Em decisão da Justiça de Minas Gerais, em 2020, prefeito de São Paulo recebeu a titulação de duas de suas nove fazendas dessa forma, como mostrou esta semana o observatório; professora de Direito da UFRJ fala em desvirtuação do uso do instrumento jurídico
Por Mariana Franco Ramos
Advogados ouvidos por De Olho nos Ruralistas questionam a aquisição, por usucapião, de duas das nove fazendas do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB-SP), em Três Marias, no centro-norte de Minas Gerais. Como mostrou reportagem do observatório, as sentenças favoráveis a ele foram dadas pela juíza Sílvia Maria Paula Nascimento, em junho do ano passado, com três dias de diferença, tendo como base suposta falta de interesse do município, do estado e da União nas áreas. Após a divulgação da reportagem, Nunes apagou os vídeos onde ele mostrava suas terras.
Um das dúvidas que pairam sobre os processos é se as terras eram públicas, o que significaria uma ilegalidade flagrante. Outra dúvida: se as terras forem particulares, se foram cumpridos todos os requisitos legais, como coisa hábil, posse, tempo, justo título e boa-fé. Uma irregularidade é flagrante: Nunes chegou a alegar hipossufiência, o chamado “atestado de pobreza”. Em 2020, ele declarou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter um patrimônio de R$ 4,84 milhões — cifra similar à das declarações anteriores, entre 2012 e 2018.
Os processos de Nunes começaram a tramitar em 2014, quando o político era vereador na capital paulista e concorreu pela primeira vez a uma vaga na Câmara. Na época, declarou um patrimônio ligeiramente menor: R$ 4,35 milhões.
A advogada Julia Ávila Franzoni, professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aponta duas questões, que chamam a atenção em relação ao caso do prefeito. A primeira é a “desvirtuação” do uso do instrumento. “A usucapião está prevista na Constituição Federal como um instrumento de acesso à terra por quem produz e nela mora”, explica. “Foi uma conquista dos movimentos de luta, de reforma agrária, do campo no Brasil” . A pesquisadora diz que não existe nenhuma discussão técnica, em termos jurídicos, que não seja também política.
Segundo o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) César Fiuza, o instrumento não se destina apenas a beneficiar pequenos proprietários ou os mais pobres. “Esse é o objetivo do usucapião especial, no entanto, o usucapião ordinário e o extraordinário destinam-se a beneficiar quem quer que seja que tenha a posse do imóvel, sem ser dono”. De qualquer modo, ele lembra que é preciso checar a questão das terras públicas. “A Constituição Federal e o Código Civil dizem que terras públicas não podem ser objeto de usucapião”, afirma.
Júlia Franzoni coordena o grupo de pesquisa Labá – Direito, Espaço & Política e é associada da ONG Terra de Direitos. “É muito importante situar a memória das vitórias político-jurídicas que a gente tem no nosso sistema e a maneira como elas são desvirtuadas pelo uso das elites e seus pactos com o sistema de justiça, o que fica nítido nesse caso”, afirma.
Ainda em sua avaliação, a política agrícola enredada à política fundiária faz parte da ordem econômica do Brasil: “Ou seja, qualquer política de desenvolvimento desse país, que tem de primar pela Justiça social, tem como um de seus instrumentos a discussão do acesso à terra”.
O segundo ponto lembrado pela advogada é o papel do Sistema de Justiça. “De forma hegemônica, ele tem, reiteradamente, confirmado que cidadão é quem é proprietário”, critica. “O caso do prefeito é só mais um”.
Sobre o tempo que Nunes esperou para receber os títulos das propriedades, sem que ocorresse uma investigação, obrigatória no rito, Júlia faz uma comparação com o que ocorre nos movimentos sociais: “É difícil entrar com uma ação para quem de fato precisa. A Terra de Direitos está há uma década aguardando a instrução de um processo porque o juiz não aceitou as provas que a gente colocou”.
A conclusão, de acordo com a professora, é que só se consegue reconhecer como legítima a demanda dos proprietários, sem interesse na inexistência de provas, caso eles pertençam às elites.
As articulações populares estão montando uma plataforma, chamada de Tribunal Popular Internacional do Sistema de Justiça. Conforme Júlia, o caso revelado por De Olho nos Ruralistas é um dos que devem ser analisados “como exemplo dessa prática reiterada de pacto com as elites”.
O caso também chamou a atenção do advogado Maurício Correia, membro da coordenação da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR). A organização lançou em 2017 a publicação “No Rastro da Grilagem”, sobre nove situações na Bahia, incluindo uma intitulada “A fábrica de ações de usucapião”, que ocorria no município de Gentio do Ouro, no centro-norte do estado.
“Desde então, identificamos a usucapião como um método muito comum, utilizado por empresas e por agentes do agronegócio para operar a transformação de áreas que eles não têm a posse em abertura de matrícula em cartório”, comenta.
Ele observa que o usucapião não é algo proibido. “Tem de olhar caso a caso, porque não é exatamente o instrumento que está errado”, pondera, sem citar especificamente Ricardo Nunes. “Só de ler a matéria, a impressão que eu tive, olhando os mapas, com exemplos típicos de chapadões, é que a chance de se constituir em terras devolutas é muito alta”, afirma.
Trata-se, porém, de hipótese. Se forem propriedades particulares, ele diz ser preciso comprovar que o dono faz uso de toda aquela área. “Se você pegar um chapadão, com vegetação nativa, sem demonstrar uma atividade sequer de posse, de uso, aí podemos dizer que estamos diante de um caso de usucapião completamente ilegal e viciado e que a gente podia inclusive dar o nome de grilagem judicial, mas tem de observar a ação e identificar”.
Imagem principal (Reprodução): Terras de Ricardo Nunes arrendadas para a empresa FerroLigas
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