Por que o prefeito indígena eleito em Pernambuco não toma posse?

Apoiado por Lenine e Dira Paes, o cacique Marcos Xukuru não consegue assumir o cargo em Pesqueira, acusado de uma depredação da qual não participou; Justiça Eleitoral já paralisou três vezes o processo, que agora aguarda decisão do TSE, em Brasília

Por Luiza Sansão

O ministro Edson Fachin pediu destaque no dia 16 do processo que definirá se cacique Marcos Xukuru, eleito prefeito nas eleições do ano passado no município de Pesqueira, no agreste de Pernambuco, poderá tomar posse.  É a terceira paralisação do processo. Depois de ter sido vitorioso na instância municipal e derrotado por quatro votos a três no Tribunal Regional Eleitoral (TRE), o líder Xukuru do Ororubá aguarda, agora, a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em Brasília.

Campanha pressiona para que Marcos Xukuru assuma a prefeitura. (Imagem: Divulgação)

Com 17.654 votos (51,6% dos votos válidos), ele foi o primeiro indígena eleito no estado — dominado pela oligarquia local, representante do agronegócio, há cerca de três décadas. Na internet, há uma campanha por sua posse: #DeixaXukuruGovernar. A atriz Dira Paes e o cantor Lenine gravaram vídeo em apoio ao cacique.

O indígena foi impedido de tomar posse em função de uma situação que o enquadra como “ficha suja”, embora ele não tenha participado do crime patrimonial que lhe foi imputado. Filho do cacique Xicão, líder assassinado em meio à luta pela demarcação do Território Xukuru em 1998, Marcos assumiu a posição do pai e passou a ser também alvo de perseguição pelos fazendeiros de Pesqueira.

Em 2003, enquanto se deslocava com um sobrinho de 13 anos e mais dois companheiros indígenas, foi atacado na estrada por homens que mataram os dois companheiros e levou um tiro de raspão, mas foi salvo pelo sobrinho. Ambos conseguiram fugir e o cacique, então bem jovem, ficou escondido por horas numa mata.

Quando a notícia do atentado chegou à comunidade, os indígenas pensaram que Marcos também havia sido morto. Tomando nota de quem tinha organizado o crime, um grupo foi até a casa do suposto mandante do crime, ateando fogo em seus automóveis e bens. Foi por esse motivo que Marcos foi condenado — sem sequer ter participado do incêndio, já que ele ainda se encontrava escondido na mata, após sobreviver ao ataque que quase lhe tirou a vida, sem que os companheiros soubessem de seu paradeiro.

CACIQUE TENTA BARRAR PODER POLÍTICO DA VELHA OLIGARQUIA RURAL

Para indeferir o registro de sua eleição, o TRE de Pernambuco se baseou nessa condenação e enquadrou o delito de incêndio como crime contra o patrimônio privado. “Quando lançamos a candidatura, nós não tínhamos nenhuma informação a respeito, de que poderia haver problema nesse sentido”, diz o cacique Marcos. “Todas as certidões foram verificadas, teve o rito normal de verificar tudo de quem vai concorrer a uma eleição, não tinha nada que impedisse a minha candidatura. E aí fomos surpreendidos com essa questão da Lei da Ficha Limpa. Pegou todos nós de surpresa”.

Depois de perder no TRE, o processo foi para o TSE e começou o imbróglio. A ação estava sendo discutida de maneira virtual, mas foi solicitada a votação no plenário. Antes que essa sessão acontecesse, uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) reconsiderou a contagem de tempo nos casos de Ficha Limpa, o que deve ser discutido por todos os ministros da STF.  Essa discussão interrompeu os processos do TSE, mas os advogados do cacique recorreram, pedindo que fosse julgado o mérito até a decisão da Suprema Corte. Mais uma vez, foi solicitada a discussão em plenário. “Ou seja, essa ação já teve três paralisações”, conta o assessor jurídico do líder indígena, Marcelo Patu. “A gente não tem ideia de quando isso vai ser resolvido”.

O casal João Eudes e Maria José tenta manter o poder de décadas em Pesqueira. (Foto: Divulgação)

A iniciativa da candidatura de Marcos teve como ponto de partida a necessidade de os indígenas se verem representados na política institucional, levando suas pautas mais longe. “Refleti bastante sobre me colocar na disputa política no município”, conta o cacique. “Passei um ano refletindo se era realmente O que eu queria da minha vida. Em virtude da situação do nosso município e por ser filho dessa cidade, me senti na missão de me colocar nessa disputa. Uma disputa bastante complexa, com muitos enfrentamentos, porque estávamos lidando com o grupo político estabelecido há trinta anos no município, com toda a sua estrutura”.

