No caso mais recente e de maior repercussão, o menino Jonathas foi executado em Barreiros (PE) na frente da mãe; jovem de 17 anos e pais foram mortos em São Félix do Xingu (PA), capital da pecuária; meninas foram baleadas no Maranhão e no Amazonas
Por Nanci Pittelkow
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) já registrou quatro assassinatos de camponeses em 2022, no contexto de conflitos por terra – no Maranhão, em Pernambuco e no Amazonas. E aguarda mais informações para incluir a morte de três pessoas em São Félix do Xingu, no Pará. Em todos os casos, além do histórico de resistência das famílias à investida de grileiros e fazendeiros, filhos ou netos dos camponeses foram atingidos por tiros. Uma adolescente de 17 anos morreu e uma criança de 9 anos foi executada. Duas meninas de 10 e 13 anos foram baleadas.
Era uma quinta-feira (dia 09), por volta das 21 horas, quando sete homens encapuzados e armados chegaram no Engenho Roncadorzinho, no município de Barreiros, na região da Mata Sul de Pernambuco. Enquanto dois ficavam do lado de fora, cinco pistoleiros invadiram a casa de Geovane da Silva Santos, presidente da associação local de moradores. Seu filho Jonathas, de 9 anos, brincava com duas primas menores quando um tiro atingiu o ombro do pai, que conseguiu fugir.
A criança correu para o quarto dos pais para se esconder debaixo da cama. A mãe contou que os pistoleiros puxaram o menino e ignoraram seus apelos: Jonathas foi executado com um tiro. Testemunhas dizem ter ouvido os pistoleiros falarem entre eles: “o coroa não”. O “coroa” seria Geovane.
A casa da família havia sofrido recentemente duas invasões, quando criminosos levaram uma televisão e um celular. Outras casas da comunidade não sofreram com o mesmo tipo de ataque. Os que acompanham o caso confirmam que Geovane é um trabalhador que não têm histórico de atritos, inimigos ou dívidas, salvo a questão fundiária.
A adolescente Joane Nunes Lisboa, de 17 anos, foi morta junto com os pais José Gomes e Marcia Nunes Lisboa em São Félix do Xingu (PA), a capital da pecuária no Brasil. Seus corpos foram encontrados na propriedade da família. Nenhum pertence foi levado. Após o massacre, foram recolhidas dezoito cápsulas das armas utilizadas. A família vivia na Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu. Desenvolvia trabalhos de preservação da floresta e mantinha um projeto de reprodução de tartarugas.
“Nos últimos anos o desmatamento para exploração de madeira e criação extensiva do gado tem avançado de forma descontrolada dentro da reserva”, informou a CPT, em nota, “se aproximando cada vez mais da região onde a família de Zé do Lago tinha sua propriedade”. O comunicado lembra que nas últimas quatro décadas 62 trabalhadores rurais e líderes em conflitos de terra foram mortos no município onde o casal morava. Os casos continuam impunes.
“Aqui em Pernambuco eu não conheço precedentes de violência assim contra crianças”, conta Bruno Ribeiro, advogado da Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape) e da CPT. “E eu acompanho há muito tempo essas situações de conflito no campo”.
Segundo o advogado, as crianças sofrem com os despejos, têm traumas relacionados à violência contra as famílias, mas a agressão direta é um dado novo. Para as organizações que acompanham o caso Jonathas, não foi uma morte acidental: não havia tiros no colchão, por exemplo.
Dois dias antes do assassinato de Jonathas, em Pernambuco, o casal Sebastião David Pereira e Maria Aristides da Silva foi assassinado por dois homens encapuzados em uma emboscada entre Lábrea e Boca do Acre (AM), na região da Rodovia Transamazônica. Uma filha de 13 anos que os acompanhava foi baleada e hospitalizada.
