Em uma Esplanada ainda tomada por cartazes alusivos ao 7 de setembro, povos originários de quatro estados denunciam escalada da violência; sete pessoas, sendo três delas adolescentes, foram assassinadas em dez dias na Bahia, no Mato Grosso do Sul e no Maranhão
Por Mariana Franco Ramos
Do alto dos edifícios da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, pôsteres ainda homenageavam o Bicentenário da Independência do Brasil quando, nesta quinta-feira (15), representantes de nove etnias marcharam em protesto pela escalada da violência em seus territórios. O ato começou em frente ao Museu Nacional e seguiu até o Ministério da Justiça e Segurança Pública, onde aconteceu uma coletiva de imprensa. Mais de 150 pessoas, vindas de quatro estados, participaram, carregando faixas e cartazes. A Polícia Militar acompanhou todo o trajeto.
Estavam presentes membros dos povos Apãnjekra Canela, Memortumré Canela, Akroá Gamella, Tremembé do Engenho e Kari’u Kariri, do Maranhão; Macuxi, de Roraima; Pataxó, da Bahia; e Xakriabá, de Minas Gerais. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), sete indígenas foram assassinados num período de dez dias no país, sendo que três vítimas fatais eram adolescentes. As mortes se somam a casos de agressão e ameaças no período pré-eleitoral em regiões dominadas pelo agronegócio.
Ao contrário do desfile do último feriado, transformado em ato de apoio ao presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), poucos cidadãos compareceram para demonstrar seu “patriotismo” ou solidariedade.
“Estamos aqui reivindicando direitos e Justiça”, contou Pjhcre Akroá Gamela, do Maranhão. “Nosso povo está morrendo porque o Estado brasileiro está contribuindo”, resumiu. De acordo com ela, a própria polícia está matando: “Era para as crianças estarem enterrando nosso povo, mas nós, velhos, é que estamos enterrando nossas crianças”, lamentou.
No estado, dois Guajajara da Terra Indígena (TI) Arariboia foram assassinados na madrugada do dia 3 de setembro. Janildo Oliveira Guajajara, integrante do grupo de proteção territorial dos Guardiões da Floresta, perdeu a vida alvejado com tiros nas costas, no município de Amarante do Maranhão. Um menino de 14 anos também foi baleado.
No mesmo dia, em Arame (MA), Jael Carlos Miranda Guajajara, de 34 anos, foi morto. Os indígenas da aldeia Jacaré encontraram o corpo de Jael às margens da rodovia MA-006, que corta o território, próximo a um povoado também denominado “Jacaré”. A comunidade Guajajara afirma que havia marcas de espancamento e que, possivelmente, ele morreu a pauladas.
No final de semana seguinte, na madrugada de domingo (11), novas cenas de guerra: Antônio Cafeteiro Sousa Silva Guajajara, da aldeia Lagoa Vermelha, foi executado com seis tiros, na estrada que leva ao povoado Jiboia, em Arame, próximo ao limite da TI Arariboia.
“Tem fazendeiro e pistoleiro atacando nosso povo diariamente”, conta Suruí Pataxó, da TI Barra Velha, no extremo-sul da Bahia, onde vivem dez mil pessoas. “Estamos sem proteção. Mataram nossos parentes fuzilados nas comunidades onde vivemos”, diz. Ele pede que a sociedade brasileira se sensibilize com a causa e que ajude a pressionar o poder público.
Gustavo Silva da Conceição, de 14 anos, foi assassinado com um tiro de fuzil na nuca no dia 4 de setembro, durante um violento ataque contra a retomada na TI Comexatibá, na mesma região. Outro menino, de 16 anos, foi ferido no braço por um disparo de arma de fogo e chegou a ser hospitalizado, mas não corre risco de morte.
“Vamos lutar, Pataxó, pelos parentes que morreram, agradecendo o pai Tupã pela vida que nos deu”, cantavam os manifestantes:
Além da paralisação das demarcações, as duas TIs foram diretamente impactadas pela Instrução Normativa nº 09/2020, da Fundação Nacional do Índio (Funai), que liberou a certificação de propriedades privadas sobre territórios não homologados. Nos quatros primeiros meses após a publicação da medida, o Cimi identificou que as duas áreas foram sobrepostas pelas certificações de 54 fazendas, acentuando os conflitos.
Por esse motivo, tanto Jair Bolsonaro (PL-RJ) como o presidente da Funai, Marcelo Xavier, foram os principais alvos do protesto. Muitas pessoas que passavam pelas ruas sinalizavam em solidariedade aos indígenas. Alguns partidários de Bolsonaro, contudo, chegaram a buzinar de seus carros e a gritar o nome do presidente.
“Ninguém nesse momento queria estar aqui nessa Brasília, que também é terra indígena”, afirmou Edinho Macuxi, do Conselho Indígena de Roraima (CIR). “Nós queríamos estar na nossa aldeia estudando, pescando, trabalhando, cultivando e cuidando do nosso território”, explicou.
“Essa criança deveria estar na escola, mas está aqui”, disse, apontando para uma menina. “Está aqui porque o nosso povo está sendo assassinado, o nosso território está sendo invadido, a nossa água está sendo contaminada e o nosso solo está sendo envenenado”.
O líder Macuxi reforça que o poder público está assassinado a população indígena:
— A gente não pode continuar assistindo de braços cruzados essas injustiças serem cometidas. Nós queremos que de fato o Xavier seja retirado da Funai, porque ele não merece estar naquela casa. Nós queremos que o Bolsonaro saia, porque ele é um assassino, porque ele está matando o povo brasileiro.
Os participantes do ato reivindicaram, ainda, a retomada do julgamento do Marco Temporal, paralisado no Supremo Tribunal Federal (STF) desde setembro. O que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos originários: o direito à terra. “A tese é inconstitucional e coloca em risco a vida de todos os povos indígenas do Brasil”, destaca Carlinhos Xacriabá, de Minas Gerais.
Lançado em agosto e com dados correspondentes a 2021, o relatório “Violência contra os Povos Indígenas do Brasil“, do Cimi, mostra um aumento em quinze das dezenove categorias sistematizadas, como o observatório já noticiou: “Bolsonaro é um assassino e deveria ser preso”, diz líder sobre recordes de violência contra indígenas.
Em relação aos casos de “violência contra a pessoa”, foram registrados os seguintes números: abuso de poder (33); ameaça de morte (19); ameaças várias (39); assassinatos (176); homicídio culposo (20); lesões corporais dolosas (21); racismo e discriminação étnico cultural (21); tentativa de assassinato (12); e violência sexual (14).
Os registros totalizam 355 situações de violência contra pessoas indígenas em 2021, maior número desde 2013, quando o método de contagem foi alterado. Em 2020, foram catalogados 304 casos do tipo.
Os estados que tiveram maior número de assassinatos de indígenas foram Amazonas (38), Mato Grosso do Sul (35) e Roraima (32). Os três também contabilizaram a maior quantidade de assassinatos em 2020 e em 2019.
O relatório registra, ainda, assassinatos de jovens e crianças indígenas praticados com extrema crueldade e brutalidade. Causaram comoção, em 2021, as mortes de Raíssa Cabreira Guarani Kaiowá, de apenas 11 anos, e Daiane Griá Sales, do povo Kaingang, de 14 anos. Ambas foram estupradas e mortas.
|| Mariana Franco Ramos é jornalista. ||
Foto principal (Mariana Franco Ramos): Ato na Esplanada dos Ministérios reuniu representantes de nove povos originários
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