Marcos refere-se à oligarquia rural, representada principalmente na figura do ex-deputado estadual João Eudes (PP), que foi prefeito duas vezes em Pesqueira e elegeu sucessores. Sua esposa e prefeita até 2020, Maria José de Castro Tenório (DEM), tentou a reeleição e foi a principal adversária de Marcos em 2020. Maria José recebeu 45,84% dos votos e seu partido entrou com a ação para impugnar a candidatura do cacique.

Segundo Patu, a judicialização do processo eleitoral pesqueirense é mais um episódio das injustiças de que o povo Xukuru tem sido vítima. “Essas injustiças nunca foram capazes de silenciar e parar sua marcha por justiça e busca por igualdade”, afirma. “A interpretação elástica da Lei da Ficha Limpa para prejudicar um Xukuru nada mais é que uma tentativa de impedir essa organização sociopolítica de ocupar um lugar de liderança até hoje exclusivo das elites ruralistas locais. Mas temos convicção de que o TSE irá fazer justiça e deixar o Xukuru governar”.

A luta do povo Xukuru teria sido ecoada mesmo que seu líder não tivesse vencido nas urnas, diante da ampliação do diálogo com a população do município ao longo da campanha — como evidenciou tuitaço de apoio ao líder indígena no dia em que Fachin pediu vista do processo. “Eu sabia das dificuldades que viriam”, reconhece o líder indígena. “Mesmo assim, nós nos colocamos, porque acreditamos num projeto que foi começado a partir do Território Xukuru e levado para avaliação da população de Pesqueira. Houve uma absorção por parte da população. Sem dúvida, fomos vitoriosos”.

A vitória no processo eleitoral, para ele, representa o reconhecimento do trabalho de seu povo, o resultado de uma luta que ele quer reverberar para além das fronteiras do Território Xukuru. “Me sinto gratificado com essa missão que recebi, vinda da Força Encantada, dos Encantamentos, e dando continuidade à luta do saudoso e guerreiro cacique Xicão, meu pai.  É muito gratificante saber que temos condições de reverberar um projeto de vida, não só para a nação Xukuru, mas para os povos indígenas no Brasil”.

POVO XUKURU PROTAGONIZA LUTA POR DIREITOS INDÍGENAS NO NORDESTE

Cacique Xicão, que foi assassinado em 1989, com seu filho Marcos. (Foto: Arquivo pessoal)

O processo de afirmação de identidade do povo Xukuru e sua luta pelo reconhecimento do Estado como povo indígena se fortaleceu no fim da década de 80, protagonizado pelo cacique Xicão, cuja luta ganhou projeção nacional e internacional, de acordo com a antropóloga Vânia Fialho, que estuda o povo Xukuru desde 1989.

“Em pleno Nordeste, uma região onde não se falava em indígenas, está se afirmando isso, na contramão da questão fundiária que temos aqui”, afirma a professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “A região de Pesqueira, nesse início do processo de regularização fundiária, estava muito marcada pela presença daquelas famílias famosas, das oligarquias: a família do Marco Maciel, por exemplo, era daquela região”.

O trabalho de regularização fundiária dos Xukuru teve início em 1989, quando Xicão era o cacique. O relatório produzido por Vânia foi a primeira peça técnica que compõs o processo de regularização fundiária de maternidade indígena. “Era um momento muito inóspito para os indígenas ali”, recorda. “Eles eram negados. A cidade era muito anti-indígena”.

Em uma de suas entrevistas, a antropóloga perguntou a um fazendeiro se ele achava que tinha índio em Pesqueira. “Ele disse que não, que tinha ‘uns caboclos lá na serra’, porque índio que ele conhecia era quem vivia nu e morria de febre amarela. É com essa designação, de caboclos, de algo que não é considerado como o índio puro a que estamos acostumados no imaginário social brasileiro, que os Xukuru tiveram uma relevância muito grande pra alavancar o movimento de outros povos indígenas aqui no Nordeste. Passou a ser realmente uma questão paradigmática”.

