Búfalos: a origem do fogo que escurece Manaus

De Olho nos Ruralistas identificou fazendeiros que desmatam em Autazes para criar gado, em uma das causas da fumaça que voltou a tomar a capital do Amazonas nos últimos dias; indígenas afetados pela destruição estão dividindo água com os búfalos

Carolina Bataier e Tonsk Fialho

Os moradores de Manaus convivem desde setembro com uma densa fumaça no céu da cidade. A poluição esconde a luz do dia, como voltou a ocorrer nesta segunda-feira (30), dando contornos sombrios à capital amazonense, que registrou em 11 de outubro a terceira pior qualidade do ar do mundo, de acordo com a plataforma World Air Quality Index.

Fumaça que invadiu Manaus teve origem em fazendas de criação de búfalos. (Foto: Reprodução/Poder360)

Dados de monitoramento de queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que a escuridão no céu manauara foi causada pelo deslocamento da fumaça de incêndios florestais nos municípios de Autazes e Careiro — intensificados pelo período de estiagem que acomete o Norte do país. A superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) no Amazonas foi categórica ao afirmar que o fogo foi causado por pecuaristas que atuam nos dois municípios da região metropolitana de Manaus. O Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima, por meio da ministra Marina Silva, corroborou dizendo que “o principal vetor das queimadas é o desmatamento” e que “não existe fogo natural na Amazônia”.

Mas, afinal, quem são esses fazendeiros “sem nome” que devastam o Amazonas? O que eles produzem? Quais suas conexões políticas?

A partir do cruzamento entre os dados geoespaciais do Inpe e a base fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), De Olho nos Ruralistas identificou a concentração dos primeiros focos de incêndio em um grupo de fazendas situadas no entorno das terras indígenas (TIs) Murutinga/Tracajá, Cuia, Iguapenu e Recreio/São Félix, habitadas pelo povo Mura. Entre os casos, destaca-se uma propriedade rural em nome de André Maia dos Santos, um dos principais criadores de búfalos da região de Autazes.

Localizada no corredor entre as duas primeiras TIs, a Fazenda AM-359 concentrou boa parte das manchas de fogo registradas nos primeiros dias de setembro. Foi a partir dessas queimadas — realizadas para renovar o pasto para os rebanhos — que o incêndio se alastrou para as terras indígenas vizinhas, em especial para a TI Cuia. A origem das queimadas e a proporção alcançada pelo fogo no entorno da Fazenda AM-359 coincidem com os períodos e locais citados pelos órgãos ambientais.

Confira abaixo o mapa com a localização da propriedade e o ponto de origem dos focos de incêndio:

Pontos mais claros mostram focos originais do fogo que tomaria as TIs Cuia e Murutinga/Tracajá. (Cartografia: Eduardo Carlini/De Olho nos Ruralistas)

FAMÍLIA MAIA PROTAGONIZOU CONFLITO COM POVO MURA

Dono da Fazenda AM-359, o criador de búfalos André Maia dos Santos é pai de um ex-vereador de Autazes — Marcelinho Maia, falecido em 2020, vítima da Covid-19. Referência na produção de laticínios, o ex-vereador dá nome ao Parque Marcelinho Maia, localizado na comunidade Vila Novo Céu, em Autazes, onde é realizada anualmente a Festa do Queijo. O evento é promovido pela prefeitura em parceria com criadores de búfalos da região.

Ex-vereador Marcelinho Maia liderou criadores de búfalo em Autazes. (Foto: Facebook)

No ano passado, ao falar sobre a Festa do Queijo, o prefeito Anderson Cavalcante (União) celebrou a vocação municipal: “Autazes tem a maior bacia leiteira do Amazonas, um rebanho bubalino muito grande. Temos a característica de ter o maior queijo do Estado”. Na Vila Novo Céu, comunidade onde se encontra o Parque Marcelinho Maia, está localizada a Cooperativa dos Produtores de Leite da Região de Autazes (Cooplam), uma das maiores fábricas de laticínios do estado do Amazonas. Atualmente, a Cooplam é presidida por Manuel do Rosário Maia dos Santos, irmão de André Maia.

O presidente da cooperativa é dono de dois imóveis sobrepostos à TI Murutinga/Tracajá — as Fazenda Manuela e Não Esmureça (sic). Além das propriedades privadas, a própria planta da cooperativa está inserida dentro dos limites da TI.

No relatório “Violência Contra Povos Indígenas do Brasil – 2019”, publicado pelo Conselho Indígena Missionário (Cimi), André Maia e seu filho, o ex-vereador Marcelinho Maia, que dá nome ao parque de exposições, são citados como agressores de indígenas Mura na TI Murutinga. A ocorrência é do ano de 2019. Segundo o relato, uma área ocupada pelos indígenas fora da TI foi cercada por André Maia, que passou a tentar impedir o deslocamento dos indígenas que viviam fora do território homologado.

