De Olho nos Ruralistas ouviu oito representantes de movimentos sociais sobre conjuntura política e a legitimidade do governo em crise; indígenas adotam falas mais contundentes que as dos camponeses e quilombolas
Por Julia Dolce e Igor Carvalho
As denúncias de corrupção e de ligação com milícias do Rio de Janeiro envolvendo o senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho mais velho do presidente, podem deslegitimar parte de suas ações contrárias aos povos do campo: indígenas, quilombolas e camponeses. Isto conforme lideranças de movimentos sociais ouvidas nos últimos dias pelo De Olho nos Ruralistas.
O deputado estadual Flávio Bolsonaro já estava em evidência por causa das movimentações milionárias na conta de Fabrício Queiroz, seu ex-assessor. Durante a semana o Brasil ficou conhecendo o capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, vulgo Gordinho, identificado como líder do grupo miliciano investigado por envolvimento no assassinato de Marielle Franco. Ele foi homenageado na Assembleia por Flávio, que também empregou a mulher e a mãe do miliciano.
As lideranças do campo acreditam que a falta de legitimidade instalada em menos de um mês dificulta a realização dos projetos de Jair Bolsonaro para o campo. Mas divergem quanto à estabilidade do governo e das forças que os sustentam, entre elas o agronegócio. Dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) declarou apoio formal ao então candidato do PSL.
Nas últimas três semanas, o Governo decretou a transferência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para o Ministério da Agricultura, retirou atribuições importantes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), liberou o registro de diversos agrotóxicos e transferiu a demarcação de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura – comandado há décadas por ruralistas.
Diante do contexto político, os militantes acreditam que é preciso fortalecer o enfrentamento contra o governo. Mas a reação tem sido prioritariamente discursiva: “Resistência a medidas do governo Bolsonaro começa com ‘repúdios’ e representações ao MPF“.
O movimento indígena adota falas um pouco mais contundentes. E é quem está articulando as primeiras manifestações contra Bolsonaro. No dia 3, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) pediu à Procuradoria Geral da República a abertura de um inquérito contra a Medida Provisória 870, que retirou as demarcações da Funai. Atos contra a medida foram realizados em Manaus e em São Paulo.
Uma grande mobilização está marcada para a próxima quinta-feira (31), em São Paulo, como parte da campanha Janeiro Vermelho, organizada pela Apib em defesa dos direitos indígenas.
Confira a opinião de oito lideranças dos povos do campo sobre os escândalos e sobre a legitimidade do governo Bolsonaro:
Cléber Cesar Buzatto – Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
“Todos os indicativos que nós temos é que as ameaças que ele fez em campanha, de que seria um inimigo dos povos indígena, estão se confirmando. O governo foi eleito com um discurso forte de combate à corrupção, mas nos seus primeiros dias o governo se mostra fragilizado exatamente nesse tema. A estrutura que o cerca se mantém ativa, porém, ao menos em nosso campo. Os desdobramentos das ações do governo estão se mantendo, a base do agronegócio não está paralisada, ela segue trabalhando contra os direitos dos povos indígenas. Tem havido uma série de ações nos territórios que atentam contra os direitos dos povos na sua terra, potencializadas pelos discursos do presidente no período da campanha, discursos de autoridades do governo, isso tem servido para alimentar e incitar ações letais e criminosas contra os povos indígenas em várias regiões do Brasil. Está em um curso de roubo de terras indígenas, com uso de força por parte de pessoas ligadas ao agronegócio e essa estratégia de roubo de terras é decorrente desses discursos bélicos que incitam o uso de força armada. O governo pode até ser legítimo, mas há uma série de iniciativas do governo que não são legítimas, por isso há um esforço por parte dos povos indígenas em se manter ativos na crítica e continuar chamando manifestações para pressionar esse governo e tentar mudar a ordem das coisas”.
