Das três vagas deixadas em Cavalcante, apenas uma foi preenchida; em meio à denúncias de descaso em postos de saúde e hospitais, quilombolas resgatam conhecimentos tradicionais ameaçados pelo desmatamento e pelo êxodo de jovens
Por Sara Almeida Campos, de Cavalcante (GO)
Consultas canceladas, viagens perdidas, doenças não tratadas e atendimento precário. Desde a saída dos médicos cubanos do Programa Mais Médicos, em novembro de 2018, esses relatos se tornaram parte do cotidiano para os 5 mil quilombolas do Território do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, localizado na Chapada dos Veadeiros, região nordeste de Goiás.
Uma situação que tem se agravado desde novembro com a decisão de Cuba de deixar o Programa Mais Médicos, após o presidente Jair Bolsonaro ameaçar expulsar os profissionais do país quando assumisse o governo.
“Os médicos cubanos atendiam bem e davam muita atenção pra gente, eles tinham muito pra ensinar os médicos daqui”, afirma Dona Fiota, raizeira e moradora da comunidade Vão de Almas, uma das mais isoladas do território Kalunga, a 90 quilômetros de Cavalcante em estrada de terra. “O atendimento no hospital ficou mais demorado e a gente fica esquecida, no sofrimento. É uma luta atrás da outra”.
Dados da Confederação Nacional de Municípios publicados pelo jornal The New York Times apontam que, passados seis meses da saída dos cubanos, 3.847 vagas continuam sem reposição, precarizando o atendimento de 28 milhões de brasileiros. Entre eles, os quilombolas de Cavalcante: das três vagas abertas pelo Mais Médicos no município, apenas uma foi preenchida.
A dificuldade de acesso às comunidades que compõem o território quilombola Kalunga impacta especialmente as gestantes. Moradora da comunidade Engenho II, Joana da Silva está no quarto mês de gravidez e ainda não realizou o exame pré-natal. “Não é sempre que as consultas dão certo”, relata. “Já aconteceu de eu estar grávida de 9 meses do meu outro filho e ir ao posto PSF [Programa de Saúde da Família] e depois na Unidade Básica de Saúde. Um lugar empurrou o atendimento ao outro e voltei pra casa sem me consultar”.
Há um posto de saúde no Engenho II, mas que não possui estrutura para realizar pré-natal. Para ir até Cavalcante, Joana gasta, em média, R$ 30 por pessoa, ida e volta. “O dinheiro que a gente gasta para pegar o pau-de-arara faz falta na minha casa. O dinheiro que recebo só dá para comer”. O transporte funciona apenas às terças e quintas-feiras e não são raras as viagens perdidas.
Joana conta que nunca sabe o dia em que o médico atende: “Vamos no [posto] da zona rural, não tem médico nesse dia. Vamos no da cidade falam que só podemos ser atendidas no da zona rural. Já até quis fazer a cirurgia de laqueadura, mas eles mandam a gente mexer em um bando de papel difícil de entender”.
O atraso de exames não é o único problema enfrentado pelas gestantes Kalungas. A guia de turismo Elizete Rosa conta que, ao chegar no hospital, já em trabalho de parto, foi orientada a voltar para casa, sem realizar a última ultrassonografia para conferir o posicionamento do bebê. “Era segunda-feira. O médico disse que se as contrações continuassem até quarta-feira eu poderia ir ao hospital de novo. Nesse mesmo dia, ganhei o neném em casa, à noite, com ajuda da minha nora, mãe e irmãs”.
Joana viveu um caso semelhante. “Um dia desses minha filha engoliu uma moeda”, relembra a quilombola. “Ela estava sentindo dor e eu fiquei preocupada. Pedi para fazerem exames pra saber onde a moeda estava. O médico passou um recado à enfermeira dizendo que, do mesmo jeito que entrou, a moeda ia sair. Voltamos pra casa com ela chorando de dor”.
Na avaliação do presidente da Associação Quilombo Kalunga (AQK), Vilmar Souza Costa, existe preconceito no atendimento aos quilombolas não só no ambiente hospitalar de Cavalcante, mas em toda a sociedade. “O que a gente quer é ter liberdade. Até hoje não fomos libertos. É uma opressão total, com uma forte mentalidade escravocrata. Não temos autonomia”.
