Cargill, Bunge, C. Vale e Coamo: conheça empresas que compram soja de área reivindicada pelos Guarani Kaiowá

Pesquisa da Earthsight e do De Olho nos Ruralistas identificou traders e cooperativas abastecidas por arrendatários da Fazenda Brasília do Sul, em Juti (MS); soja ganhou espaço desde o assassinato de Marcos Veron, enquanto indígenas sofrem com miséria

Por Bruno Stankevicius Bassi, Laura Faerman e Leonardo Fuhrmann

Uma ilha cercada pelo agronegócio. Esse é o retrato que a equipe de reportagem do De Olho nos Ruralistas encontrou na Aldeia Taquara, uma área de 1.518 hectares retomada pelos Guarani Kaiowá em Juti, no Mato Grosso do Sul. Foi ali que, em 2003, foi assassinado o líder indígena Marcos Veron, após ser sequestrado e agredido por pistoleiros e funcionários da Fazenda Brasília do Sul.

Área de soja em Caarapó, com planta processadora da Raízen ao fundo. (Foto: Laura Faerman/De Olho nos Ruralistas)

A ida ao território, em novembro de 2020, foi a etapa inicial da pesquisa que resultou na publicação do relatório “Sangue indígena: a verdade incômoda por trás do frango exportado para a Europa“, uma parceria entre o observatório e a ONG britânica Earthsight. A investigação mostra o caminho percorrido pela soja: de áreas arrendadas na Brasília do Sul para as granjas da Lar Cooperativa Agroindustrial; e de lá rumo aos principais mercados europeus.

A produtora de frangos e ração animal não é a única empresa que opera no território reivindicado há duas décadas pelos Guarani Kaiowá. A equipe de reportagem apurou junto a produtores locais e empregados das fazendas no entorno da Brasília do Sul que as plantas processadoras da Cargill e da Coamo compram diretamente desses arrendatários. As duas têm filiais em Caarapó, localizadas a um raio de 30 quilômetros da sede do imóvel.

Uma dessas unidades, da Coamo, foi o local de partida dos pistoleiros que promoveram o Massacre de Caarapó, em 2016, como destacamos na primeira reportagem da série: “De Olho nos Ruralistas e Earthsight lançam relatório sobre violações contra Guarani Kaiowá no MS“.

Outra parte dos grãos é negociada através da cooperativa C.Vale, que fornece os produtos à unidade da Bunge em Dourados, a cerca de 60 quilômetros da área em litígio. A empresa foi condenada em janeiro de 2020 pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) a pagar indenização por danos à saúde após um avião pulverizar agrotóxicos sobre a comunidade indígena Tey Jusu. O avião foi contratado pelo fazendeiro Francesco Canepelle, fornecedor da C. Vale.

Juntas, Bunge, Cargill, Coamo, C. Vale e Lar somam uma capacidade de armazenamento de 276.440 toneladas, volume equivalente a 40% da produção total de Caarapó, ou quatro vezes a produção de grãos de Juti, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Confira no mapa abaixo a distribuição de plantas processadoras localizadas no entorno da Terra Indígena Taquara:

CONTRATOS DE ARRENDAMENTO PERMITIRAM CRESCIMENTO DA SOJA

Reivindicada desde 1999 como território tradicional dos Guarani Kaiowá, a Fazenda Brasília do Sul pertence à família do empresário paulista Jacintho Honório da Silva Filho. Falecido em 2019, aos 102 anos, e homenageado por Gilberto Gil em música no ano anterior, ele é apontado como o mandante do assassinato de Marcos Veron. Denunciado por homicídio duplamente qualificado, sete tentativas de homicídio e tortura, o fazendeiro teve sua pretensão punitiva prescrita em junho de 2013, em função da idade avançada.

Expansão da soja na Brasília do Sul teve impulso após assassinato de Veron. (Mapa: Repórter Brasil)

A repercussão do assassinato levou a uma mudança gradual no uso dado pela família Jacintho à Brasília do Sul. A partir de 2009, a fazenda antes dedicada à pecuária passou a ser gradativamente arrendada a produtores de grãos sob contratos de parceria, modalidade em que os arrendatários pagam o custo de produção e entregam uma porcentagem para os donos.

Em 2012, a Repórter Brasil identificou os produtores que haviam cadastrado plantio de soja referente à safra anterior. Destes, cinco mantêm cadastros agropecuários ativos junto ao governo estadual, com última atualização em setembro de 2020. São eles: Vanderlei Biagi e Luiz Biagi Neto, este último autuado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por construção irregular em área de preservação em Juti; Nivaldo Baratela, dono da Transportadora Agrícola C N Ltda, com base em Caarapó; e Osmar e Robson Franco, donos da Armazenadora Nova União Ltda. Os cinco constam entre os produtores beneficiados pelo seguro rural no município de Juti entre 2019 e 2021 para as culturas de soja e milho.

Sob condição de anonimato, um funcionário da Brasília do Sul revelou à equipe de reportagem que os Jacintho não visitam a propriedade há alguns anos, mas ainda mantêm um grupo pequeno de funcionários para a manutenção da sede do imóvel. O entrevistado mostrou ainda que uma segunda pista de pouso – a primeira está registrada em nome de Jacintho Honório da Silva Filho – foi construída dentro da fazenda para uso dos arrendatários.

