Do total de 211,7 milhões de brasileiros, 116,8 milhões convivem com algum grau de insegurança alimentar; diretor do Instituto Fome Zero lembra que desigualdade é maior no campo e que problema não está na falta de alimentos, mas na concentração de renda
Por Mariana Franco Ramos
Mais de 70% da população brasileira apresenta algum grau de insegurança alimentar, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Pennsan). Mas o crescimento da fome, sobretudo no campo, não se deve à falta de comida, e sim à pujança do agronegócio. A conclusão é do agrônomo José Graziano da Silva, ex-diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e diretor do Instituto Fome Zero, lançado em outubro do ano passado.
Em aula magna do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na noite de terça-feira (20), ele lembrou que o Brasil é um grande produtor de alimentos e ressaltou a responsabilidade do setor no aumento da desigualdade:
— Existe um conflito entre a valorização extrema do setor exportador, de commodities, a distribuição de renda local e o acesso dos trabalhadores a uma boa alimentação. A renda do setor exportador, do agronegócio, é extremamente concentrada. Pagam salários aviltantes aos trabalhadores e ficam com a maior parte dos recursos.
Graziano observou que esse setor exportador do país quebrou todos os recordes pandemia, exportando não somente milho, soja e café, mas também produtos que não eram da pauta tradicional, como arroz e feijão. “Dizem que eles trazem dólares, divisas”, afirmou. “Mas para quem exporta; não para o trabalhador”.
De Olho nos Ruralistas fez, há dois anos, um vídeo que mostra o papel do agronegócio na perpetuação da desigualdade:
De acordo com o inquérito da Rede Penssan, divulgado no início de abril, dos 211,7 milhões de brasileiros, 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar (IA). Destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões enfrentavam a fome. A IA grave dobra nas áreas rurais do país, especialmente quando não há disponibilidade adequada de água para produção de alimentos (de 21,1% para 44,2%) e para o consumo dos animais (de 24% para 42%).
Os índices são os piores desde 2004, quando 64,8% da população se alimentava de forma adequada, contra 44,8% hoje. No Nordeste, a porcentagem cai para 28,1%. Até 2013, todas as pesquisas mostravam regressão da fome.
“Quero destacar duas coisas: o decréscimo foi rápido, mas a subida foi praticamente o dobro, de 14,5%”, diz Graziano. “O segundo ponto é que no Nordeste os dados são todos piores”. Ele conta que, em 2020, o Brasil tinha 9% da população passando fome — no Nordeste, 14% da população. Outro número que ele considera significativo é o da insegurança alimentar leve, as pessoas que sofrem restrições devido ao preço dos produtos: “Isso atinge 34,77% e mais de 41% no Nordeste. Ou seja, mais de 70% da população enfrenta alguma forma de insegurança”.
Há um ano, em entrevista ao De Olho Nos Ruralistas, ele já havia alertado para a possibilidade de o país retornar ao Mapa da Fome durante a pandemia e criticou o desmonte das estruturas de abastecimento e fomento de cooperativas de pequenos agricultores por parte do governo Bolsonaro.
Graziano destaca que a insegurança alimentar no mundo vem crescendo desde 2014, devido à recessão econômica, e que as projeções feitas em 2020 ainda não previam uma segunda onda de Covid-19. Mesmo considerando o melhor cenário, já havia uma tendência de aumento na quantidade de subnutridos, de aproximadamente 696 milhões para 828 milhões, ou seja, mais de 10% da população mundial.
Os dados são da FAO, foram divulgados na semana passada e correspondem ao objetivo número 2 do desenvolvimento sustentável: a fome zero. “Somando insegurança moderada e grave, antes da Covid tínhamos cerca de 2 bilhões de pessoas no mundo passando algum tipo de fome”, destaca. “Esses números infelizmente são piores hoje”.
Enquanto isso, o agronegócio continua crescendo, alheio à crise econômica, à pandemia e ao genocídio em curso. De janeiro a outubro de 2020, a balança comercial do setor registrou superávit recorde, com saldo de US$ 75,5 bilhões.
A receita com exportação foi de US$ 85,8 bilhões, uma alta de 5,7% em relação ao mesmo período do ano anterior. As informações são da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e baseadas nos dados da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia.
— Num momento muito particular, em que a China está recompondo os seus estoques, há essa pujança do agronegócio exportador. Mas isso não irriga renda, não transfere renda; concentra cada vez mais. Há uma concentração brutal de terras e de propriedades.
Graziano observa que as pessoas não têm mais acesso a plantar os próprios alimentos, diante das extensões imensas na escala da produção de milho, soja e outras commodities. “Esse modelo brasileiro de exportação de commodities, sejam elas minerais ou agrícolas, não deixa valor agregado suficiente no país — nem para deixar emprego, nem para deixar uma boa distribuição de renda”, afirma. “Estamos vendo o Brasil empobrecer como nação e concentrando a riqueza nas mãos de poucos, que são os grandes proprietários”.
Ele define como espantoso o nível de concentração do agronegócio: “Meia dúzia de empresas responde pela comercialização, pelo processamento e pela distribuição da maior parte dos produtos agropecuários. Uma quantidade cada vez menor de fazendas responde pelo maior volume de exportações”.
Mérito do setor? Não em sua avaliação: ele diz que o mérito do agronegócio é o de conseguir capitalizar o apoio político, com uma bancada majoritária no Congresso, que aprova tudo que é de seu interesse, “mas não de interesse do povo brasileiro”. Segundo o agrônomo, é preciso mudar a política fiscal e alterar a isenção de insumos: “Só temos isenção para os químicos, fertilizantes, agrotóxicos, usados por esse setor”.
Graziano defende a restituição do auxílio emergencial em valores adequados às necessidades básicas e pelo tempo que for necessário, a recomposição das políticas sociais de combate à fome e a promoção da segurança alimentar. E mais: a abolição da emenda constitucional do teto de gastos e o engajamento das diferentes esferas de poder como formas de diminuir a desigualdade. “Não dá para esperar trocar o presidente; 2021 ameaça ser uma tragédia nunca vista nesse país se a sociedade civil e o poder público municipal não se organizarem para enfrentar essa situação”.
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas. |
Foto principal (Arquivo/FAO): Agrônomo diz que exportação de commodities não traz divisas para o trabalhador