Consultada pela reportagem, a secretária de Saúde de Cavalcante, Jueni Alves Moreira Maia, afirmou não haver diferenciação no tratamento aos pacientes quilombolas: “Quando recebemos reclamações, conversamos com a equipe para apurarmos o assunto. Muitas vezes não é exatamente aquilo que o paciente relatou”.
Sobre a falta de acessibilidade dos Kalungas à saúde, Maia garante que quando há algum caso grave entre os quilombolas da zona rural o hospital disponibiliza um veículo para buscar os pacientes. “Além disso, para os atendimentos mais básicos, temos equipes com 17 agentes de saúde que atendem exclusivamente na zona rural”, complementa.
Segundo a secretária, o principal empecilho no atendimento aos quilombolas é a falta de recursos. O município conta apenas com um clínico geral e um ortopedista, que atendem uma média de 40 a 50 pacientes por dia. “Estamos com credenciamento aberto para contratar quatro profissionais plantonistas. Estamos tentando também regionalizar hospitais de locais próximos como Formosa, Planaltina de Goiás e Águas Lindas para que alguns pacientes possam ser atendidos”
A crise na saúde que se seguiu à saída dos médicos cubanos fez muitos quilombolas recorrerem aos saberes tradicionais e às plantas do Cerrado em busca de tratamento. “Não temos a quem pedir socorro”, afirma Elizete. “A gente procura fazer o máximo de remédios aqui na comunidade. Esse nosso conhecimento salva vidas já que o hospital e a prefeitura viram as costas”.
Mas até essa alternativa parece estar se esgotando. O Cerrado é o bioma mais ameaçado do país. Somente entre outubro de 2018 e março de 2019, foram 47 mil hectares perdidos para o desmatamento, segundo a plataforma MapBiomas Alerta. Cerca de 51% da vegetação nativa do Cerrado já não existe mais. Em Goiás, a perda é ainda maior: apenas 39% da cobertura original continua de pé, em sua maior parte na região da Chapada dos Veadeiros.
Reconhecida como uma das raizeiras mais experientes dentre os Kalunga, Dona Fiota teme que os conhecimentos tradicionais se percam. “A população nativa sempre sobreviveu com o que tinha em mãos”, relembra a quilombola. “O que sempre salvou foram as plantas medicinais e as parteiras e as benzedeiras. Mas agora os conhecimentos tradicionais correm risco de extinção”.
Para a bióloga Daniela Ribeiro de Souza, especialista em fitoterapia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e coordenadora do Raízes: Encontro de Raizeiros, Parteiras, Benzedeiras e Pajés, o êxodo dos mais jovens em direção aos centros urbanos vem acelerando a perda desses conhecimentos. “Os curadores estão morrendo e não conseguem repassar esse conhecimento já que as novas gerações se veem obrigadas a procurar emprego na cidade”, afirma. “Temos que preservar os saberes ameaçados e reconhecer a importância das pessoas que vivem no Cerrado”.
Segundo a obstetra Lívia Martins, a incorporação do conhecimento tradicional dos quilombolas à medicina convencional é um dos principais desafios para a renovação da saúde pública no Brasil:
– Sou de uma geração de médicos que começou a pensar o SUS e a construí-lo antes dele existir. Nossa equipe de médicos, à época recém-formada, visitava comunidades tradicionais em busca de informações sobre as plantas. Nós fazíamos um casamento: uníamos o conhecimento popular às informações científicas da fitoterapia. [Mas] o SUS não fortaleceu intimamente cada um de seus usuários. A gente poderia reconstrui-lo para despertar a população ao autocuidado. O conhecimento das plantas tradicionais é a base para alcançarmos isso.
Dona Fiota faz sua parte. Além de atender dentro do território Kalunga, a raizeira viaja mensalmente a Brasília para realizar atendimentos e comercializar os ingredientes extraídos do Cerrado.
LEIA MAIS:
Para se proteger de ameaças, maior quilombo do país, o Kalunga, mapeia território em Goiás