Tema marcou a segunda manifestação nacional de povos indígenas contra medidas do governo Bolsonaro; Assembleia Legislativa do Amazonas e Senado tiveram atos com dezenas de etnias
Por Julia Dolce
Dezenas de etnias marcharam, nesta quarta-feira (27), em Brasília e em pelo menos 22 estados brasileiros, contra a proposta de municipalização da saúde indígena e o desmonte da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Em um pronunciamento realizado no dia 20 de março, o ministro da Saúde, o ruralista Luiz Henrique Mandetta, anunciou a extinção do órgão. Com a ação, a saúde das populações indígenas ficaria sob responsabilidade dos municípios, e de seus respectivos governos e partidos.
Desde o início de seu mandato, o ministro – alinhado à política anti-indígena de Jair Bolsonaro – tem anunciado suas intenções em relação à saúde indígena. Os indígenas protestaram ocupando prédios públicos, fechando rodovias e se reunindo em aldeias contra as medidas. Eles dizem que o fim da Sesai representaria “um novo genocídio” para seus povos. A medida é apenas uma das ameaças aos direitos indígenas trazidas pelo governo.
No início do ano, indígenas por todo o país denunciaram a transferência da atribuição da demarcação das terras da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura, bem como a ameaça de paralisação das demarcações. De Olho nos Ruralistas acompanhou a campanha, chamada de Janeiro Vermelho, e as manifestações: “Com mais de 50 atos pelo Brasil e pelo mundo, indígenas inauguram onda de manifestações contra Bolsonaro“.
Dados da Sesai mostram que os atendimentos à população indígena aumentaram 400% nos últimos quatro anos. A secretaria contabilizou, entre 2014 e 2018, 16,2 milhões de assistências. A Sesai conta com 13.989 profissionais para garantir a assistência primária à saúde e saneamento ambiental dos territórios indígenas. São 360 Polos Base e 68 Casas de Saúde Indígenas (Casai), que atendem 205 etnias em 597 terras indígenas. A secretaria executa a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e toda a gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no Sistema Único de Saúde (SUS).
No Sudeste, povos indígenas realizaram manifestações por São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais. As manifestações no Rio estão previstas para esta quinta-feira. Pela manhã, na capital paulista, integrantes do povo Guarani que vivem na Terra Indígena Jaraguá ocuparam o prédio da prefeitura, administrada pelo tucano Bruno Covas. Localizada na zona oeste de São Paulo, a TI Jaraguá é considerada a menor terra indígena do país.
“O povo Guarani exige que a Prefeitura reconheça que o município não tem condições de assumir a oferta de uma saúde diferenciada aos povos indígenas, direito assegurado pela Constituição Federal”, disse, em nota, um dos líderes da aldeia. Cerca de 15 indígenas ocuparam o saguão do prédio e gritaram palavras de ordem contra o prefeito. Em seguida eles foram expulsos pela Guarda Civil Metropolitana.
Após a expulsão, cerca de 200 manifestantes se uniram em frente ao prédio aguardando uma resposta do prefeito. Posteriormente, porta vozes da prefeitura permitiram que líderes do movimento entrassem, com seus advogados, para um encontro realizado sem a presença de Covas. Um dos líderes do movimento, Tiago Jekupe, afirmou que os manifestantes não sairão da entrada do prédio até que o prefeito participe de uma reunião.
No Espírito Santo, indígenas da aldeia Tupiniquim no município de Caieiras Velha fecharam a Rodovia Primo Bitti, que corta a aldeia, protestando pela manutenção da Sesai. Em Minas Gerais, representantes dos povos Pankararu, Pataxó, Maxakali, Kaxixó, Mocuriñ e Krenak, do nordeste do estado, bloquearam a BR 116 contra os retrocessos na saúde. Também houve manifestações em Governador Valadares.
A região Nordeste registrou manifestações em todos seus estados, com exceção do Piauí. Na Bahia, indígenas Pataxó da TI Coroa Vermelha trancaram a BR 367, entre os municípios de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália. No Maranhão, os Guajajara da TI Araribóia e os Gavião (Pyhcop Cati Ji) protestaram contra a municipalização da saúde no município de Amarante. Em Imperatriz, indígenas pediram o fortalecimento de seu sistema de saúde.
Em Cabobró (PE), o povo Truka ocupou a BR 428, que liga Petrolina a Salvador. O povo Xukuru do Ororubá paralisou a BR 232. No Ceará, diversas etnias se mobilizaram. Entre elas o povo Tapeba, de Caucaia. As catorze etnias presentes no estado ocuparam a rodovia BR 222, na região metropolitana de Fortaleza.
Os povos indígenas do Nordeste ocuparam ainda rodovias nas divisas entre os estados de Sergipe e Alagoas, e entre os estados da Paraíba e Rio Grande do Norte. Nesta última, cerca de 1.500 indígenas Potiguara mobilizaram-se na BR-101, no km 29, em Mamanguape. A rodovia foi liberada por volta das 13h30, segundo informação da Polícia Rodoviária Federal.
Na região Sul do país, todos os estados registraram manifestações indígenas neste dia 27. Em Santa Catarina, indígenas bloquearam pelo menos três rodovias da região oeste do estado. Na ponte do Goio-Ên, na divisa com o Rio Grande do Sul, a manifestação terminou por volta das 16 horas. No Rio Grande do Sul, mais de 500 indígenas da etnia Kaingang das TIs de Iraí, Rio dos Índios, Serrinha, Rio da Várzea, Goj Veso e Guaritá, somaram-se na BR 386 para protestar contra a municipalização da saúde indígena.