O desentendimento evoluiu para episódios de violência por parte da família Maia: “O filho do fazendeiro, Marcelinho Maia, vereador, bateu num indígena, que se defendeu. O fazendeiro (André Maia) tentou, então, matar uma pessoa da comunidade, primeiro a punhaladas; depois, utilizando um terçado e, por último a enxadadas”. O relato publicado pelo Cimi narra que “ao ser impedido, o fazendeiro chamou guardas municipais para invadirem a aldeia” e que “outro filho do fazendeiro passou a rondar a aldeia, sempre armado”.

BÚFALOS CONTAMINAM RIOS E IGARAPÉS NO TERRITÓRIO MURA

Segundo relato dos indígenas, o fogo comprometeu o principal meio de subsistência dos Mura, que têm tido dificuldade em encontrar áreas disponíveis para plantar e colher mandioca e outros alimentos. “Acabou que a queimada levou todas as matas, todas as matas virgens, mata capoeira onde as nossas famílias fazem o roçado”, lamenta Adilio Mura, morador da Aldeia Moyray, na TI Iguapenu.

“Os pecuaristas põem fogo para fazer os roçados novos”, conta um morador da região, que pede para ter a identidade mantida em sigilo. “Esse fogo veio andando”, confirma Adilio. “Ele emendou do território lá do Cuia, andou pra cá, atravessava estrada após estrada”.

Seca no Amazonas ameaça acesso à água pelo povo Mura. (Foto: Reprodução)

Durante os incêndios, os Mura se revezavam para combater as chamas. Em grupo, homens e mulheres adentravam a mata carregando bacias e garrafas, alguns usando camisetas sobre o rosto como única proteção contra a fumaça. Depois de dias exaustivos, as chuvas que caíram entre 14 e 16 de outubro aplacaram as chamas. A nova batalha dos indígenas de Autazes agora é para ter acesso a água potável, uma vez que a estiagem secou rios e igarapés.

“Só restou a lama”, lamenta o comunicador Waldir Botelho, da etnia Mura. Em um vídeo, ele mostra a paisagem seca ao seu redor. Ao fundo da imagem, é possível ver um estreito igarapé. “Aqui onde eu tô falando com vocês gravando esse vídeo, no tempo da enchente, aqui é praticamente o meio do igarapé, onde passa barco, passa lancha, motores que vão pra Manaus”, completa. Imaginar uma embarcação navegando naquele cenário parece, agora, impossível.

“As pessoas estão tomando a água que é muitas das vezes até compartilhada com os animais, com búfalo e tudo mais”, conta Botelho. “Tem pessoas de quase 90 anos que dizem que nunca viram uma estiagem como essa”.

Em outras regiões do município de Autazes, a dificuldade de acesso a água já faz parte da rotina. Desde, pelo menos, 2021, a Aldeia Taquara convive com esse inconveniente, de acordo com dados dos relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em 2022, os indígenas da TI Soares/Urucurituba também sofreram com a poluição de rios e igarapés.

Na Taquara, o problema está diretamente ligado à criação de búfalos. A presença desses animais, somada à estiagem, dificultou ainda mais a vida dos moradores da aldeia. Os búfalos passam grande parte do dia em ambiente aquático, onde eliminam urina e fezes.

“Com isso, suja a água, ficando imprópria para o consumo e afasta os peixes”, explica Manoel Serrão, agente da CPT e morador de Autazes. Ele acompanha de perto as denúncias dos moradores da aldeia Taquara. “Ninguém mais toma água do rio. Se não tiver poço, não toma porque o rio é só lama”.

CRIADORES DE BÚFALO PROMOVEM MINERAÇÃO DE POTÁSSIO

Evento de criadores de búfalo promoveu projeto de potássio. (Imagem: Cooplam)

O avanço da bubalinocultura na região de Autazes não é a única ameaça ao povo Mura. A etnia enfrenta, há uma década, a pressão da multinacional Potássio do Brasil, empresa que vem pressionando as autoridades ambientais a fim de licenciar o projeto de extração de potássio dentro de territórios indígenas da etnia Mura, em Autazes. Um fato menos conhecido é que os interesses da mineradora e dos criadores de búfalos parecem convergir.

O presidente da Cooplam, Manuel Maia, é diretor da Associação dos Criadores de Búfalos do Amazonas (ACBA) ao lado de Rodrigo Baraúna Pinheiro, criador de búfalos em Itacoatiara (AM). Pinheiro é herdeiro do Grupo Simões, conglomerado amazonense que já teve exclusividade no engarrafamento dos refrigerantes Coca-Cola. Atualmente, o grupo é sócio do banco canadense Forbes & Manhattan na Potássio do Brasil.

A última Festa do Queijo, organizada pela Cooplam no Parque Marcelinho Maia, contou com estande de divulgação do projeto de mineração.

Foto principal (Reprodução): fazendas de búfalos são uma das origens do fogo que cobre Manaus de fumaça

| Carolina Bataier é jornalista e escritora. |

|| Tonsk Fialho é pesquisador e repórter do De Olho nos Ruralistas.||

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