Dados apresentados em pesquisa da UFABC provam que os lucros do agronegócio em estados da região são concentrados e a maior parte da população não tem acesso aos benefícios gerados
Por Maurício Hashizume, em Palmas
Quando o assunto é a expansão do agronegócio no Brasil é comum ouvir um acrônimo que designa uma vasta área contínua que se estende por quatro estados: Matopiba, resultado da união das siglas de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Mais recentes têm sido as pesquisas realizadas na região que revelam perspectivas que extrapolam (e até contradizem) os discursos e as promessas de progresso e desenvolvimento social por trás de um setor poderoso, ávido pela exploração lucrativa dos vários recursos.
Um desses estudos realizados no Matopiba anuncia já no seu título uma de suas conclusões: “Há mais pobreza e desigualdade do que bem estar e riqueza nos municípios do Matopiba”. Os resultados apresentados neste início de ano no artigo conjunto de Arilson Favareto, Suzana Kleeb, Paulo Seifer e Marcos Pó (UFABC) e Louise Nakagawa (Greenpeace) colidem frontalmente com esses discursos e promessas de progresso pela via do agronegócio. Realizado a partir da análise e sistematização de dados e de variados indicadores econômicos e sociais dos 337 municípios espalhados pelos quatro estados, o estudo teve o complemento de pesquisas de campo em 14 deles, contemplando distintos perfis de localidades nas quais foram realizadas 150 entrevistas entre dezembro de 2017 e maio de 2018.
“Tentamos fazer algo que é pouco enfatizado na literatura: produzir informações e análises que mostrassem como o discurso de que a devastação ambiental é o ‘custo do progresso’ não corresponde à realidade”, explica o professor da UFABC Arilson Favareto, sociólogo, doutor em Ciência Ambiental e um dos autores do estudo apoiado pelas organizações não-governamentais (ONGs), Greenpeace e Climate Land Use Alliance (Clua). ” A riqueza gerada é muito concentrada e não chega à maior parte da população local. A maior parte dos municípios do Matopiba sequer vê essa riqueza circular”.
A pesquisa foi publicada parcialmente em artigo que compõe o Dossiê Matopiba, elaborado para a Revista do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera) da Universidade Estadual Paulista (Unesp-Presidente Prudente). Faz parte de um estudo maior, intitulado “Entre as chapadas e os baixões do Matopiba: dinâmicas territoriais e impactos socioeconômicos na fronteira da expansão agropecuária no Cerrado”. Ele motivou um relatório organizado pelo Greenpeace e será publicado na íntegra ainda neste semestre, em livro, pela Editora Ilustre.
Verificou-se, com base no estudo, a existência de quatro “Matopibas”, tomando-se como referências as médias de critérios de produção agropecuária da região, de um lado, e da média regional de indicadores sociais e de qualidade de vida, de outro. Resultado: o grupo de municípios “injustos”, ou seja, com alta produção e indicadores sociais abaixo da média, se revelou significativamente maior (67) do que o dos “ricos”, aqueles com alta produção e indicadores sociais superiores (45). Bastante reduzido (29), o terceiro grupo, de baixa produção e condições de vida acima da média, foi chamado de “remediados”, enquanto a larga maioria de “pobres” (196) apresentou baixa atividade econômica agropecuária e números baixos nas garantias sociais.
Os defensores do modelo atual do Matopiba dizem que, havendo crescimento da produção de riquezas, mais cedo ou mais tarde isso chegará a todos. O crescimento resolveria os outros problemas. “Mostramos que não, porque não é só uma questão de gerar riquezas”, explica Favareto, autor também de um outro estudo focado na expansão da soja no Piauí, com balanço semelhante. “A questão é de que forma estas riquezas são geradas. Que custos elas têm. E a quem elas beneficiam. Não damos um modelo. Criticamos um modelo”.
Mais uma premissa contestada pela pesquisa resumida no Dossiê Matopiba é a de que o agronegócio não deve a sua pujança apenas ao empenho de conotações heroicas da iniciativa privada, mas à intervenção estatal. “A ideia de que o agro carrega o Brasil nas costas não corresponde à realidade”, completa o especialista. O setor privado teve um papel importante, mas foi sobretudo o Estado quem criou o agronegócio moderno com pesados investimentos governamentais, como os da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Sistema Nacional de Crédito Rural. “Por isso, é errada a demonização que o setor privado faz do Estado, atualmente, ao dizer que menos Estado é melhor”, afirma Favaretto. “A questão é, qual Estado, beneficiando a quem, por meio de que tipo de modelo?”.
Ao todo, o Matopiba compreende 73 milhões de hectares, onde vivem, segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, 5,9 milhões de pessoas. Segundo projeções da Embrapa, a produção de grãos na região deverá saltar de 18,6 bilhões de toneladas, registrados na safra 2013/2014, para 22,6 bilhões de toneladas, na safra 2023/2024, com área plantada de até 10,9 milhões de hectares. Entre 2013 e 2015, houve registro de desmatamento de 18,9 mil km² do Cerrado, que já perdeu metade de sua cobertura florestal.
