Relatórios de vistoria do Ministério Público de Mato Grosso do Sul comprovam alteração da morfologia de afluente do Rio Dourados, após escavação para instalação de tanques de piscicultura; canais de drenagem foram construídos em área de preservação permanente sem autorização prévia
Por Tonsk Fialho e Carolina Bataier
Em sua última semana de exibição, a novela “Terra e Paixão”, da Rede Globo, conquistou o público da teledramaturgia e garantiu o retorno dos bons índices de audiência à faixa das nove, após a emissora amargar o pior resultado da história com sua antecessora, “Travessia”. Ambientada no município fictício de Nova Primavera, no Mato Grosso do Sul, a trama de Walcyr Carrasco narra a epopeia do clã La Selva, liderado pelo impiedoso latifundiário Antônio (Tony Ramos), cujo filho Caio (Cauã Raymond) se apaixona por sua rival, a professora Aline (Bárbara Reis).
A relação do casal de protagonistas é construída logo nos primeiros episódios, quando Caio surpreende a amada tomando um banho no rio que cruza sua propriedade, alvo da ambição de Antônio La Selva. Algumas semanas depois, o herdeiro ajuda Aline a recuperar o acesso à água, drenada a mando do personagem de Tony Ramos para impedir que a rival irrigasse sua colheita.
Na vida real, os rios de Deodápolis (MS) são ameaçados pelos donos do mesmo imóvel rural em que “Terra e Paixão” foi gravada. A Fazenda Annalu, de 1.768 hectares, está em nome de Aurélio Rolim Rocha — o Lelinho —, diretor do grupo Valor Commodities e responsável por um dos maiores projetos de piscicultura do Mato Grosso do Sul. Ao todo, são 100 hectares de lâmina d’água, com capacidade instalada para produzir 4 mil toneladas de peixes por ano, distribuídos no mercado interno e externo. O carro-chefe são as tilápias, uma espécie exótica.
Na Fazenda Annalu, pelo menos 37 tanques usados para a criação de peixes estão sobrepostos a um afluente da margem direita do Rio Dourados, que margeia o imóvel a oeste, dentro da Área de Preservação Permanente (APP). Além do impacto ambiental, a atividade foi praticada sem licenciamento por pelo menos três anos.
De acordo com a localização dos tanques, reproduzidos nos mapas que compõem os relatórios de vistoria, é possível perceber que os criadouros foram escavados no leito do rio, alterando a morfologia do corpo hídrico.
Em 2021, o Instituto do Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Imasul) emitiu a Licença de Operação nº 76 para criação de 200 toneladas de peixes por ano na fazenda. O documento confirma que o rio onde estão os tanques funciona como corpo receptor dos efluentes da atividade de piscicultura. Os reflexos ambientais dos rejeitos gerados pela criação de peixes alteram a composição química da água, além de gerar acúmulo de matéria orgânica, entre outros poluentes, que, neste caso, acabam desaguando no Rio Dourados.
Uma análise cartográfica da propriedade, realizada pelo núcleo de pesquisas do De Olho nos Ruralistas, confirmou que as coordenadas geográficas dos locais escavados para a implantação dos tanques coincidem com o curso do rio que atravessa a propriedade. Ao todo, a obra de instalação dos tanques abrangeu uma área inundada de aproximadamente 46 hectares.
As informações são oriundas do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) elaborado em março de 2022 pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS) e firmado pelo empresário Lelinho Rocha. No TAC, é listada uma série de irregularidades ambientais na área da fazenda, reveladas por este observatório na reportagem: “Fazenda de “Terra e Paixão” tem desmatamento de reserva e despejo ilegal de agrotóxicos“.
De Olho nos Ruralistas questionou o grupo Valor Commodities e a Rede Globo sobre os passivos ambientais da Fazenda Annalu. Em nota, a empresa da família Rocha afirmou que houve uma interrupção operacional de 10 anos — entre 2010 e 2020 — na atividade de piscicultura realizada no complexo. Segundo o texto, a operação foi retomada “com a tempestiva renovação da autorização junto ao Imasul e obtenção da respectiva licença operacional, que se encontra em vigor e autoriza a atividade na propriedade”. Confira aqui a íntegra da resposta do Grupo Valor.
A afirmação vai de encontro às informações do MPMS e à divulgação realizada pela própria empresa junto à imprensa especializada. Em reportagem de 2016, publicada pelo portal Mercados Agrícolas, Lelinho Rocha afirmava otimizar a rentabilidade do imóvel “reunindo produção de grãos, piscicultura para exportação e pecuária”, com 100 hectares dedicados à criação de tilápias e pintados.
