Desassistidos, quilombos sofrem com agravamento da fome na pandemia

Em arguição ao STF, comunidades queixam-se da ausência de ações que viabilizem a segurança alimentar, como a distribuição de sementes, outros insumos agrícolas e cestas básicas; enquanto isso, governo corta verbas para reconhecimento de territórios

Por Márcia Maria Cruz

A pandemia de Covid-19 piorou a situação de segurança alimentar nos quilombos em todo o Brasil. Organizações quilombolas queixam-se da dificuldade de manter as roças de subsistência em meio aos conflitos de território que se acirraram, da suspensão de atividades econômicas em decorrência do isolamento social — como a extração de castanha e açaí nas comunidades no Pará — e do aumento no preço dos alimentos.

O quadro se agrava diante da dificuldade de acesso ao auxílio emergencial efetivado pelo governo federal. A situação de calamidade motivou a apresentação de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)  ao Supremo Tribunal Federal, em 09 de setembro. O STF deve analisar a moção nos próximos dias.

Vercilene Francisco Dias, do quilombo Kalunga, de Goiás, ressalta que nos sete meses de isolamento social os conflitos nos territórios quilombolas se intensificaram, com consequências direta na geração de alimentos. Ela é uma das advogadas que assinam a ADPF proposta pela Coordenação Nacional da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) com assessoria jurídica da Terra de Direitos. “A questão da segurança alimentar está muito relacionada à não regularização do território”, questiona a advogada. “Se as comunidades quilombolas não têm os territórios regularizados, como vão produzir?”

Ela conta que a dificuldade é imensa e vai além da falta de terra, que não está titulada, para produzir alimento:

— Não há investimento público. Falta custeio para a produção de alimento (em escala) e as comunidades quilombolas vivem do que plantam na roça e do excedente que conseguem comercializar ou fazer troca. Durante a pandemia, essa situação se agravou.

O orçamento do governo federal para 2021 prevê um corte de 90% nas verbas destinadas à regularização de territórios quilombolas, como mostrou O Globo no início do mês.

DESMONTE DE POLÍTICAS PÚBLICAS INVIABILIZOU PRODUÇÃO

Vercilene Dias destaca outros problemas no território, como queimadas, invasões e desmatamentos, que inviabilizam a produção de alimentos. Segundo a advogada, soma-se às dificuldades do território o desmonte das políticas públicas para a população quilombola. Ela cita como exemplo a extinção do Programa Brasil Quilombola, lançado em 2004 com o objetivo de consolidar os marcos da política de Estado para as comunidades. “Não há acompanhamento do governo”, diz.

O governo federal aponta que foram distribuídas 40 mil cestas básicas. No entanto, segundo ela, esse número corresponde ao que a própria Conaq conseguiu de doações, o que é muito pouco diante da população quilombola. Em todo o Brasil, são mais de 6 mil comunidades. Na ADPF, as organizações solicitam a distribuição de cestas básicas e pedem políticas públicas para facilitar a produção nas comunidades.

A ADPF apresenta dados do relatório Quilombos do Brasil: Segurança Alimentar e Nutricional em Territórios Titulados, realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), segundo os quais 75% dos quilombolas vivem em situação de extrema pobreza, diante do acesso precário às redes de serviços públicos. Os habitantes dos quilombos, segundo a ADPF, sofrem também com a ausência de “ações em escala e com regularidade minimamente eficazes que viabilizem segurança alimentar e nutricional, a exemplo da distribuição de sementes, outros insumos agrícolas e cestas básicas”.

Os problemas são agravados pela ausência de monitoramento, inexistência de plano governamental destinado ao combate dos efeitos da Covid-19 nos quilombos, violações do direito de isolamento social comunitário como medida de autoproteção; ausência de medidas governamentais de apoio à proteção sanitária local; ausência de medidas de proteção da posse tradicional quilombola durante a pandemia. O texto da ADPF destaca que a ausência de políticas públicas leva a deslocamentos forçados coletivos dessas comunidades em período de máxima vulnerabilidade, o que aumenta o risco de contágio pelo novo coronavírus.

SITUAÇÃO DOS QUILOMBOS NO NORTE É DE CALAMIDADE

Os territórios quilombolas no Norte do país foram os que mais sofreram com a pandemia. Além da doença, as comunidades enfrentam a fome. As populações trabalham em regime de mutirão nas roças e hortas e no extrativismo vegetal, como a coleta da castanha. O quilombola José Carlos Galiza, coordenador executivo da Conaq na região, afirma que o isolamento impede a plantação das roças e até mesmo o trabalho extrativista.

— Antes da pandemia, as comunidades não tinham assistência técnica, extensão rural ou tecnologia para melhorar a produção. As comunidades sempre trabalharam como seus antepassados ensinaram, desconhecendo condições para beneficiar os produtos e agregar valor à produção. Com o isolamento social, não se pode mais fazer os mutirões para a roça. As comunidades estão sem produzir e já faltam alimentos para subsistência.

Com a produção de alimentos suspensa, os quilombolas precisam comprar itens que costumavam produzir, como a farinha de mandioca. Outros produtos, como o arroz e o feijão, também precisam ser comprados fora. No entanto, com a alta dos preços, a cesta básica tornou-se proibitiva para os quilombolas.

Diante desse quadro, a Conaq e a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu) promoveram campanhas para a arrecadação de alimentos. A mobilização ajudou muitas comunidades, mas a ação é considerada insuficiente por Raimundo Magno Cardoso Nascimento, quilombola da comunidade África, no município de Moju (PA): “A situação é difícil. Muita gente já sente na pele, ou melhor, no estômago, o bloqueio do auxílio emergencial.” Ele lamenta que não haja uma política de segurança alimentar para atender comunidades neste momento.

COMUNIDADES DO VALE DO RIBEIRA FAZEM DOAÇÕES

Quilombolas e caiçaras da Cooperquivale montam cestas básicas. (Foto: Flávia Nascimento/ISA)

Os quilombolas reivindicam a regularização do território para que possam produzir o próprio alimento. Nas comunidades onde eles podem manter as roças, a colheita permite alimentar a todos e ainda fazer doações. Uma parceria entre a Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), Secretaria de Justiça e Cidadania e Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), em maio, permitiu a doação de 10 mil cestas básicas para povoados indígenas e para a periferia de São Paulo.

As cestas montadas pela Cooperquivale chamam a atenção pela variedade de produtos. Além de itens secos, como arroz e feijão, a cesta era composta por 10 quilos de alimentos in natura. Cada cesta era composta por 5 quilos de arroz, 2 quilos de feijão, um 1 quilo de açúcar, oito tipos de legumes e dois tipos de frutas. Os alimentos foram comprados dos agricultores quilombolas por meio de um convênio com o governo estadual no valor de R$ 750 mil.

Márcia Maria Cruz é jornalista. |

Foto principal (Ricardo Azoury/Divulgação): quilombo em Alcântara

|| A cobertura do De Olho nos Ruralistas sobre o impacto da pandemia nas comunidades quilombolas tem o apoio da Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo da Google News Initiative ||

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