Ministra fez concurso de máscaras infantis durante curva de crescimento da pandemia; frases “polêmicas” desviam foco de ações que prejudicam indígenas, negros, LGBTQI+s e mulheres; especialistas indicam os truques da missionária que se tornou política
Por Mariana Franco Ramos
No dia em que o Brasil ultrapassava a marca de 9 mil mortes por Covid-19, 07 de maio, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, anunciava, em coletiva de imprensa, uma das poucas ações de sua pasta para combater a pandemia: um concurso de máscaras infantis:
— Eu vim de Mulher Maravilha, de Mulher Aranha. Existe, sim, Mulher Aranha, viu, crianças?
— E aí, como vocês estão durante a quarentena? Está todo mundo se protegendo? Está todo mundo lavando bem as mãos? Todo mundo usando máscaras? Eu estou. E as minhas máscaras são muito engraçadas.
O tom parecia o de uma apresentadora de televisão. Empolgada, ela contou que o prêmio para os vencedores do certame seria passar uma tarde no Palácio da Alvorada, em Brasília, com “essa linda ministra” e com a “linda primeira-dama”, Michelle Bolsonaro, em data a ser divulgada posteriormente. O vídeo foi mais um dentre tantos de Damares que viralizou.
Além das mais de 20 mil perdas em decorrência do vírus até então, os brasileiros choravam o assassinato do estudante João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, ocorrido durante operação policial em São Gonçalo (RJ), em 18 de maio. A ministra não falou sobre o assunto.
Morador do Complexo do Salgueiro, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o adolescente levou um tiro de fuzil na barriga enquanto brincava com amigos dentro da casa de uma tia. Foi o quarto caso de criança morta em ações da polícia contra o tráfico no estado em 12 meses, segundo a ONG Rio de Paz. Todas as vítimas eram negras.
O professor de História Clóvis Brighenti, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), afirma que existe uma inoperância proposital — e política — por parte da pasta. “É um espaço fundamental na sociedade brasileira, a área de direitos humanos, que poderia ter uma incidência muito determinante, no entanto, a gente não observa isso”, comenta ele, que coordena o Observatório da Temática Indígena na América Latina (Obial).
Na avaliação de Brighenti, as manifestações da ministra beiram “ao ridículo e ao lúdico”:
— Isso é algo proposital, porque na medida que ela se manifesta dessa maneira não permite que outros ocupem esse espaço, não permite que esses temas sejam debatidos. Ocupa uma cadeira e não deixa que ninguém sente. Digamos que ela tivesse que se posicionar sobre direitos humanos. Não teria como não expor os contextos de grave violação.
Ainda segundo ele, Damares não está na função como civil, mas como pastora, para cumprir uma missão que considera divina. “Ela infantiliza os indígenas; não entendeu ou faz questão de não entender que eles não são mais tutelados”, explica. “E se coloca como a mãe dos índios, a pessoa que precisa salvá-los, evangelizá-los”.
Proposital ou não, o modo de pensar e agir dessa figura por vezes debochada reflete em todos os setores do governo. Cabe a ela comandar um orçamento de R$ 673,7 milhões, para as ações desenvolvidas diretamente pela pasta, bem como orientar a política de promoção e defesa dos direitos infanto-juvenis, dos idosos, das pessoas com deficiência, dos negros, dos povos do campo, das mulheres e dos LGBTQI+s. A sigla se refere a pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queers, intersex e de outras identidades ou orientações.
O vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), Leonardo Pinho, atenta para o que considera principal: a execução orçamentária do ministério é baixa. Até agora, dos recursos previstos para 2020, foram aplicados R$ 77,8 milhões. “Apesar de ela se comunicar muito, não tem projetos estruturantes”, diz, citando como parâmetros gestões anteriores. “Por exemplo, o Paulo Vannuchi (ministro de Dilma Rousseff) fez o PNDH-3”, lembra, em referência ao Programa Nacional de Direitos Humanos número 3, que traçou diretrizes e estratégias para o setor.
— Se você olhar, o ministério dela tem depoimentos polêmicos. Mas se peneirar mesmo, qual a política pública que ela instituiu no Brasil? Eu desconheço. O programa (de Proteção aos) Defensores de Direitos Humanos e o Disque 100 são políticas anteriores. Ela não deu uma nova dimensão. É bom continuar as políticas públicas. Mas ela podia dar saltos de qualidade. Você não vê uma marca de política estruturante.
Natural de Paranaguá, no litoral do Paraná, Damares Regina Alves tem 56 anos. Já morou na Bahia, em Alagoas, Sergipe e São Paulo. Seu pai, o pastor da Igreja Quadrangular Henrique Alves Sobrinho, fundou quase cem templos em todo o Brasil. Foi sob a influência dele que ela se tornou pastora evangélica. Sua linhagem ruralista, porém, é bem menos conhecida.
