do Brasil — e é um número que está crescendo nos últimos anos. Havia um declínio há cinco anos, mas, depois disso, esse número começou, de novo, a crescer. Tudo muito ligado, logicamente, às crises econômicas e à crescente concentração de renda. Esses são fatores que terão de ser trabalhados, porque não há como nos tornarmos um planeta sustentável com tão poucos ganhando mais do que praticamente quase a totalidade da população mundial. Com relação ao Brasil, temos hoje dados do IBGE mostrando que 10,3 milhões de pessoas, ainda no ano de 2018, já estavam de novo nesta situação de insegurança alimentar e nutricional. O que isso significa? Que temos uma grande parcela da população formada por pessoas que não têm a certeza de que terão um prato de comida para si ou para suas famílias. É um dado ainda mais preocupante no Brasil, que é um dos principais produtores de alimentos no mundo. Não falta alimento, então é preciso debater e discutir o que está faltando.
“Não existe milagre, o tema tem de estar no debate”
Após um significativo período de avanços na política de segurança alimentar no Brasil, os últimos estudos apontam agora para a volta do país ao mapa da fome. A quais razões o senhor atribuiria isso?
A fome tem uma correlação muito forte com problemas econômicos e isso é inegável. A partir do início desse século, entre 2000 e 2009, o Brasil cresceu em média 3,39% ao ano. Não é uma maravilha, mas é o suficiente para um país deste tamanho assegurar um avanço na situação alimentar. Nos últimos dez anos, de 2010 a 2019, essa média caiu para 1,39% — um número muito baixo. Além de não estar crescendo, o Brasil não abandonou a condição de um dos países mais desiguais do mundo. A concentração de renda aumentou nos últimos anos. Isso tudo leva a que uma parcela considerável da população fique desassistida. E há a questão das políticas públicas. O Brasil saiu do mapa da fome em 2014 porque o país colocou o problema em destaque desde os governos do início dos anos 90, ainda com Itamar Franco, quando se criou o Conselho de Segurança Alimentar (Consea) e quando se começou a debater o tema em profundidade. Depois em meados da década, com a adoção de políticas sociais mais fortalecidas, nos governos de Fernando Henrique e Lula. O acompanhamento dessas políticas fez o Brasil atingir indicadores muito interessantes no combate à pobreza, com reflexos na questão da fome. Quando a crise econômica se acentua nos governos da presidente Dilma Rousseff, quando começa o ciclo de redução nos orçamentos públicos desses programas sociais, que se reflete principalmente na produção dos pequenos agricultores familiares — e eles são uma parte da solução, quando estão produzindo bem, mas também uma parte do problema, quando a produção cai e, desassistidos, eles passam a abandonar suas terras em busca de empregos nas cidades. Só se equacionam essas questões com a volta de um orçamento robusto para esses programas. Só assim será possível combater o problema da fome. Se isso não for feito, não existe milagre: o problema existe e é possível resolvê-lo, mas para isso o tema tem de estar no debate do dia a dia da sociedade, do Congresso Nacional, dos governos federal, estaduais e municipais para que as soluções sejam encontradas.
Há um consenso mais ou menos estabelecido de que políticas públicas muito agressivas no sentido da regulamentação da produção de alimentos podem causar desabastecimento generalizado. Por outro lado, temos constatado no Brasil que a liberalização excessiva incentiva o direcionamento da produção para o mercado externo, causando alta de preços. Qual a melhor forma de equilibrar essa questão?
Regulamentar não significa controlar preços artificialmente. É preciso definir parâmetros para organizar e planejar aspectos da produção e dos sistemas alimentares de um país. Essas são ações importantes e um papel do próprio governo. No Brasil, nós sabemos hoje com os “planos safra” quanto será produzido de cada uma das commodities, temos previsões para isso. O Brasil tem uma Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) extremamente forte, que tem capacidade de planejamento para vários anos. Não estamos tratando de um país desorganizado. Então, o que pode ser feito para evitar desabastecimento ou altas de preços? Manutenção de estoques reguladores é imprescindível, pois quando há um choque de demanda como ocorreu no caso do arroz recentemente há meios para buscar o reequilíbrio dos preços. Todos os países do mundo desenvolvido fazem isso. E, no exemplo particular do arroz, é possível manter estoque por um bom tempo. Então o que se precisa é administrar as ferramentas de organização. O Brasil tem as instituições, tem um agrossistema forte, com um agronegócio que ocupa papel de destaque na balança comercial do país. É necessário um planejamento de longo prazo para que se evite tanto o desabastecimento quanto o desequilíbrio de preços no mercado interno. Regulamentação deve vir sobre a base de um planejamento de safras e na previsão de possíveis choques de mercado. Dá pra fazer isso. O Brasil tem capacidade total para se organizar e evitar que esses choques ocorram.
A tendência de aumento da fome, no Brasil e no mundo, já vinha se mostrando consistente desde o ano passado. Mas a pandemia de Covid-19 aparentemente acentuou essa sensação. Esta é uma percepção que, do ponto de vista técnico, faz sentido?
