Após dois despejos e 45 dias sob tiroteio, camponeses reconquistaram posse do Assentamento Padre Ezequiel, em Mirante da Serra; área localizada em terras da União é pressionada pelo avanço do agronegócio e sofre há 19 anos invasões de grileiros
Por Sarah Fernandes, em Mirante da Serra (RO)
Fotos: Danilo Ramos
No meio da madrugada, os faróis dos caminhões rompem o escuro do latifúndio passando por uma estrada improvisada. Na boleia e na caçamba estão espalhadas lonas, pedaços de pau, sacolas e o sonho de 200 famílias de agricultores de conquistar um lote de terra para trabalhar. Chegando próximo da sede da Fazenda Urupá, em Mirante da Serra, região central de Rondônia, idosos, jovens, mulheres e crianças saltam dos veículos e começam a erguer as primeiras barracas no local que, após quatro anos de luta, dois despejos e diversos tiroteios, viria a ser reconhecido como Assentamento Padre Ezequiel.
No dia 15 de outubro, a Polícia Federal deflagrou a Operação Padre Ezequiel, com o objetivo de reintegrar a posse de terras do assentamento, em atuação conjunta da Polícia Militar de Rondônia, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e de servidores da Justiça Federal. O processo judicial, que tramita em sigilo na Vara Federal de Ji-Paraná (RO), aponta que o assentamento, localizado em terras da União, foi invadido por grileiros para lotearem e comercializarem a terra.
Embora a área de reserva do assentamento seja de responsabilidade da União, o Incra não ajuizou a ação de reintegração de posse. Foram os trabalhadores ligados à Coopernaper que articularam o processo judicial e arcaram com seus custos. Após a reintegração de posse, os grileiros impetraram um pedido de usucapião da área da reserva, mesmo se tratando de uma área pública.
“Existe um problema agrário na Amazônia que é a inoperância do programa de reforma agrária”, avalia o advogado do assentamento Padre Ezequiel, Wellington Lamburguini. “Nos últimos 12 anos pouquíssima gente foi assentada. Outra problemática é o discurso do presidente [Jair Bolsonaro] que diz que as reservas são muita terra para pouca gente. Há um encorajamento a partir dessas falas e da forma como ele se relaciona com os ruralistas”.
Os mandantes da invasão ainda não são conhecidos. O inquérito da Policia Federal e a denúncia do Ministério Público de Rondônia não estão disponíveis para o público. Os únicos nomes citados judicialmente são de pequenos agricultores que, segundo os assentados, são motivados e financiados por empresários e políticos da região. “A forma como o Incra tem agido nos últimos anos tirou a tensão do conflito agrário para uma tensão entre agricultores”, avalia Lamburguini. “Os assentados receberam ameaças dos invasores. Pessoas não identificadas passavam nas estradas gritando nomes e atirando para cima.”
A área de reserva do Assentamento Padre Ezequiel já havia sido invadida por grileiros em 2016, quando foi impetrada a primeira ação de reintegração de posse. O caso não é único: a Comissão Pastoral da Terra denuncia que diversos assentamentos, terras indígenas e reservas extrativistas de Rondônia sofreram invasões em 2019. Os dados estão sendo tabulados para o Relatório de Conflitos do Campo, lançado anualmente pela instituição.
A coordenadora da Comissão Pastoral da Terra em Rondônia, Liliana dos Santos, avalia a conjuntura:
— Muitas áreas sofreram invasões e não conseguimos saber quem está por trás delas. Além disso, cresceu muito o assédio de empresas do agronegócio para que assentados arrendem ou vendam seus lotes para produção de soja. Um grande incentivo é o avanço da fronteira agrícola, que começa a pressionar áreas públicas de reserva a medida que o desmatamento se aproxima delas.
