De Olho nos Ruralistas foi ao Quadrilátero Ferrífero, em Minas, para ouvir o que pensam as comunidades sobre a mineração; expansão desenfreada contamina principais fontes de água e preocupa moradores, que temem novos desastres
Por Natalie Lima Hornos, em Minas
Medo de novos desastres, contaminação das águas, crise hídrica, doenças respiratórias, perseguição política, perda da identidade cultural. Não são poucos os impactos da mineração nos 35 municípios que compõem o Quadrilátero Ferrífero, na zona central de Minas Gerais, em uma das principais regiões hidrográficas do Brasil. A foto principal desta reportagem traz uma cachoeira em tom vermelho – e sem qualquer relação com rompimento de barragem.
Novamente em evidência após o crime ambiental da Vale, em Brumadinho, com 121 mortos e 205 desaparecidos até o momento, a região concentra o maior depósito de minério de ferro do país. Responde por 60% da produção nacional. Segundo relatório da Agência Nacional de Águas (ANA), Minas Gerais abrigava, em 2017, 357 barragens de rejeitos. Destas, 268 no Quadrilátero Ferrífero.
De Olho nos Ruralistas viajou à região em dezembro – um mês antes da tragédia – e percorreu os municípios de Belo Vale, Brumadinho, Itabirito e Moeda para apurar os impactos da mineração na vida das comunidades que vivem próximas às barragens. Especialistas e moradores relataram um estado de apreensão permanente, que vai além do medo de novos rompimentos. E a chave para entender o agravamento dos conflitos passa pela Vale.
Em Belo Vale, um município de 9 mil habitantes, a 75 quilômetros de Belo Horizonte, moradores relatam um longo histórico de conflitos. Ali, a Vale opera a barragem Marés I, localizada logo acima da Cachoeira do Mascate, principal ponto turístico do município. A empresa recebe no local rejeitos de minas vizinhas. Desde 2005, a mineradora tenta ampliar sua capacidade com a expansão da Marés II, hoje com 241 mil metros cúbicos.
Embora a categoria de risco das barragens seja do nível ‘baixa’, de acordo com a classificação do Departamento Nacional de Produção Mineral, os impactos são intensificados pela ação de mineradoras menores que orbitam a Vale e vendem para ela sua produção. É o caso da Green Metals, mineradora de pequeno porte, no outro lado da rodovia que corta a Serra dos Mascates. Logo abaixo dos pontos de extração ficam o Quilombo da Boa Morte e duas comunidades rurais. Após anos de pressão, o local recebeu em 2018 um sistema de sirenes de emergência, três anos após o desastre de Mariana.
Além disso, há a questão da água. Em época de chuva, o córrego que dá origem à Cachoeira do Mascate fica barrento e avermelhado, como mostra a foto em destaque na reportagem. É o resultado direto da contaminação por sedimentos que escapam da barragem da Vale, alguns metros acima.
“A cachoeira sangra quando chove”, comenta Glória Maia, moradora de Belo Vale e presidente do Instituto Aqua XXI, uma das entidades que vêm denunciando os impactos da mineração no município. “A água chega suja e contaminada. Em Pintos, um povoado que fica abaixo da Green Metals, um rapaz saiu a noite pra comprar uma garrafa de água mineral pra fazer a mamadeira do seu filho, porque a água estava completamente vermelha, contaminada pelo minério”.
Em 2015, a organização solicitou uma análise laboratorial da água, com base em critérios estabelecidos pelo Ministério de Saúde. Foram realizadas três amostras em diversos pontos do córrego, situado na Serra do Mascate. O resultado mostra um índice bastante acentuado de ferro, manganês, sódio, chumbo e, principalmente, alumínio, encontrado numa taxa 15 vezes maior que o limite aceitável determinado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Para Tarcísio Martins, diretor da Associação do Patrimônio Histórico Artístico e Ambiental de Belo Vale (Aphaa-BV), o resultado evidencia o descaso das mineradoras:
– O laudo aponta que a água está completamente turva. Há bactérias, com nível acentuado, e coliformes fecais. Todos esses índices estão acima do saudável. As pessoas que usam esta água são famílias que usam para regar suas hortaliças, hortas comunitárias, alimentar sua pequena produção e para o consumo direto. São diversas mineradoras que atuam no local, como a Polaris, a Vale e a Nogueira Duarte. Comprova um total descaso e descumprimento das empresas e [a falta de] vigilância do Estado.
E os riscos não se resumem à contaminação. A expansão desenfreada da mineração fez Belo Vale e outros municípios da região experimentarem uma realidade antes inimaginável: a falta d’água. “Em 2017, a prefeitura teve que abastecer as fazendas e os pequenos sitiantes com caminhão pipa”, conta Glória. “Não tinha água nem pro gado”.
Em 2018, o Movimento pelas Serras e Águas de Minas publicou um dossiê sobre as ameaças e violações ao direito humano à água no Quadrilátero Ferrífero. Além de Belo Vale, o documento cita outros dez municípios ameaçados pela mineração: Brumadinho, Mariana, Congonhas, Itabirito, Nova Lima, Catas Altas, Santa Bárbara, Sarzedo, Raposos e Rio Acima.