Davi Karai Popygua – Liderança da Aldeia Guarani do Jaraguá
“Vemos que ele tem uma característica violenta para além do Estado. Ao armar os fazendeiros ele incentiva, mesmo que indiretamente, a formação dessas milícias no campo, como se o campo brasileiro já não representasse recordes de assassinatos de indígenas, ambientalistas, ativistas que lutam pela terra no mundo. Ele incentiva isso, de forma que os grupos que ameaçam os indígenas estão se multiplicando. Mas parece que o governo dele é protegido na justiça. Na própria campanha ele já dizia que iria na contramão do direito indígena. O Brasil se tornou um estado de exceção geral, um governo autoritário e terrorista. As guerras que acontecem nos territórios indígenas podem, sim, ser caracterizadas como terrorismo de Estado. Se vemos que o governo passa medo, insegurança, guerra, morte, violência, ele não pode ser considerado um governo democrático”.
Otoniel Terena – Liderança da Terra Indígena Terena Buriti (MS)
“Não consideramos esse governo nosso ou legítimo. Tanto é que não votamos nesse presidente. Não o consideramos nosso companheiro, porque ele já pregava na campanha política o fim de nossos direitos, e não esperávamos que logo de imediato ele colocasse isso em prática, transferindo nossa Funai para uma pasta totalmente diferente, e paralisando as demarcações de terra. Estávamos esperando, mas não para agora. Nos outros governos também tivemos problemas, mas esse governo especificamente não reconhecemos. Esses próximos anos serão alguns dos mais difíceis para os povos indígenas. Com certeza nós, indígenas, somos os principais inimigos desse governo. Mas estamos firmes e próximos de outros movimentos para resistir e lutar contra qualquer afronta. Esse ano será de muita luta”.
Denildo Rodrigues de Moraes – Coordenador da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)
“Esse governo, embora tenha vencido nas urnas, antes mesmo das eleições já tinha uma postura contra os direitos quilombolas e de povos indígenas, e também com uma ofensiva de racismo muito forte com relação às comunidades quilombolas. As denúncias vão afetar o governo, sem dúvida, porque ele foi eleito com base em uma proposta de anticorrupção, e no entanto a corrupção está entranhada não somente dentro do governo, na composição de seus quadros, mas dentro da família. Estamos em um país onde o sistema judiciário é um dos mais conservadores do mundo, está lá não para trabalhar a questão da justiça em si, mas sim para segurar alguns privilégios de algumas pessoas. Se fosse outra pessoa ela poderia cair, mas é um cenário muito turbulento, em um país onde a Suprema Corte já decidiu que Bolsonaro não foi racista mesmo em um vídeo dizendo que os quilombolas do Vale do Ribeira, o mais leve, pesava sete arrobas. Se isso não é uma declaração racista, eu não sei o que é racista. Estamos muito apreensivos. Independente do governo cair ou não, estamos na luta, para defender nosso território, onde estamos há 500 anos defendendo, governo vem governo vai. A nossa luta e o futuro dos nossos filhos vem disso. As comunidades quilombolas não foram forjadas a partir da Constituição de 1988, estão aqui há séculos, sempre resistiram e sempre lutaram. Derrube governo ou fique governo, nossa história vai continuar e vamos continuar firmes e fortes no território”.
Débora da Silva – Liderança da Comunidade Quilombo São Pedro e integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
“Os movimentos estão voltando a interagir nesta semana, estamos nos organizando, fazendo reuniões e articulando as lideranças das comunidades para que reivindiquemos nossos direitos. Ficamos na expectativa de que essas denúncias fossem usadas para derrubar esse governo. Mas vemos que é algo difícil, porque apesar de não acharmos que ele não tem muito conhecimento, ele tem muitas pessoas acima dele. O objetivo dele é acabar com nossos movimentos e organizações e isso não admitimos que aconteça. Então nossa expectativa é criar um documento para provar que existimos, estamos aqui, e o que depender de nós, com atos, ocupação, vamos demonstrar que queremos nossos direitos e não admitimos que ele acabe com isso”.