Damares é graduada em Direito pela extinta Faculdades Integradas de São Carlos (Fadisc), instituição descredenciada pelo Ministério da Educação (MEC) em 2011 e proibida de realizar exames vestibulares desde 2012. Embora se apresente como mestra em Educação, Direito Constitucional e Direito de Família, jamais recebeu os títulos. “Nós, como pastores, recebemos o ministério de mestres dentro da perspectiva cristã”, argumentou, ao ser questionada pela Folha sobre sua formação, em janeiro de 2019.
A atuação política da ministra começou no fim da década de 90, na esteira de um parente religioso: o tio Josué Bengtson (PTB-PA), que a convidou para trabalhar em seu gabinete na Câmara. Foi ele quem disse que não voaria em avião pilotado por alguém que ingressou na universidade por meio de cotas. O pastor e pecuarista já respondeu a acusações de corrupção. Em maio de 2018, ele foi condenado a devolver aos cofres públicos R$ 150 mil por sua participação na “máfia das ambulâncias ou das sanguessugas”.
Como ficou inelegível, Josué escolheu o filho Paulo Bengston (PTB-PA) para ser seu sucessor em Brasília. O ruralista também é pai de Marcos Bengston, acusado de ser o mandante do homicídio do sem-terra José Valmeristo Soares, o Caribé, em 2010. O crime foi tema de reportagem do De Olho nos Ruralistas: “Acusado de assassinar sem-terra em 2010, irmão do deputado Bengtson continua impune“.
Damares assessorou diversos outros políticos antes de ser alçada ao primeiro escalão do governo. Entre eles estão João Campos de Araújo (PRB-GO), autor do projeto sobre a fictícia “cura gay”, e Arolde de Oliveira (PSD-RJ), eleito senador em 2018 com apoio massivo do clã Bolsonaro. O último parlamentar com quem a ministra trabalhou foi o ex-senador Magno Malta (PL-ES). Todos da bancada da bíblia no Congresso. “O país é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã“, discursou a pastora, ao tomar posse.
Para a maioria das oito secretarias do Ministério de Direitos Humanos (MDH), Damares escolheu nomes de evangélicos militantes, como o da jornalista paranaense Sandra Terena, conhecida pela “evangelização indígena”, na Igualdade Racial, e o do pastor Sérgio Augusto de Queiroz, na “Proteção Global”, que incorporou a temática LGBTQI+. Queiroz é atualmente secretário especial do Desenvolvimento Social.
Sandra é casada com o blogueiro Oswaldo Eustáquio, preso após propagar ataques extremistas contra instituições democráticas, como o Supremo Tribunal Federal (STF). Radicado em Paranaguá, mesma cidade da ministra, ele já respondeu a acusações de homofobia e foi responsável por difundir a notícia falsa de que Arlene Greenwald, mãe do jornalista Glenn Greenwald, mentiu sobre ter câncer. Arlene faleceu em dezembro de 2019, vítima da doença.
O vice-presidente do CNDH destaca o fato de Damares dialogar muito com a base de sustentação do governo Jair Bolsonaro: setores evangélicos, católicos e ultraconservadores em geral, o que inclui, além do fundamentalismo religioso, o político. Não é à toa que a pastora é apontada como linha de frente da chamada ala ideológica do Palácio do Planalto.
Leonardo Pinho analisa seu modo de operar:
— Ela é muito hábil na estratégia de comunicação. Está num ministério que não é central, do ponto de vista orçamentário, como o da Economia, o da Educação e o da Saúde, mas, com eficiência, conseguiu ficar muito conhecida.
O sucesso dessa estratégia ficou evidente em pesquisa realizada pelo Datafolha no fim de 2019. Com 43% de aprovação, Damares foi a segunda mais bem avaliada da Esplanada, à frente do próprio presidente, com índice de 30%, e atrás apenas do hoje ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que recebeu 53%. Considerando o recorte de renda, ela foi a única com apoio menor entre as pessoas mais ricas e maior entre quem recebe até dez salários mínimos.
O observatório mostrou, há um ano, que missionários da ONG Jovens com uma Missão (Jocum), ligada à ministra, foram responsáveis por levar gripe e malária a territórios de indígenas isolados no Alto Rio Piranha, na Amazônia, em 1995: “ONG ligada à ministra Damares levou malária a indígenas isolados“. O roteiro englobou construção de pistas de pouso clandestinas, contrabando de sementes e viagens sem autorização em busca de etnias a serem convertidas.
A organização Atini, que tem a pastora entre seus fundadores, foi criada a pretexto de proteger crianças indígenas. Um de seus alvos é a prática de alguns povos isolados de abandonar bebês que nascem com determinados problemas de saúde. A Atini, porém, apresenta a situação como comum entre as comunidades. Por essa razão, foi acusada de incitar o ódio ao produzir o documentário “Hakani: A história de uma sobrevivente”, com relatos falsos.
Sandra Terena é a autora de outro documentário, “Quebrando o Silêncio“, lançado de forma independente, divulgado no site da organização. O objetivo é o mesmo: denunciar o “infanticídio em aldeias”. Narrado pela jornalista, o filme reúne depoimentos sobre supostos casos de violência nas comunidades, sobretudo de quem defende a intervenção do Estado no tema.
