Despejo iminente de comunidade Guarani Kaiowá beneficia Grupo Petrópolis no MS

Comunidade reivindica demarcação em área que abriga centro de distribuição da cervejaria carioca; ordem judicial autorizou operação policial de reintegração de posse caso indígenas não deixem o local nos próximos 10 dias

Por Nanci Pittelkow e Bruno Stankevicius Bassi

Cerca de 200 indígenas Guarani e Kaiowá estão na iminência de serem despejados da retomada Mboreviry, em Naviraí (MS). Na segunda-feira (18), uma decisão da 1ª Vara Federal do município determinou um prazo de 10 dias para que as 67 famílias — incluindo idosos, gestantes e crianças — desocupem a área voluntariamente. Caso a ordem não seja cumprida, está autorizado o uso da Polícia Federal e da Polícia Militar para a “reintegração de posse forçada”.

Prefeita de Naviraí em visita ao centro de distribuição do Grupo Petrópolis. (Foto: Prefeitura de Naviraí)

Conhecido como Chácara Sucupira, o terreno de 6,6 hectares está localizado no perímetro urbano de Naviraí, às margens do Córrego do Touro. Seu atual proprietário, o empresário Fábio Chagas da Silva, comprou o imóvel em dezembro de 2020, com o projeto de transformá-lo em um centro logístico. O primeiro contrato veio poucos meses depois, com o início das obras para instalação de uma unidade de distribuição da cervejaria Petrópolis.

Dona das marcas Itaipava, Petra, Black Princess e TNT, a empresa tem usado o local como base para atender Naviraí e outros 12 municípios da região. Em julho de 2021, ainda durante as obras, a empresa recebeu a visita da prefeita Rhaiza Matos (PSDB), que celebrou o empreendimento. Além da cervejaria carioca, o loteamento está em negociações para receber um centro logístico do Mercado Livre, segundo consta nos autos do processo.

A continuidade da operação da cervejaria e a possibilidade de instalação de novas empresas são as principais linhas de argumentação para o pedido de reintegração de posse, ingressado imediatamente após a ocupação pelos Guarani Kaiowá, em setembro de 2021.

“A comunidade se desespera com a possibilidade de sua terra virar concreto”, conta Anderson Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e representante dos indígenas no processo. “Eles não vão desistir do território pois não têm nada a perder a não ser a própria vida. Se morrerem ali, pelo menos retornarão ao seu espaço sagrado”.

DONO DO PETRÓPOLIS ATUA NO AGRONEGÓCIO E EM OFFSHORES

Apesar de ser a principal beneficiária do despejo, a cervejaria informou não ter relação com o processo de reintegração de posse. Procurada pela reportagem, a companhia respondeu, em nota:

— O Grupo Petrópolis não é proprietário do imóvel em discussão na ação de reintegração de posse, mas tão somente locatário de um dos lotes situado no município de Naviraí (MS). A companhia, portanto, não tem qualquer relação com a disputa judicial.

Além das atividades no setor de bebidas, a empresa também atua diretamente no agronegócio. Desde 2014, o Grupo Petropólis é arrendatário de duas fábricas da Imcopa, processadora de óleo vegetal e maior produtora de soja não-transgênica do país. Em recuperação judicial desde 2013, a empresa tentou vender as plantas de Araucária e Cambé, ambas no Paraná, à multinacional Bunge.

Walter Faria, do Grupo Petrópolis, tem envolvimento com agronegócio. (Foto: Divulgação)

A negociação, no entanto, foi travada por interferência de Walter Faria, dono da Petrópolis, que utilizou duas offshores registradas no Panamá para pedir a anulação do leilão das fábricas. Segundo denúncia do Ministério Público Federal (MPF), Faria fez com que as empresas se declarassem credoras indiretas da Imcopa, exigindo que Bunge depositasse em juízo o valor da dívida adquirida pelas offshores. O caso valeu o ingresso de Faria na lista de denunciados no Pandora Papers, conforme mostramos em outubro de 2021: “O agro é offshore: a face agrária dos citados nos Pandora Papers“.

Listado como 9º maior bilionário do agronegócio pela Forbes, Faria também investe na pecuária bovina. Em 2017, ele se juntou ao técnico de futebol Vanderlei Luxemburgo para arrematar 53 mil hectares no Mato Grosso pertencentes à massa falida da Fazendas Reunidas Boi Gordo. Em 2016, foi apontado como um dos compradores de matrizes de gado bovino do Grupo Monte Verde, empresa do  ex-presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), Jorge Picciani.

Segundo a denúncia do MPF, que levou à cassação do ex-deputado, os negócios com embriões seriam a base de um esquema de lavagem de dinheiro oriundo de propinas pagas por empresários aliados de Picciani. Na época, o Grupo Petrópolis estava entre os principais prestadores de serviço do governo estadual.

Dois anos depois, Walter Faria seria preso sob a mesma acusação. Desta vez, relacionada ao pagamento de propinas à empreiteira Odebrecht, apontado durante a Operação Lava-Jato.

PREFEITURA OFERECEU BALNEÁRIO EM TROCA DE ÁREA SAGRADA

A escolha da Chácara Sucupira para a retomada não se deu à toa. A área é considerada sagrada pelos Guarani Kaiowá e continuou sendo frequentada por décadas, mesmo após esta ter se tornado propriedade privada.

Após o pedido de reintegração, o MPF solicitou um laudo que atesta a área como sendo território tradicional indígena. “Foram os bairros circundantes que avançaram junto a eles”, consta na página 33. Segundo o laudo, os indígenas de Mboreviry jamais deixaram o território apesar de estarem sempre circulando, conforme seus hábitos e cultura.

Guarani Kaiowá lutam por demarcação de Mboreviry. (Foto: Ruy Sposati/Cimi)

A ideia de retomar o local surgiu após famílias recém-despejadas de imóveis urbanos verem o avanço das obras. “Com a movimentação para construções industriais a vegetação estava sendo suprimida”, conta Anderson Santos, do Cimi. “Não é a extensão de área mais adequada para o grupo, mas já conseguem prosseguir com seus costumes e fazer uma produção de mandioca, abóbora e criação para a subsistência”, completa.

As matrículas do terreno (553 e 2.885) são citadas no Decreto Municipal nº 110, de16 de dezembro de 2011, que declara o local “de utilidade pública e interesse social para fins de desapropriação por via amigável ou judicial”. A desapropriação atenderia a necessidade de alargar uma rua e transformar parte do terreno em lotes destinados para famílias de baixa renda. Em 27 de janeiro 2012 o decreto foi revogado.

Apesar de reconhecer que os Guarani Kaiowá ocupavam boa parte das terras do município, a prefeitura ofereceu, como compensação pela retirada das famílias da Chácara Sucupira, o reassentamento em um balneário a cerca de 1km do local, seguindo pelo Córrego do Touro. Segundo a proposta, o balneário já conta com “barracos, fornecimento de água e estrutura para a instalação de energia”.

Um dos pontos contrários à proposta, no entanto, é a falta de garantias: a prefeitura se compromete a garantir a posse até, no mínimo, o final da gestão municipal, em 2024, mas não tem como assegurar um prazo maior. Sem garantia de continuidade, os indígenas seguem lutando pela demarcação de Mboreviry.

| Nanci Pittelkow é jornalista. |

| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |

Foto principal (Ruy Sposati/Cimi): comunidade Guarani Kaiowá luta contra despejo em centro logístico arrendado por cervejaria Petrópolis.

Compartilhe:

Sair da versão mobile