Deputado bolsonarista apresentou requerimento de urgência para votação do Projeto de Lei nº 490/2007, que ataca os direitos dos povos indígenas sobre seus territórios; ideia do governo é liquidar questão antes que o STF retome o julgamento, em 23 de junho
Por Mariana Franco Ramos
O deputado federal General Peternelli (União-SP) começou a colher assinaturas nesta terça-feira (19), Dia de Luta e Resistência dos Povos Indígenas, para colocar em votação no plenário da Câmara o regime de urgência do Projeto de Lei (PL) nº 490/2007, relativo ao Marco Temporal. O requerimento entrou no sistema na noite de segunda (18), poucas horas após o retorno aos trabalhos presenciais.
Se Peternelli conseguir o apoio de 257 parlamentares e o documento for aprovado, a matéria terá preferência sobre outras da ordem do dia, ficando dispensada a análise prévia nas comissões.
A ideia da base aliada é liquidar a questão antes de 23 de junho, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) pretende retomar o julgamento de repercussão geral da TI Ibirama Laklãnõ, do povo Xokleng, suspenso em 15 de setembro por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Naquela ocasião, apenas dois magistrados haviam votado: Edson Fachin foi contra o Marco Temporal, e Nunes Marques foi a favor.
A tese do Marco Temporal diz que indígenas só podem reivindicar a demarcação de terras que já eram ocupadas por eles antes da promulgação da Constituição de 1988. A decisão, que coloca em lados opostos povos do campo e ruralistas, pode definir o rumo de 303 processos de demarcação que estão em aberto no país.
No ano passado, representantes de mais de 200 etnias protestaram na Esplanada dos Ministérios. Eles voltaram a debater o tema durante o Acampamento Terra Livre, realizado na primeira quinzena de abril, em Brasília. Como o PL 191/2020, que regulamenta a mineração em terras indígenas, “travou” na Câmara, os ruralistas se voltam mais uma vez para o PL 490.
Confira abaixo o requerimento de Peternelli. A data e o número não aparecem porque, antes do documento ser protocolado oficialmente, é preciso colher o número mínimo de assinaturas.
Vice-presidente e um dos líderes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o deputado federal Neri Geller (PP-MT) falou, em agosto, que a aprovação antes do julgamento do STF garantiria “mais segurança jurídica”.
Na mesma entrevista, o parlamentar contou que a FPA atuava em várias vertentes, alinhada à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao presidente Jair Bolsonaro e à então chefe do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Tereza Cristina:
— Nós estamos muito firmes, eu, o Sergio Souza (MDB-PR), que é o presidente da FPA, toda diretoria da FPA, junto da ministra Tereza Cristina (Agricultura) e da Casa Civil, para que a gente dê essa consciência ao próprio presidente, ministro [Luiz] Fux”.
Com 280 membros, a bancada ruralista, representada pela frente, é a maior e mais influente do Congresso. Nesta terça-feira (19), integrantes da FPA se reuniram com os ministros Marcos Montes (Agricultura) e Ciro Nogueira (Casa Civil) para debater essa e outras pautas de interesse do grupo, como licenciamento ambiental e o pacote do veneno.
“São questões que avançamos, a bancada caminhou forte e tivemos suporte”, afirmou Geller. O senador Zequinha Marinho (PL-TO) contou que os ruralistas entregaram ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-RO), um manifesto com projetos que tramitam na Casa. A própria FPA noticiou o encontro.
Sebastião Roberto Peternelli Júnior, da reserva do Exército, é, até agora, o nome mais cotado para assumir a Comissão de Educação da Câmara. Caso seja confirmado no cargo, ele deve priorizar pautas como a das chamadas “mães do agro”, que buscam revisar as apostilas e os livros didáticos brasileiros, em prol de uma visão mais positiva do setor.
O movimento foi batizado de “De Olho No Material Escolar” e, apesar do nome, vai na contramão de tudo o que defende este observatório, como mostramos nesta reportagem: “Lobby do agronegócio se organiza para ‘fiscalizar’ material escolar“.
As fundadoras do grupo, Andréia Bernabé e Leticia Zamperlini Jacintho, já foram recebidas por ministros e contam com o apoio de membros da FPA, como da também bolsonarista Aline Sleutjes (Pros-PR).
A forma de ação se parece ao que ocorre com o “Escola Sem Partido”, movimento que diz combater a doutrinação político-ideológica, mas que, na prática, busca cercear as discussões sobre gênero, sexualidade e respeito à diversidade em sala de aula. Assim, as integrantes sugerem que os educandos façam vídeos, fotos ou registros dos materiais utilizados, de forma a comprovar os “problemas”.
O primeiro exemplo da articulação do grupo se deu na reação a um vídeo no qual um aluno da escola Avenues, em São Paulo (SP), questionou um professor que havia convidado a líder indígena Sônia Guajajara para uma palestra. Em poucos dias, o caso havia ganhado as manchetes da imprensa bolsonarista e rendeu uma representação contra o professor no Ministério Público Federal (MPF).
Em julho de 2016, durante o governo interino de Michel Temer (MDB-SP), o general da reserva do Exército chegou a ser cotado para presidir a Funai. Acabou sendo descartado após pressão de organizações e movimentos sociais.
Na época, circularam postagens de Peternelli nas redes sociais homenageando a ditadura de 1964. Questionado pela Folha, ele afirmou que só falaria publicamente sobre sua posição em relação ao golpe militar após a eventual nomeação para o cargo.
Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), os ministros Eliseu Padilha (Casa Civil), Geddel Vieira Lima (Governo) e Alexandre de Moraes (Justiça) receberam um manifesto assinado por mais de 4 mil indígenas, antropólogos, cientistas sociais, professores universitários, funcionários da própria fundação e ONGs contestando a nomeação do militar.
Peternelli também demonstra simpatia aos transgênicos. Ele relatou o projeto de decreto legislativo (PDC) 715/2017, do deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), que interrompia a liberação da cana de açúcar geneticamente modificada. O parecer do político foi contrário ao texto.
Na justificativa, o deputado argumentou que a proposição invadia o âmbito de atuação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (CTNBio), ao propor sustar disposições “exaradas em decisão administrativa técnica de sua competência legal”.
Além do pedido de urgência do PL 490, os ruralistas articulam um novo projeto de lei para liberar a mineração em qualquer área do país. O PL 571/22 permite que o presidente da República declare a atividade uma “questão de interesse nacional” em caso de mudanças no contexto global ou interno. Com isso, ela passa a ser permitida mesmo em unidades de conservação, terras indígenas ou propriedades particulares.
A proposta, de autoria de José Medeiros (PL-MT), altera o Código de Mineração. Conforme o texto, a declaração será feita por decreto. Indígenas e particulares afetados pela lavra seriam indenizados. Já o processo de licenciamento ambiental, quando exigido, teria prioridade absoluta de tramitação nos órgãos ambientais.
“A deficiência no fornecimento de insumos afeta não só a economia e a sociedade, mas a própria soberania do País”, disse Medeiros, à Agência Câmara. Ele usa como exemplo a invasão da Ucrânia pela Rússia, iniciada em 24 de fevereiro. O PL será analisado em caráter conclusivo pelas comissões de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; Minas e Energia; e Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas. |
Foto principal (Kamikia Kisedje/Acampamento Pela Vida): indígenas de mais de 200 etnias se reuniram em Brasília para protestar contra o Marco Temporal