A Atini é acusada, ainda, de retirar indígenas clandestinamente de reservas, o que pode ser caracterizado como sequestro. A prática esconde a adoção ilegal de crianças. A própria Damares se orgulha de ter adotado uma menina do povo Kamayurá, no Xingu, então com 6 anos. O processo nunca foi formalizado.
Na famosa reunião ministerial de 22 de abril, a ministra voltou a ganhar os holofotes, ao acusar a esquerda de “dizimar aldeias” no Amazonas e em Roraima para “colocar nas costas do presidente”. Ela já vinha sendo questionada por omissão, devido ao aumento na quantidade de casos de Covid-19 nas comunidades.
O vídeo do encontro foi divulgado pelo ministro Celso de Mello, do STF, em virtude das acusações de Moro sobre suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal.
Na mesma reunião, Damares também mostrou seu viés autoritário, ao pedir a prisão de governadores e prefeitos que adotaram medidas mais restritivas de combate ao coronavírus. “Nós estamos vendo padres sendo multados em R$ 90 mil porque estavam dentro da igreja com dois fiéis”, criticou.
Apesar de noticiadas, todas essas atitudes e acusações repercutiram menos que declarações controversas, muitas delas preconceituosas e mentirosas. Como a de que meninos devem vestir azul e meninas devem vestir rosa. Ou a associação que ela fez de abuso sexual de crianças e adolescentes na Ilha do Marajó, no Pará, ao fato de (na imaginação de Damares) não usarem calcinhas. Essas falas foram encaradas como piadas e viraram memes nas redes sociais.
Enquanto isso, morrem 90 mil brasileiros por Covid-19.
Clóvis Brighenti cita a omissão do Executivo na questão fundiária, que engloba tanto a demarcação de terras como a proteção dos territórios, e a exposição das comunidades à proliferação da pandemia. “Temos hoje no território ianomâmi cerca de 25 mil garimpeiros”, conta. “São eles que levam a pandemia para lá, que poluem as águas… E não se ouve uma palavra da ministra”.
Para o vice-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Leonardo Pinho, a marca mais terrível da ministra é ela ser a responsável por “operar” os conselhos de participação social. Em abril de 2019, Bolsonaro publicou o decreto 9.759, extinguindo colegiados da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. A medida manteve apenas 32 órgãos consultivos, o que representava 1,2% dos mais de dois mil e quinhentos.
“Como a maioria desses conselhos está no ministério dela, foi ela que operou”, diz Pinho. “Basta ver que o da diversidade virou um conselho genérico contra a intolerância. Ela tirou a representação LGBTQI+. E agora está fazendo escolhas, e não mais eleições com a sociedade civil. É um processo seletivo em que o próprio ministério é o selecionador”.
De acordo com Pinho, a pastora cassou os mandatos dos conselheiros da pessoa idosa, incluindo o da presidente eleita, Lúcia Secoti, e pôs no lugar o secretário do MDH, para controlar o fundo. “Detalhe: não é só um fundo de recurso público; tem doações privadas”, conta, completando que a tática é uma forma de enfraquecer a participação social e “tomar de assalto” as verbas.
O mesmo modus operandi, segundo ele, ocorreu no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que só está funcionando graças a uma medida judicial, e com o mecanismo e o comitê de prevenção e combate à tortura: “Esse é o grande legado da ministra Damares: atacar os espaços de participação e controle social, com uma tentativa clara de controle por parte do governo”.
A ideia central dos conselhos é permitir que a sociedade civil participe da formulação das políticas públicas e ajude no combate à corrupção. “Ela tentou transformar num grupo interministerial”, reforça Pinho. “Em qualquer empresa, quem controla o processo seletivo? É o patrão, porque ele vai escolher alguém alinhado com o que quer”. Se o ministério escolhe os representantes da sociedade civil, “nitidamente vai escolher aqueles mais afeitos à opinião do governo”.
Pinho lembra ainda que Damares tem contribuído com muitos atrasos nas resoluções internacionais. O Brasil se absteve recentemente na votação de um relatório do conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre discriminação de gênero. Proposto pelo México, o documento tem como objetivo eliminar o preconceito e orientar os países, diante do agravamento da pandemia. Uma das maiores críticas é que, durante as negociações, houve uma aproximação com países com histórico de repressão aos direitos das mulheres e meninas, como Egito, Paquistão e Arábia Saudita.
O concurso promovido pelo MDH terminou no dia 26 de junho, em mais uma transmissão espalhafatosa de Damares Alves. Alheio às ações da pasta, o “vilão coronavírus” continua implacável — com o categórico impulso do governo que ela defende. Nesta quarta-feira (29), conforme o Ministério da Saúde, o Brasil chegou a 2.552.265 casos e 90.134 mortes.
Entre os mortos, 599 indígenas.
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas |
Imagem principal: Baptistão
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