GUARANI KAIOWÁ AGUARDAM DEMARCAÇÃO HÁ 22 ANOS

A primeira incursão Guarani Kaiowá no território ancestral Taquara, de onde haviam sido expulsos em 1953, ocorreu no dia 27 de abril de 1999, quando Marcos Veron liderou um grupo de 60 indígenas e estabeleceu acampamento em uma área de 96,8 hectares no noroeste da fazenda. O intuito era, como em outras retomadas, pressionar para que o governo federal acelerasse o processo de demarcação.

Jacintho Honório e a esposa Vanda: fazendeiro morreu 2019 sem enfrentar julgamento. (Foto: Reprodução)

Seguiu-se uma intensa disputa judicial, que resultou no despejo da comunidade em 16 de outubro de 2001, executada por policiais civis e militares, acompanhados de seguranças privados da fazenda. A força policial destruiu todas as casas e colocou os indígenas na caçamba de um caminhão, deixando-os na beira da rodovia MS-156, perto do Rio Dourados, onde acamparam durante cerca de um ano.

Em 2003, Marcos Veron e os demais líderes da aldeia decidiram que era hora de voltar para Taquara. Na noite do dia 11 de janeiro, uma sexta-feira, eles fretaram um caminhão e seguiram para lá, deixando as mulheres grávidas e as crianças no acampamento diante dos riscos de confronto. No sábado, 12, um grupo de policiais e pistoleiros convocado a mando de Jacintho se reuniu na Fazenda Brasília do Sul, de onde saiu em perseguição a um veículo, ocupado por duas mulheres, um adolescente e três crianças.

Na madrugada do dia 13, em um novo ataque, os pistoleiros conseguiram capturar sete integrantes da retomada, incluindo Marcos Veron e seu filho Ládio. Eles foram levados para um local distante, amarrados na traseira de uma caminhonete e submetidos a tortura. Agredido a socos, chutes e coronhadas, Marcos Veron não resistiu aos ferimentos e morreu de traumatismo craniano, aos 73 anos.

Com a morte de Veron, o processo de demarcação da Terra Indígena Taquara ganhou um breve impulso. Logo após o crime, o Ministério Público Federal conseguiu uma decisão judicial para que o laudo antropológico fosse concluído. Em 07 de junho de 2010, foi publicada pelo Ministério da Justiça a Portaria Declaratória nº 954, reconhecendo a posse tradicional dos Kaiowá sobre os 9.700 hectares da Brasília do Sul. A declaração foi suspensa apenas um mês depois, após uma decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) em favor da família Jacintho.

Anos depois, em 2013, os proprietários da fazenda foram alvo de uma Apelação Civil Pública após ser constatada a degradação de 1.847,49 hectares de Mata Atlântica em áreas de preservação permanente às margens do Rio Taquara e dos Córregos São Domingos e Boa Vista. Na defesa, realizada em 2019, já após a morte do patriarca, a família alegou que o desmatamento era fruto da ação dos indígenas e de invasores.

Indígenas reviram lixão na Aldeia Bororó, em Dourados. (Imagem: Laura Faerman/De Olho nos Ruralistas)

ENQUANTO EMPRESAS LUCRAM, INDÍGENAS PADECEM

Desde então, os indígenas aguardam que o governo brasileiro conclua a demarcação de seu território. Morando em casas precárias, muitas ainda em construção, vivem ali em torno de 82 famílias, totalizando mais de 300 pessoas. Boa parte dos Kaiowá trabalham em atividades agrícolas fora da Taquara.

Planta da processadora de cana Raízen, em Caarapó. (Foto: Mauricio Copetti/De Olho nos Ruralistas)

Entre as atividades mais recorrentes estão o plantio de cana de açúcar – contratados por empresas terceirizadoras de mão-de-obra –, a colheita de mandioca e o plantio de eucalipto. Eventualmente, alguns deles são convocados na colheita de maçãs em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. As plantações na área são insuficientes para garantir a sobrevivência das famílias.

A situação de pobreza extrema levou os indígenas a expandir a área ocupada em janeiro de 2016, aventurando-se mais uma vez além dos 96,8 hectares acordados em 1999, sobre uma área conhecida entre os Kaiowá como Lechucha. Com isso, teve início uma nova escalada nas tensões, com denúncias de ameaças por parte de funcionários da fazenda contra as famílias.

Em março daquele ano, o desembargador Hélio Nogueira, do TRF-3, anulou uma decisão anterior, autorizando a reintegração de posse. A ação, no entanto, foi suspensa em liminar do STF. Em um dos momentos de maior tensão, em março de 2017, um helicóptero pertencente à Força Aérea Brasileira pousou na área ocupada pelos Kaiowá. Dele desceram homens encapuzados, que teriam mantido duas mulheres detidas, segundo versão dada pelos indígenas.

Enquanto isso, a família Jacintho recorria no Supremo. A corte, porém, em decisão de 30 de janeiro de 2020, optou por manter a liminar, garantindo a permanência provisória das famílias sobre uma área de 1.518 hectares.

| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |

|| Laura Faerman é documentarista e editora de vídeos do observatório.||

||| Leonardo Fuhrman é repórter do De Olho. |||

Foto principal (Reprodução): entrada da Fazenda Brasília do Sul, em Juti (MS)

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