Era janeiro de 1997. O fazendeiro Walter Castro e seu filho Ricardo Borges de Castro Cunha viviam no Mato Grosso e administravam à distância a Fazenda Urupá, uma área de 6 mil hectares. O local era ocupado por algumas poucas cabeças de gado e dois peões que trabalhavam na fazenda. Além da enorme extensão de pasto, a área abrigava uma sede estruturada, um pequeno hangar e uma pista de pouso de aviões, onde Castro aterrissava, em visitas rápidas que não ocorriam mais que duas vezes por ano.
“Nem o sal para os bois era comprado por aqui”, conta o trabalhador rural assentado Márcio Ferreira Araújo. “Tudo vinha de fora e eles não geravam nada para cá. Esse era o último latifúndio improdutivo da região e depois de muitos anos sem cumprir sua função social, o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] começou a organizar as famílias para ocuparem a terra e dividi-la entre quem quisesse trabalhar e produzir”.
Foram meses de planejamento, organização e mobilização de pequenos agricultores para a primeira ocupação da área, que ocorreu em janeiro de 1997. “Era meia noite e estávamos programados para ir para Porto Velho, ninguém sabia que viríamos para a Fazenda Urupá iniciar a ocupação”, lembra a trabalhadora rural assentada Maria Carlos Pereira. “Essa área só produzia boi e muitas famílias não tinham condições de nada. Eram imigrantes de outros estados que vieram no sonho de conquistar um pedaço de terra. Membros de comunidades eclesiais de base organizaram estes grupos dizendo que quem não tivesse terra, mas tivesse disposição, podia se juntar à luta”.
Antes do amanhecer, os trabalhadores já haviam limpado a área, erguido as barracas e organizado seus pertences pessoais. A próxima etapa foi nuclear a fazenda e começar a produzir, porém o trabalho foi interrompido: em dezembro do mesmo ano um ofício da Justiça de Rondônia determinou a reintegração de posse imediata da área. Temendo por sua segurança, as famílias deixaram a fazenda de forma pacífica e receberam abrigo em um sítio vizinho, cujo proprietário era simpatizante da luta dos camponeses.
“Ficamos um período grande fora da área com o pensamento que quando sofremos o despejo, o Incra prometeu resolver a situação das famílias”, conta o agricultor assentado Ananias Raimundo de Andrade, relembrando a segunda ocupação, ocorrida em julho de 1998. “Com o passar do tempo, como ele não cumpriu a promessa, nós fizemos a primeira reocupação da área”.
O sonho foi novamente frustrado: Ricardo Castro recorreu e uma nova liminar de despejo interrompeu o trabalho dos agricultores, sete meses após a reocupação. Com a saída pacífica da área, as famílias se dividiram entre os assentamentos Palmares e Margaria Alves, ambos no município de Nova União, a 20 quilômetros de Mirante da Serra.
Como os trabalhadores não recebiam respostas nem qualquer posicionamento do Incra sobre a fazenda, decidiram lançar mão de sua única estratégia para conquistar a terra: a resistência. Organizados, decidiram ocupar a área pela terceira vez. Na madrugada de 2 de outubro de 1999, pelos menos 200 famílias subiram novamente em caminhões, levando em sacos de pano seus poucos pertences. Ao chegar na fazenda, no entanto, foram recebidos a bala pelos jagunços do fazendeiro Castro, como conta Araújo:
— Eu e as famílias estávamos descarregando os caminhões, baixando colchões e sacos. Era umas 4h30 da manhã e começou o tiroteio. Os pistoleiros acabaram pegando todo mundo de surpresa, enquanto as famílias desciam as coisas dos caminhões. Foi muito tenso, um tiroteio muito pesado. Homens correram, não quiseram mais voltar, deixaram as coisas no meio do mato.
Sob o tiroteio impetrado por pistoleiros contratados por Castro, as famílias correram para o mato, tentando proteger crianças e idosos. Os caminhões foram abandonados. Todos os pertences foram deixados para trás, na tentativa de defender a vida dos ocupantes. Foram pelo menos 15 minutos sobre intenso tiroteio disparados de armas de grosso calibre e longo alcance.