O casal fazia parte do Projeto de Assentamento (PA) Monte, criado em 1994 para assentar 940 famílias. Um levantamento da CPT mostra que apenas 20% das famílias permanece no local por causa da pressão dos grandes fazendeiros. “O pessoal da soja vem chegando com muito dinheiro”, explica Cosme Capistano da Silva, coordenador da CPT, ele mesmo um ameaçado de morte. “Mas muitos agricultores não querem sair de suas terras”, conta ele. Era o caso de Sebastião e Maria.
Segundo a CPT, aconteceram 14 assassinatos de camponeses no Amazonas desde 2018, 8 deles na região do atentado do dia 08. As investigações sobre os homicídios não avançaram. No caso do PA Monte, ninguém foi preso. A reportagem aguarda informações sobre o estado de saúde da criança atingida.
O ano de 2022 começou com um atentado contra um quilombola baleado ao lado de sua neta de 10 anos na comunidade de Cedro, em Arari (MA). O avô, José Francisco Lopes Rodrigues, o Quiqui, foi ferido na região do tórax e faleceu cinco dias depois no hospital, em 08 de janeiro. A criança foi atendida e se recupera sem sequelas físicas, mas agentes da CPT informam que ela continua abalada emocionalmente. O atirador estava escondido dentro da casa do quilombola. As investigações não avançaram.
Entre 2020 e o início de 2022 foram registrados cinco assassinatos no município de Arari, todos de militantes ligados aos Fóruns e Redes de Cidadania do Maranhão. Eles lutam contra os cercamentos dos campos naturais por latifundiários e grileiros. Os fazendeiros fazem uso predatório das áreas de uso comum de territórios tradicionais e camponeses para o cultivo de arroz transgênico e criação de búfalos.
A comunidade do Engenho Roncadorzinho fica nas terras da Usina Santo André, que faliu há mais de vinte anos. No local moram mais de 70 famílias, somando 400 pessoas. Entre elas, 150 crianças. Cerca de 40 famílias são de trabalhadores da própria Usina Santo André, credores habilitados na falência que aguardam o pagamento de direitos trabalhistas.
“A terra pode fazer parte desse pagamento, segundo a Lei da Reforma Agrária”, informa Cícera Nunes da Cruz, presidente da Fetape. “Os agricultores querem morar e viver da terra, com produção agroecológica, e consorciar a terra para plantio de cana, café, uva”.
Os conflitos se intensificaram quando o engenho foi arrendado há dez anos para a Agropecuária Javari, cujo principal acionista era Ricardo Pessoa de Queiroz Filho, herdeiro de uma tradicional família usineira, falecido em 2020. Após o início do plantio de cana-de-açúcar, os agricultores passaram a ser ameaçados. Lavouras foram destruídas e as águas foram envenenadas por agrotóxicos. Em 2019, os usineiros buscaram a Justiça para despejar os trabalhadores.
“É um absurdo a Agropecuária Javari tentar despejar os credores do dono da terra, que não foram indenizados desde que a usina fechou há 22 anos”, opina Bruno Ribeiro.
Abaixo, cenas do funeral de Jonathas:
Para Ribeiro, o que acontece na região está no mesmo contexto de outros engenhos falidos da Mata Sul, conforme noticiado por este observatório: “Helicópteros, PMs, drones, chuva de agrotóxicos: os ataques contra camponeses em um engenho em Pernambuco” e “Cresce a violência contra 5 mil famílias na Zona da Mata de Pernambuco”. Com a intensificação dos conflitos, 23 organizações do campo em Pernambuco tentam interlocução com o governador Paulo Câmara (PSB), sem resultados.
Cícera lamenta a falta de ação dos órgãos dos governos estaduais e federal:
— Não somos contra o desenvolvimento. Agora, um desenvolvimento que tira a vida, que usa da violência, que nega direitos, isso nós somos contra, sim.
| Nanci Pittelkow é jornalista. |
Foto principal (Reprodução): crianças do Engenho Roncadorzinho homenageiam amigo assassinado