Kelli Mafort – Direção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)
“Bolsonaro foi eleito pela maioria dos votos válidos. É o presidente do país, isso é fato. O que não anula nossa capacidade coletiva de questionar, explicitar e denunciar os horrores da eleição mais violenta, lgbtfobica, misógina e racista dos últimos tempos, além de toda manipulação edificada em mentiras de fake news. É difícil prever o que acontecerá, mas o caso Flávio tira a máscara de um governo que se apresentou como anti sistema, mas na realidade está há mais de 30 anos reproduzindo os velhos caminhos sorrateiros da politicagem. O principal termômetro deve ser a reação dos trabalhadores, que por enquanto assistem os fatos, mas ainda não se posicionaram. Por ora podemos afirmar que começaram cedo as contradições de um governo resultante de uma colcha de retalhos de interesses diversos de uma nova direita golpista e entreguista. As disputas internas no governo podem resultar numa alternância, ampliando ainda mais o poder dos militares. A tarefa dos movimentos populares é de denúncia, luta e principalmente organização de base popular. Estamos construindo um conjunto de medidas que chamamos de Resistência Ativa, que significa defender de forma contundente tudo que conquistamos ao longo dos nossos 35 anos, mas ao mesmo tempo, lutar de forma ativa em torno daquilo que é a base de um movimento popular: as necessidades imediatas dos trabalhadores e trabalhadoras por terra, trabalho, moradia e alimentação”.
Michela Calaça – integrante do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC)
“Não existe estabilidade no país desde que tiraram uma presidente eleita via um golpe que juntou o legislativo, o judiciário e a mídia em um complô que se nomeia contra o PT, mas na verdade é contra os direitos dos trabalhadores. Desde 2014 não temos estabilidade. A própria eleição do Bolsonaro tem de ter sua legitimidade pensada, e não pela quantidade de votos mas pela forma como foram conquistados, à base de fake news, do amedrontamento. Um governo que se elege com base em um combate à corrupção. A quantidade de votos é importante, mas a democracia é muito mais do que isso. O projeto que está no governo é um projeto que não respeita a Constituição. Não tem nenhum compromisso com ela, então todas as maldades me parecem sempre possíveis de serem feitas. Criaram no Brasil tamanha instabilidade e discurso de ódio que a ampliação da violência é para além da ação direta ou não deles. Eles conseguiram criar na cabeça do povo que direitos são privilégios. Conseguiram criar e legitimar essas ações violentas no discurso. O discurso que eles construíram para ganhar a eleição, de ódio contra as mulheres, os LGBT, os povos do campo, legitima a violência, independentemente de comprovada uma participação direta com a milícia. Os camponeses e camponesas não vão esperar isso quietos, está tendo luta e terá muito mais. Não vai ser fácil para ele tirar todos os nossos direitos como ele acha que será”.
Bruno Pilon – Coordenador Nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
“O que colocou Bolsonaro no poder não é fácil de tirar. Cada vez mais entendemos o efeito do fenômeno Bolsonaro como algo relativo. Se ele vai durar muito ou não, o que colocou ele ali vai durar muito. Não foi o PSL, a vontade dele, há uma movimentação do capital internacional muito forte, com uma aliança pesada das forças armadas e com os setores mais reacionários da burguesia, que esses sim têm preparo para ficar mais tempo no governo, com ou sem Bolsonaro. Ele está muito instável, não tem estrutura para suportar nenhum tipo de crise, isso está cada vez mais óbvio, mas nos preocupamos porque quem o colocou no poder pode continuar sem ele. Não dá para fazer muita previsão do que vai acontecer, mas sempre temos que fazer essa análise. Agora, vamos travar a luta institucional? Estamos vendo que ela já começa sendo uma luta desigual”.