Desde 9 de maio o povo enterrou cinco anciões atingidos pelo novo coronavírus; um deles, o cacique Vicente Saw, deixou a síntese de uma cosmovisão: “O rio é nosso tudinho. Viemos da terra. Está onde nós moramos, nós andamos em todo canto, não é só num lugar não”
Por Yago Sales
“O rio é nosso tudinho. Viemos da terra. Da cabeceira até a boca. Então, esse é nosso pensamento, dizer que está fora da área, não está. Está onde nós moramos, nós andamos em todo canto, não é só num lugar não”. (Vicente Saw Munduruku)
— Nossas bibliotecas estão indo embora. Cada um dos nossos que morre é um pedaço da gente que se vai.
Em menos de trinta dias, além do professor e do cacique, morreram Jerônimo Manhuary, 86, Angélico Yori, 76, e Raimundo Dace, 70. Outros seis Munduruku estão internados em estado grave em hospitais de Jacareacanga e Itaituba.
Alessandra lembra que Amâncio percorria as distâncias que podia para garantir a sobrevivência da cultura do seu povo, distribuído em regiões diferentes nos estados do Pará (às margens dos afluentes do Rio Tapajós, em Santarém, Itaituba e Jacareacanga), Amazonas (às margens do Rio Canumã, em Nova Olinda, e em Borba, próximo da Transamazônica) e no Mato Grosso, em Juara, às margens do Rio dos Peixes.
Pai de três filhos, Amâncio é lembrado como uma forte liderança, um “guerreiro”. “Ele teve papel importante para a demarcação do território Munduruku”, diz ela ao De Olho Nos Ruralistas. “Um grande sábio. Ele veio aqui em casa perguntar se eu estava bem. Eu é que estava preocupada com ele. Ele sempre era assim, um homem cuidadoso com seu povo”.
Era comum ele ser citado em trabalhos acadêmicos que contribuíam para o conhecimento da historiografia, etnografia e linguística de seu povo.
A Associação Indígena Pariri-Munduruku, do Médio Tapajós, co-fundada por ele, escreveu em nota:
Alessandra afirma que os Munduruku estão preocupados com a possibilidade de o povo ter de enterrar mais parentes: “Tudo por incompetência, principalmente do governo federal. A gente sabe que o governo federal quer as nossas mortes, criando leis, medidas provisórias que vão nos atacar. Com esse vírus invisível fica mais complicado. A gente está preocupado com mais mortes. O povo é grande, é vulnerável, não sabe o risco que está correndo. Muitos não têm informações. Tem aldeia que não tem comunicação”.
Ela conta que a orientação nas aldeias é que ninguém vá à cidade. “Mas eles ficam quinze dias e acham que tudo voltou ao normal, com enganação do governo que diz nos jornais que não precisa mais de isolamento, que está tudo bem, que é só uma gripezinha, que precisa economia. Na cidade, se contaminam e voltam para as aldeias.”
Com a morte dos anciões, diz Alessandra, é o ritual de conhecimento de gerações que se perde rápida e silenciosamente com o novo coronavírus. “Nós, mulheres, confiamos muito nos mais velhos. Quando morrem, parece que estão arrancando um pedacinho de nós. Não foram só o Amâncio e o Cacique Vicente que foram embora. Foi nossa história”.
À espreita dos rios, da vegetação, dos bichos, os povos da Amazônia ouvem os mais velhos para sobreviver. Por isso as mortes causam tantas aflições. Não apenas pelo vírus. “Eu tenho medo que a violência dentro do território aumente com a morte dos anciões”, afirma a jovem. “A violência pode aumentar com a hidrelétrica, a ferrovia, o garimpo e mineração que estão de olho em nossas terras. O governo federal está ajudando a nos matar.”
Em 2013, quando os guerreiros Munduruku detiveram 25 pesquisadores que recolhiam amostras da fauna e flora no território indígena, o cacique Vicente Saw defendeu sua terra. Os pesquisadores estudavam a região para viabilizar a construção da hidrelétricas do rio Tapajós.
À época, os indígenas mantiveram sob custódia três biólogos que usavam uniformes da empresa Concremat, que prestava serviços para o Consórcio Grupo de Estudos Tapajós, liderado pelas empresas Camargo Corrêa, GDF Suez, Eletrobras e Eletronorte.
Orçado em R$ 30 bilhões, o projeto teria de enfrentar o espírito aguerrido dos 12 mil indígenas. E, claro, se dependesse do cacique de uma das 120 aldeias dos Munduruku, a vida por lá continuaria como a dos antepassados, com pesca, caça e colheita de frutos das árvores.
Muita gente disse que os pesquisadores não foram flagrados na área indígena. “Mas vai trazer problema para área indígena todinha”, disse, na época, o cacique Vicente Saw. “Tá na nossa área. O rio é nosso tudinho. Vivemos da terra. Da cabeceira até a boca. Eu falei para eles, então esse é nosso pensamento, dizer que esta fora da área, não está. Está onde nós moramos, nós andamos em todo canto, não é só num lugar não. Então é muito bom que ele ouve a gente, nós temos o nosso pensamento, ele tem o deles e por isso temos o nosso”.
Em 25 de abril de 2014, em outra tentativa de defender o direito de seu povo ao território, Vicente foi o terceiro a assinar um pedido ao governo e à sociedade brasileira: “Queremos que o governo prove sua boa fé, publicando o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Sawré Muybu do médio Tapajós, e o cancelamento de todas as licenças de pesquisa e lavra no subsolo da Terra Indígena Munduruku.”
Em 2013, os Munduruku ficaram oito dias acampados em um canteiro de obras em Belo Monte. Queriam ser ouvidos. “O nosso Rio Tapajós deixa lá, por favor!”, pediu o cacique em um vídeo. “Cada um tem um terreno, cada um tem um rio, isso é o que eu quero dizer pro Brasil”.
| Yago Sales é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Foto principal (Rogério Assis/Greenpeace): manifestação contra hidrelétricas no Rio Tapajos
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