Em junho de 2019, quando foi realizado o primeiro laudo de vistoria técnica do Ministério Público, o licenciamento para a atividade de piscicultura estava vencido havia nove anos, desde janeiro de 2010. Durante esse período, o imóvel passou por várias mãos.
Adquirida em 2003 por Nilton Rocha Filho, avô dos atuais proprietários, a Fazenda Annalu foi vendida dois anos depois para a comercializadora de grãos Granol, pelo valor de R$ 2,95 milhões de reais. Em 2016, os netos do antigo proprietário, Aurélio Rolim Rocha — conhecido como Lelinho — e Nilton Fernando Rocha Filho, readquiriram a propriedade por R$ 10 milhões. Apenas em 2021, após três anos operando sem licenciamento, Nelinho regularizou os tanques para a criação de peixes.
Apesar da alteração do curso do rio que passa pela propriedade, os danos causados pelos 37 tanques escavados na margem direita do Rio Dourados não são citados em nenhum dos relatórios de vistoria juntados às investigações dos possíveis danos ambientais na Fazenda Annalu.
O TAC destaca ainda a existência de 54 drenos, com extensões que variam entre 10 e 3.761 metros. Todos eles sem licenciamento. Essas estruturas são utilizadas tanto para a drenagem de terrenos alagados quanto para a captação de recursos hídricos destinados à irrigação, pecuária e piscicultura.
De acordo com um morador da região, que preferiu não se identificar, a construção dos drenos — que ele chama de diques — “fez um estrago danado” nas margens do rio. “Eu sei que fizeram um dique pra levar água pra irrigar os pivôs, um dique de uns de quatros metros de largura por cinco de profundidade”, conta.
Parte dos drenos identificados pelo laudo técnico do MPMS invade a Área de Preservação Permanente (APP) do Rio Dourados. Segundo o relatório anexado ao TAC, a instalação de drenos é comum na região, sendo uma medida necessária para a agricultura em áreas frequentemente inundáveis e com presença de lençol freático superficial — o que, segundo o laudo de vistoria, é o caso da Fazenda Annalu.
Apesar da justificativa, a disposição das estruturas na propriedade demonstra que os drenos possuem utilidade diversa, uma vez que se estendem muito além da área inundável do solo.
Outra contradição relacionada à drenagem na propriedade vem de um documento formulado pelos proprietários da Annalu. Um laudo produzido em 2018 por uma empresa contratada pelos fazendeiros para tentar comprovar a existência de Reserva Legal na fazenda, a LG Consultoria Ambiental, foi taxativo em afirmar que “não há excesso de água em qualquer época do ano, em função da boa permeabilidade, porosidade e lençol freático muito profundo”.
Por meio de imagens de satélite de 2009, o MPMS pôde constatar que a instalação dos drenos na propriedade é anterior a julho de 2008. Segundo o laudo de vistoria, a abertura de drenos no local altera as condições naturais de saturação e encharcamento do solo.
Para quem mora na região, o impacto é visível. “Tinha uns varjão lá que diz que nem sucuri passava, mas abriram tudo”, lamenta um morador. Uma realidade ignorada pelas imagens idílicas de monocultura e maquinários agrícolas disseminada na novela “Terra e Paixão”.
Através do grupo Valor Commodities, responsável pelo megaprojeto de piscicultura da Fazenda Annalu, a família de Lelinho Rocha é dona de um vasto império agropecuário no Mato Grosso do Sul.
Segundo o site do grupo, a companhia tem 50 mil hectares em Caracol, Deodápolis, Douradina, Nioaque, Porto Murtinho, Corumbá, além de uma empresa de aviação, seis postos de abastecimento de aeronaves e um setor de ativos imobiliários. Em apenas um processo da movido pelo frigorífico Seara contra os membros da família, De Olho nos Ruralistas identificou 69 imóveis. Quase todos, fazendas.
A dimensão desse império é detalhada em vídeo publicado no canal do De Olho nos Ruralistas no YouTube. Além das videorreportagens, o observatório produz documentários sobre questão agrária, como Elizabeth e SOS Maranhão, e mantém editorias fixas sobre História e sobre as ações da bancada ruralista no Congresso. Confira abaixo:
Imagem principal (Divulgação-Valor Commodities/De Olho nos Ruralistas): fazenda de “Terra e Paixão” abriga um complexo de piscicultura que operou por nove anos sem licenciamento
Atualização: o texto foi atualizado para incluir o posicionamento do Grupo Valor, enviado após a publicação da série de reportagens.
| Tonsk Fialho é pesquisador e repórter do observatório De Olho nos Ruralistas. ||
| Carolina Bataier é jornalista e escritora. |
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