A tentativa de desmobilizar e amedrontar os trabalhadores saiu pela culatra: as famílias recolheram os poucos pertences que conseguiram salvar e montaram suas barracas, dispostas a não mais sair da terra. “Foi mais ou menos uma semana para tentar trazer as pessoas de volta”, lembra Araújo. “Algumas com mais coragem começaram fazer os barracos. O MST reforçou a segurança, mas foi muito difícil porque naquele momento era de pobreza total, era governo de Fernando Henrique Cardoso e a gente teve que ficar 70 dias sem poder sair para trabalhar”.
Castro respondeu: mandou construir cinco guaritas de 5 metros de altura em todas as entradas da fazenda. Nelas, pistoleiros armados impediam que qualquer pessoa não autorizada entrasse na área. Um destacamento da polícia militar de Rondônia foi designado para cuidar da área e ficou por um mês de plantão na sede da fazenda, com apoio logístico da prefeitura. Os policiais ajudavam a controlar a saída de pessoas e impedia a entrada dos assentados. “Era o Estado a serviço da opressão”, define Araújo.
Andrade descreve os momentos de tensão:
— Criou-se uma barreira. Eles vigiavam a gente de lá e a gente vigiava eles daqui. Era um limite estabelecido, nem nós íamos lá nem eles vinham até aqui. A gente tinha segurança 24 horas, não podia cochilar, porque qualquer ameaça eles corriam para a guarita e disparavam. O dia que os pistoleiros estavam contrariados eles vinham perto do acampamento e disparavam tiros. Era uma tentativa de intimidar, essa era a lógica usada.
Esse clima perdurou por quase um ano. Sem que o Incra cumprisse a promessa feita, os agricultores ocuparam a sede da instituição em Porto Velho, onde permaneceram entre julho e setembro de 2000. Enquanto isso, uma articulação entre a Diocese de Ji-Paraná, a Comissão Pastoral da Terra e parlamentares articulava juridicamente a negociação da fazenda.
A aquisição da área pela União foi decretada ainda em setembro daquele ano, pelo valor de R$ 5 milhões. “Quando nosso advogado pegou o termo de posse nas mãos, ele se ajoelhou e beijou o documento”, lembra Araújo, emocionado. “Por ser uma área que só produzia capim hoje produz aqui cupuaçu, cacau, acerola, banana, mandioca, tem criação de peixe, porco, café, tem extração de frutas nativas, feijão, milho e hortaliças. E só pela luta de classe é possível fazer esse enfrentamento para conquistar direitos, seja ele no campo ou na cidade.”
Nascido em 1953, em Padova, na Itália, Ezequiel Ramin foi ordenado padre em 1980 e três anos depois foi enviado ao Brasil. Ainda jovem havia decidido se tornar missionário e dedicar a vida aos mais pobres. Em abril de 1983, foi designado para trabalhar no município de Cacoal, em Rondônia, que ainda estava em processo de colonização.
Encontrou o que procurava: uma igreja caminhando com o povo e atenta às questões sociais por meio das comunidades eclesiais de base. Conheceu os conflitos de terra, a desigualdade no campo e a violência de pistoleiros. “O meu trabalho aqui é de anúncio e denúncia”, declarou, em evento público no estado. “Não poderia ser diferente considerando a situação do povo”.
Organizando os trabalhadores na resistência contra o latifúndio, costumava dizer aos jovens: “Sonhem em fazer felizes todas as pessoas”. Pelo seu trabalho recebeu ameaças e foi perseguido até que, em 24 de julho de 1985, aos 32 anos, foi tocaiado por pistoleiros quando voltava de uma visita a uma família sem-terra e morto a tiros de espingarda. Os mandantes do crime nunca foram conhecidos.
Em julho de 2019, duzentos bispos brasileiros pediram ao Papa Francisco para que padre Ezequiel Ramim, que dá nome ao assentamento de Rondônia, fosse o padroeiro do Sínodo da Amazônia, que ocorreu entre 6 e 27 de outubro, no Vaticano. Os clérigos solicitaram também sua beatificação e pleitearam que ele seja reconhecido como mártir pela igreja católica.