Ainda de acordo com a pesquisa, as possibilidades de alinhamento entre dinamização econômica com redução da pobreza e da desigualdade têm a ver com o modo como se combinam cinco fatores nos territórios. São eles: formas de acesso e uso dos recursos naturais, relação com centros urbanos, acesso a mercados (não apenas no bojo da lógica mercantil capitalista), características da estrutura produtiva (mais ou menos desconcentrada ou especializada), e as políticas públicas. Esses parâmetros, adiciona Favareto, resultam de ampla pesquisa realizada em vários países da América Latina e nada têm a ver com os criticados receituários de “desenvolvimento” de organismos internacionais, não raro impostos por agentes “desenvolvidos” como condição de apoio a regiões e populações “subdesenvolvidas”.
No modelo atual do Matopiba, seja nas áreas comandadas pelo agronegócio, seja nas outras onde ele não chegou, a maioria das pessoas tem poucas oportunidades de escolher como quer viver, destaca o pesquisador: “Aumentar sua liberdade de escolher é o que se deve buscar: alguns chamam isso de bem viver, outros de desenvolvimento genuíno. Me parece que o nome importa menos; importa mais o sentido. E o sentido do que está acontecendo no Matopiba não vai nessa direção. É isso o que nosso estudo demonstra”.
A tendência de concentração de riqueza pode ser verificada, segundo a pesquisa, pela escassez e fragilidade de centros regionais no Matopiba. Seja no caso das cidades de Luís Eduardo Magalhães e Barreiras, no oeste da Bahia ou seja no de Balsas, no Maranhão, é rarefeita a presença de uma classe média mais consolidada que poderia ajudar na dinamização, na diversificação e na manutenção dos recursos gerados na própria economia local.
Outros catorze artigos integram o dossiê da Revista Nera. A editora Lorena Izá Pereira observa na apresentação que o trabalho teve início em 2015, com a criação de um grupo de trabalho com representantes de diferentes instituições e organizações dedicado ao “debate crítico acerca do avanço do agronegócio na região do Matopiba, bem como o apoio às populações que de algum modo são afetadas com o avanço da fronteira agrícola em áreas de Cerrado”. A formação da rede teve como esteio também as pesquisas e debates sobre estrangeirização da terra, desenvolvidas desde 2008 pelo professor Bernardo Mançano Fernandes, do próprio Nera. Ele assina um dos artigos, que tem como foco a apropriação da renda da terra por empresas controladas pelo capital financeiro em áreas de expansão da fronteira agrícola.
O dossiê foi pensado com o objetivo de evidenciar não apenas as estratégias de acesso e controle do Matopiba pelo capital transnacional e financeiro, mas de mostrar as particularidades, os impactos, os conflitos territoriais e as resistências, não apenas em termos ambientais, como também de territórios imateriais, explica Lorena no texto de apresentação.
O grupo conta ainda com membros da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), Ministério Público Federal (MPF), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e ONGs ambientalistas. A iniciativa ganhou impulso por conta da 1ª Capacitação Intercameral para Preservação da Terra e da Água do Cerrado Brasileiro, realizada no dia 11 de setembro (Dia do Cerrado) na sede da Procuradoria-Geral da República em Brasília.
De acordo com Lorena, a equipe da Revista Nera se surpreendeu com o volume e a diversidade das abordagens dos temas, com muitas pesquisas de campo, desde a regionalização como ferramenta para o agronegócio, passando pelos discursos no Poder Legislativo, da relação com o processo global de financeirização aos vários casos de impactos e conflitos propriamente ditos na região do Matopiba, chegando até a um paralelo com o caso do projeto de expansão do agronegócio ProSavana, em Moçambique. “Não se trata de algo que acontece apenas no Cerrado brasileiro, mas tem a ver com a questão agrária mundial”, comenta a editora.
Parte específica da estrutura federal para execução do Plano de Desenvolvimento Agropecuário (PDA) Matopiba e funcionamento de seu comitê gestor foi aprovada em Decreto presidencial de 2015, assinado pela ex-presidente Dilma Rousseff e pela ex-ministra e senadora Kátia Abreu (PDT-TO). Ainda que ele tenha perdido algum suporte a partir de 2016, com uma reestruturação do Ministério da Agricultura firmada por Michel Temer e com Blairo Maggi à frente da pasta, os interesses e as ações do agronegócio pela região seguem fortes. As empresas e os produtores, completa Lorena Izá, continuam avançando: são muitos e variados os conflitos existentes, retratados também em um levantamento da Fian, envolvendo camponeses, povos indígenas e quilombolas.