Em Curitiba, os indígenas ocuparam a sede do Ministério da Saúde. Povos Kaingang e Guarani da TI Manguerinha fecharam a BR 373, também no Paraná. Indígenas da região de São Migual do Iguaçu, Santa Helena e Diamante do Oeste protocolaram um documento contra o fim da Sesai na Defensoria Pública da União de Foz do Iguaçu, na fronteira com Paraguai e Argentina.
Apenas Goiás não teve manifestações entre as quatro Unidades da Federação da região Centro-Oeste. No Mato Grosso do Sul, indígenas já haviam interditado na segunda-feira a Ponte Ayrton Senna, na BR-163, na altura do município de Mundo Novo, divisa com o Paraná.
No Mato Grosso, o povo Kurâ Bakairi mobilizou-se contra os desmontes na saúde indígena na própria aldeia de Pakuera Paranatinga. A mesma etnia realizou um protesto no centro de Nobres, solicitando o apoio do prefeito Leocir Hanel (PSDB). O líder indígena Valdomiro Soares afirmou que a manifestação está apenas começando: “Iremos até o dia 29 de março”.
No Distrito Federal, a coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) encontrou-se com lideranças indígenas no Senado, enquanto o ministro da Saúde apresentava sua nova proposta. A Apib foi a responsável por convocar atos por todo o país nesta quarta-feira. Também na capital federal, os povos Pataxó, Hã-Hã-Hãe, Tupinambá de Olivença e Tupinambá de Belmonte, todos da Bahia, marcharam contra a municipalização da saúde indígena.
Localizado no Amazonas, o município de São Gabriel da Cachoeira, considerado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como o mais indígena do Brasil, sendo 80% de seus habitantes indígenas, é o município com mais casos de malária desde 2018. Os dados são do Instituto Socioambiental (ISA). A gestão municipal chegou a sofrer uma intervenção estadual por recomendação do Ministério Público Federal (MPF) para que houvesse uma pronta resposta à epidemia.
É em São Gabriel da Cachoeira que fica a sede da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Em nota publicada em fevereiro, a organização manifestou seu repúdio à proposta do governo Bolsonaro: “Muitas lutas dos povos e organizações indígenas foram travadas para a criação do subsistema de saúde indígena conjuntamente com seus parceiros indigenistas. O resultado dessa luta não deve sofrer retrocessos por questões políticas de interesse partidário ou religioso”.
No Amapá, os indígenas realizaram um manifesto em frente da sede do Distrito Sanitário Especial Indígena do estado, no centro de Macapá. De acordo com o documento assinado, os municípios de Pedra Branca do Amapari e Oiapoque podem ser exemplo do que ocorrerá com a saúde indígena, caso a municipalização seja decretada. Para o vereador de Pedra Branca do Amapari, Jawatuwa Waiãpi (Rede), a medida pode causar “um genocídio indígena”.
Em Roraima, dezenas de indígenas protestaram em frente à Assembleia Legislativa de Roraima. No Centro Cívico de Boa Vista, indígenas, servidores e conveniados à Sesai participaram de uma manifestação. Os conveniados reclamaram do atraso no pagamento de salários desde o início da gestão Mandetta. Povos indígenas marcharam também em Rondônia. No Pará, cerca de 250 Kayapó dos municípios de Tucumã e Ourilândia do Norte realizaram uma manifestação. O município de Altamira – onde fica a Usina de Belo Monte – também registrou ato indígena nesta quarta-feira.
Desde a criação da Funai, em 1967, o atendimento à saúde dos povos indígena ficou sob responsabilidade de diferentes órgãos governamentais. Desde 1999, no entanto, a gestão é feita pelo Ministério da Saúde, que tem a responsabilidade de estabelecer políticas para a promoção, prevenção e recuperação da saúde indígena.
Tais políticas passaram a ser executadas pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a partir da criação de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei’s), com serviço de atenção básica. Na época, o serviço era chamado de Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasi/SUS), vinculado à Funasa.
Após escândalos de corrupção e denúncias de precariedades no atendimento, o movimento indígena deu início a um processo de lutas para passar a responsabilidade de sua saúde para o governo federal, por meio de uma secretaria específica, sob a asa do Ministério da Saúde. Foi em 2010 que a luta colheu frutos, com a criação da Sesai, que assumiu o gerenciamento de todo o subsistema.
A Sesai tem como princípio considerar categorias epidemiológicas, geográficas, culturais e etnográficas para o atendimento dos diferentes povos indígenas, e é considerada uma das principais conquistas do movimento. Para sua elaboração foi criado um grupo de trabalho com 26 membros, entre representantes do Ministério da Saúde, Funasa, Funai e líderes indígenas. O trabalho culminou em cinco grandes seminários regionais pelo país, com o objetivo de debater com diversas etnias suas demandas para a saúde.
Em nota divulgada ontem (26), em decorrência dos primeiros protestos pelo país, o Ministério da Saúde informou que eventuais mudanças ainda estão em estudo, que atualmente não existe nenhuma medida provisória do governo federal modificando a política indigenista no país e municipalizando os serviços de saúde de indígenas, e que não haverá “descontinuidade das ações”.
Em nota, o Ministério da Saúde, por meio da Sesai, informou que acompanha as manifestações realizadas e que está aberto ao diálogo. O órgão esclarece que os serviços de Atenção à Saúde Indígena, promovidos pelo Sesai, estão entre as atribuições da pasta, e que eventuais mudanças ainda estão sendo analisadas e discutidas, não havendo, assim, descontinuidade das ações.
Foto principal: Elineudo Meira