As violências contra os povos indígenas sempre foram profundas, segundo a pesquisadora. Ela conta que eles estavam cercados por fazendas, não tinham terra pra plantar, não tinham como sobreviver, trabalhavam nas fazendas da região:

— Tinha muita situação de crianças sem ter o que comer, de ir pra escola sem comer, porque soltaram o gado e o gado comeu o roçado todo dos índios. Então era a violência de todo tipo, mas também se caracterizou essa questão dos Xukuru pela violência física mesmo.

A luta por demarcação dos Xukuru começou na década de 80. (Foto: Divulgação)

A região ficou conhecida durante algum tempo em função da indústria alimentícia em Pernambuco, com fábricas de beneficiamento de alimentos — molho de tomate, doces e outros produtos — cuja produção era oriunda da Serra do Ororubá, território tradicional do povo Xukuru. Houve muita resistência, por parte dos indígenas, contra aqueles que estavam à frente dessas empresas, principalmente a família Brito, proprietária da hoje extinta Fábricas Peixe, primeira unidade industrial instalada no Nordeste, em Pesqueira.

‘MATAVAM INDÍGENA DE TRÊS EM TRÊS ANOS, A GENTE FICAVA ESPERANDO O PRÓXIMO’

Vânia Fialho vivenciou muitas situações difíceis para os indígenas ao longo desse processo.

— Era essa tensão, uma área onde a gente estava sempre esperando estourar alguma coisa a qualquer momento. Me lembro de um período em que começou a ser tão marcado o tempo de morte entre um indígena e outro, que se não me engano era de três em três anos, que a gente começava já a esperar quem é que seria o próximo. Era aterrorizante.

O assassinato do cacique Xicão, em maio de 1998, marcou profundamente a história da comunidade e tornou essa violência mais visível. Quando Marcos assumiu a posição de liderança de seu pai, sofreu o atentado, em 2003, quando outros dois indígenas foram mortos. “O povo indígena se revoltou contra aqueles que cometeram o atentado e os que estavam por trás do atentado”, diz a antropóloga. “É por causa disso que agora está sendo negada a possibilidade de ele assumir”.

Ela define a luta para que Marcos assuma a prefeitura como fundamental para a resistência indígena, sobretudo sob o governo Bolsonaro: “Estamos num momento em que o sentimento e as atitudes anti-indígenas estão sendo aflorados e autorizados pelo próprio governo, pelo próprio presidente. A cidade começa mais uma vez a vivenciar esse sentimento, sabemos a força que isso tem na região. E Marcos agora se coloca como resistência a tudo isso.

A antropóloga Vânia Fialho, autora do livro sobre os Xukuru. (Foto: Divulgação)

No livro “‘Plantaram’ Xicão: Os Xukuru do Ororubá e a criminalização do direito ao território”, organizado por Vânia Fialho e as pesquisadoras Rita de Cássia Maria Neves e Mariana Carneiro Leão Figueiroa, são abordadas as questões centrais da trajetória do povo Xukuru: as violências e a criminalização sofridas pelos indígenas, sua história de luta, o agronegócio na região, desdobramentos do assassinato do líder e indicativos de possíveis envolvidos e interessados no crime.

“O que a gente via por parte da Polícia Federal é que o encaminhamento do processo de investigação se dava sempre no sentido de criminalizar as próprias lideranças indígenas”, critica Vânia.

Ao longo da luta pela demarcação, os Xukuru fizeram diversas ações de retomadas de terras, ocupações para poderem plantar seus alimentos e sobreviver, em um processo de afirmação de sua cultura ritualística e religiosa, como uma forma de expressão política, para pressionar o Estado a realizar a demarcação, segundo a antropóloga.

No mapa que a pesquisadora desenvolveu com os indígenas para o projeto Nova Cartografia, eles mesmos historiam essas retomadas, com a cronologia, os nomes das fazendas, o contexto da ocupação. O histórico foi utilizado como argumento na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), para que o Brasil fosse considerado responsável por essa morosidade, o que levou à condenação do Estado brasileiro, em 2018.

A decisão levou o povo Xukuru a receber, em fevereiro de 2020, uma indenização de US$ 1 milhão do governo federal, como parte do cumprimento da sentença da corte internacional. “Estávamos no caminho certo e fazendo o que era certo, por direito, por lei, e infelizmente o Estado brasileiro nos negligenciou”, orgulha-se o cacique. “O processo foi longo e difícil, mas nós conseguimos vencer”.

Luiza Sansão é jornalista especializada em direitos humanos. |

Foto principal (Divulgação): cacique Marcos Xukuru fala em defesa dos povos indígenas no Congresso

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