A Covid-19 vai logicamente influenciar negativamente na vida de pessoas que estão em condição de insegurança alimentar e nutricional por uma questão basicamente econômica. As pessoas ficaram reclusas, as atividades tiveram de ser reduzidas, o desemprego também aumentou etc. Crise econômica leva ao aumento da fome. Mas é importante que nós lembremos que o aumento do número de pessoas nessa situação vem aumentando paulatinamente nos últimos cinco anos. Então não é somente em razão da Covid que esse problema se tornou importante. Obviamente, a pandemia agrava o quadro, mas a responsabilidade por essa situação decorre principalmente de fatores como baixo crescimento e de crise econômica. Ações de reequilíbrio fiscal reduziram orçamentos e tiveram reflexos principalmente em programas de fomento destinados aos agricultores familiares e políticas sociais para as famílias mais expostas à insegurança alimentar. Isso teve resultado direto no aumento da fome. São situações que foram se agravando. A única solução agora é buscar fórmulas para ampliar esses programas sociais — se isso não ocorrer, veremos o agravamento da fome no país nos próximos anos.
“Redução de orçamentos retirou eficácia de políticas públicas”
Existe algum modelo estatal que as Nações Unidas consideram mais eficiente na promoção da segurança alimentar? Se houvesse um ranking dos países mais eficientes nesse sentido, em qual faixa dessa escala estaria o Brasil: entre os melhores, mais para o meio da tabela ou entre os últimos colocados?
Esse ponto é interessante porque o Brasil chegou a ganhar prêmios das Nações Unidas por ter um dos mais importantes e mais integradores modelos de segurança alimentar no começo deste século. O país se tornou exemplo para todo o mundo. Hoje, em muitos países da África Subsaariana ou de outras regiões pobres do planeta, existem programas de segurança alimentar e nutricional baseados na experiência de políticas públicas do Brasil. Ou seja, o Brasil não deve nada a ninguém em termos de produção de alimentos ou de organização de seu agrossistema. O Brasil sabe como fazer e tem uma experiência enorme em garantir necessidades básicas para seus cidadãos. O país conseguiu fazer com que menos de 1% de sua população estivesse exposta à insegurança alimentar e nutricional. Essa situação só regrediu porque o Brasil abandonou essas políticas. O agronegócio continua tendo um apoio oficial muito forte a ponto de o país se manter entre os três maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo. Haveria a necessidade de, concomitantemente ao fortalecimento do agronegócio, retomar o apoio aos pequemos produtores familiares. Eles não são concorrentes do agronegócio, mas se consistem de 4,5 milhões de famílias que dependem de políticas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o programa de cisternas e do incremento de programas sociais como o Bolsa-Família ou como a recente Renda Básica Emergencial. Esses elementos, combinados com outras ações de governo, influenciam de modo positivo para fazer com que essa camada da população produza mais, continue trabalhando no campo e, ao mesmo tempo, reúna condições para auxiliar na redução do número de pessoas expostas à fome no país. Uma coisa está ligada à outra. Hoje, os países do mundo que mais conseguiram sucesso no esforço de ampliar a segurança alimentar foram Brasil e China — mas em termos porcentuais o avanço brasileiro foi ainda mais significativo graças as políticas implementadas no início do século. Então, agora, o Brasil precisa olhar para o que funcionou, incrementar e retomar essas políticas. Embora o país não tenha acabado formalmente com essas políticas públicas, a redução de seus orçamentos acabou retirando sua eficácia. Por exemplo, o PAA chegou a ter, em seu auge, um orçamento de R$ 1,5 bilhão. Hoje esse orçamento não chega a R$ 100 milhões. O programa de cisternas atendeu a 150 mil unidades doadas e construídas — hoje atende a menos de 25 mil.
O modelo de agronegócio do Brasil, em contraposição ao da agricultura familiar e cooperativada, é — conforme a crença criada pela propaganda de que “o agro é pop” — eficaz no sentido de garantir segurança alimentar para a população nacional?
Agronegócio, como fica explícito pelo nome, é um negócio. É composto por produtores que buscam lucro. Por princípio não há nada de errado com isso. Então, logicamente, quando se tem uma situação com o dólar tão valorizado como temos agora, perto dos R$ 6, é obviamente muito melhor exportar a produção do que negociar internamente. O problema maior no Brasil, insisto, foi o desestímulo que houve ao agricultor produtor familiar e as cooperativas agrícolas que são responsáveis por uma gama muito ampla de alimentos que são comercializados no país. O que existe é a necessidade de se equilibrar as duas coisas. O agronegócio nunca perdeu o apoio do governo — plano-safra, recursos subsidiados do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), financiamentos do Banco do Brasil — tudo continuou, apesar das crises econômicas. Nunca houve qualquer parada de estímulo à indústria agrícola. Qualquer suspensão de estímulo ao agronegócio causa reação forte na esfera política. Enquanto isso, programas ao pequeno agricultor encolheram. E é esse produtor familiar que tem papel importante na manutenção da segurança alimentar. O funcionamento do sistema agroalimentar depende desse equilíbrio que hoje não existe e é importante ter clareza de que o agronegócio não foi feito para dar solução a esse problema — ele foi feito para obter lucros e sustentar a pauta de exportações do país. E muito do que o o agronegócio produz é para alimentar animais, não pessoas.
Foto principal (WFP/Divulgação): Daniel Balaban defende fortalecimento da assistência ao pequeno produtor como ação eficaz de combate à fome
| Roberto Lameirinhas é jornalista |