No assentamento Balneário Água Limpa, em Itabirito, a convivência com a falta d’água é antiga. Desde que mudou para o local, nos anos 1990, a líder comunitária Rosana Gaudino lembra de enfrentar problemas no abastecimento: “Aqui era igual deserto, não tinha água não. Eu ficava pensando porque o nome era Balneário Água Limpa se não tinha água. Aí depois que a gente foi descobrir que tem muita mina”. A comunidade convive ali com a mineração – incluindo diversas explorações clandestinas – e fica próxima de uma planta da Coca-Cola Femsa, inaugurada em 2015.
Apelidada de Fábrica da Felicidade e considerada pela empresa como “a maior fábrica verde do sistema Coca-Cola do mundo”, a planta consome, em média, 125 metros cúbicos de água por hora, mais da metade do consumo total de Itabirito. Biólogos da Associação Mineira de Defesa do Ambiente constataram a secagem de diversas nascentes desde a chegada da empresa. Segundo a Coca-Cola, os estudos são inconclusivos.
O Quadrilátero Ferrífero repousa sobre a principal zona de recarga hídrica de Minas Gerais, em uma formação geológica conhecida como Sinclinal Moeda, uma espécie de caixa d’água natural, que supre cerca de 30% da água consumida na região metropolitana de Belo Horizonte. Essa rede hidrográfica abastece duas importantes bacias: a do Rio São Francisco e a do Rio Doce.
Para Marcos Virgílio Ferreira de Rezende, engenheiro agrônomo e integrante da Aphaa-BV, o atual sistema de licenciamento ambiental no Brasil não considera as consequências do uso intensivo dos recursos hídricos pelas mineradoras: “A extração dos minérios culmina com a extinção dos reservatórios de água. Os licenciamentos não consideram este impacto”.
Não bastasse a preocupação com a água, o perigo também está nas estradas. O tráfego intenso de caminhões, que abastecem as mineradoras, é responsável pelo aumento da poluição do ar e da poluição sonora, prejudica as condições das rodovias e causa acidentes. O excesso de poeira e de metais pesados no ar aumenta a probabilidade de doenças respiratórias, uma das reclamações mais comuns entre os moradores da região.
Outro problema é a extinção da agricultura camponesa. Para instalar suas indústrias, as mineradoras compram áreas como reserva de exploração futuras. Aos poucos, camponeses e quilombolas se tornam empregados dessas empresas e vão gradualmente perdendo sua identidade cultural.
Segundo dados do Departamento Nacional de Produção Mineral (sucedido pela Agência Nacional de Mineração), a mineração ocupa 2,7% do território no Quadrilátero Ferrífero. Isso significa 780 mil hectares – uma área maior que a Palestina – ocupados exclusivamente por minas, barragens e pilhas de estéreis, sob pouca ou nenhuma fiscalização.
A pulverização de mineradoras de pequeno e médio porte impõe um desafio adicional para as autoridades do setor. Quando endividadas, essas empresas mudam de mãos e de nome, dificultando o acompanhamento. “A mineradora fica com a imagem ruim e muda o nome e o CNPJ como estratégia de marketing”, conta Glória. “Facilita para novos pedidos de licença”.
Com pouco potencial econômico, as “mineradoras nanicas”, como são chamadas na região, acabam vendendo sua produção às grandes, como Vale, CSN, Gerdau, MGB e Anglo American. O caso da Vale é emblemático: incluindo na conta as licenças pertencentes à Samarco – metade Vale, metade BHP Billinton – o grupo detém 110 das 268 barragens existentes no Quadrilátero Ferrífero.
A dimensão territorial da empresa foi tema de outra reportagem do observatório sobre o crime de Brumadinho: “Território do tamanho da Holanda: Vale explora 4 milhões de hectares no Brasil“.
A mineração se expandiu de forma agressiva na última década. De acordo com Alessandra Cardoso, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a atividade minerária no Brasil cresceu 550% entre 2008 e 2017. “Atualmente, o Brasil extrai quase o triplo da soma do que é produzido em minério em todos os outros países latino-americanos que têm mineração relevante, com predominância de ferro”, afirma. “Isso pode comprometer a segurança de trabalhadores e cidadãos, dos recursos hídricos de diversos municípios brasileiros”.
Segundo Alessandra, o que está por trás dos crime de Brumadinho e Mariana vai além da fragilidade das barragens, licitações a toque de caixa e descumprimento das legislações:
– Se trata, primordialmente, da escala da mineração, que é incompatível com qualquer projeto de desenvolvimento que pense nas pessoas. Não é possível ter essa escala de operação. Pra ter rentabilidade e oferecer lucro aos acionistas, as empresas expandem a produção que fogem das margens de segurança.
Enquanto o poder público reluta em endurecer a responsabilização das mineradoras, os moradores do Quadrilátero buscam caminhos alternativos. Cada vez mais importante para a economia local, a indústria do turismo oferece novas possibilidades de emprego e renda para as comunidades locais. E o exemplo está bem ao lado: o município de Moeda, vizinho de Belo Vale, tombou boa parte de seu território como Monumento Natural, impedindo o avanço da mineração sobre a Serra da Moeda e apostando no crescimento do turismo.
A ambientalista Glória Maia aponta o perigo da “minerodependência” em relação a esse modelo econômico, por impedir o desenvolvimento de um comércio diversificado e por reduzir a empregabilidade à mão de obra nas megaindústrias. “Se a prefeitura investe na mineração como única fonte de renda e investimento, as comunidades se veem obrigadas a trabalhar nestes espaços e ficam dependentes do emprego”, afirma. O que dificulta na hora de reconhecer os impactos e denunciá-los. “É fundamental uma mudança de paradigma”.