Por estar na cidade, Iamony Mehinako teve a vacina negada no prazo necessário e se tornou mais uma vítima da Covid-19; mais de mil indígenas já faleceram por causa da doença no Brasil, embora governo conte apenas 700, ao não considerar as mortes urbanas
Por Julia Dolce
“A pajé Iamony Mehinako foi arrancada de nós por essa doença chamada Covid-19”. Foi assim que sua filha Watatakalu Yawalapiti informou a morte de Iamony em uma postagem emocionada no Facebook. A indígena tinha cerca de 59 anos e faleceu no dia 25 de maio, na UTI de um hospital no município de Querência (MT). Ela foi excluída da segunda dose da vacina porque não vivia mais dentro do Parque do Xingu.
Desde a morte de seu marido por infarto em 2015, o cacique Pirakumã Kamaiurá Yawalapiti, Iamony passou a morar na zona urbana de Canarana (MT). É o que faz uma grande parte população do Território Indígena do Xingu, de uma forma pendular: pois eles sempre retornam ao território.
A pajé passou a primeira parte do isolamento da pandemia em sua aldeia. Com a entrada do vírus no Xingu, seus filhos optaram por levá-la para a casa da família na cidade, uma vez que ela era portadora de doenças crônicas.
“Ela vivia entre aldeia e cidade”, conta Amaire Kaiabi, integrante do Movimento de Mulheres do Xingu e coordenadora de campo da organização ATIX Mulher. “Logo que ela tomou a primeira dose da Coronavac alguém informou o DSEI do Xingu que ela morava na cidade”.
A partir daí, o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) começou a não vacinar xinguanos que estão morando na cidade ou ficam entre ela e a aldeia. Segundo Amaire, houve resistência por parte do DSEI — um órgão da Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde — para vacinar Iamony, que havia tomado a Coronavac e precisava receber a segunda dose num prazo de, no máximo, trinta dias.
O Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde estabeleceu a vacinação prioritária apenas de “indígenas aldeados”, ou seja, dos indígenas que vivem em territórios já homologados. Amaire, que trabalhou durante sete anos como agente de saúde indígena, conta que foi preciso brigar para conquistar a segunda dose de Iamony. Mas ela veio fora do prazo.
Desde então, Amaire intensificou sua luta pela vacinação indígenas não aldeados. A segunda filha de Iamony, Anna Terra Yawalapiti, ainda não conseguiu ser vacinada, mesmo tendo se contaminado com a Covid-19 dentro do Território Indígena do Xingu e ficado muito debilitada. “O Estado não está olhando para os indígenas como deveria”, afirma Amairé.
Anna Terra ficou conhecida pela foto abaixo, de braços abertos. Ela estava em frente de uma tropa formada por seguranças do Congresso, em 2017, durante um dos protestos contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que previa transferir ao Legislativo a responsabilidade de demarcar terras indígenas: “Três anos após a foto: Anna Terra Yawalapiti perde tio Aritana por Covid-19 e tem sintomas“.
A vacinação de indígenas que vivem em zonas urbanas ou em territórios ainda não homologados é uma das principais bandeiras do movimento indígena durante a pandemia. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) pressiona para que todos os 800 mil indígenas brasileiros, conforme o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sejam vacinados.
Cerca de 400 mil indígenas vivem em áreas urbanas ou em territórios não homologados no país. De acordo com Erick Terena, que integra o Comitê pela Vida e Memória Indígena da Apib, esse é o perfil que mais preocupa a organização: “Aí que mora o grande perigo. Como muitos desses indígenas vivendo em cidades têm suas doses administradas a cargo das prefeituras dos municípios, muitos lugares acabam omitindo a vacinação”.
Iamony Mehinako fazia parte de uma geração de importantes líderes políticos e diplomáticos, protagonistas nos anos 50 do contato entre os “alto xinguanos” com os irmãos Villas-Boas, criadores do parque. Seu companheiro, conhecido como Pira, era filho de Paru Yawalapiti, grande líder do Xingu, e irmão de Aritana, que morreu por Covid-19 em julho de 2020: “Em último perfil, Aritana Yawalapiti disse que estrada no Xingu seria ‘chegada do que não presta’“.
Sua família teve um desempenho fundamental no processo de integração pacífica das dezesseis etnias cujos territórios formam o Território Indígena do Xingu. As filhas, netos e netas de Iamony vivem em Canarana e continuam a representar politicamente os alto-xinguanos. A filha Watatakalu escreveu sobre a ação amorosa e engajada da mãe:
— Mamãe que me deu a vida, que me ensinou como a vida teria que ser enfrentada, me ensinou a trabalhar com arte, me ensinou os cantos sagrados, me ensinou a dar valor à cultura do nosso povo Aruaki.
Iamony Mehinako ajudou também a perpetuar a cultura da cerâmica do Alto do Xingu. Ela herdou os conhecimentos de sua avó, Caiti. Iamony era filha de pai Mehinako e de mãe Waurá. Em depoimento para um documentário francês, ela lembrou como convenceu a avó, outra grande ceramista, a lhe repassar o conhecimento. Os Kuikuro, Kalapalo e Kamaiura só compravam na mão dela:
— Quando eu era menina, parece que dez anos – dez anos já é grande – eu começava a ficar com ela, eu ficava brincando, fazendo a cerâmica pequenininha.
– Você tem que ter paciência pra saber dessas coisas – minha avó falou. Mas aí eu não sabia o que responder pra minha avó. Eu ficava só rindo.
Depois que teve a primeira menstruação, Iamony saiu de perto dela, relata o documentário, porque não podia fazer mais cerâmica. Ficou dentro de casa durante quatro anos.
— Agora você já esta mocinha, você pode aprender a fazer rede, esteira, fiar algodão – ela falou.
— Vó, quando eu sair, você pode continuar ensinando cerâmica?
— Ainda você insiste? – ela riu — Agora você já é moça, você é moça bonita, você pode ficar dentro de casa, limpa – porque quando a gente mexe argila a gente suja o tempo todo. Você tem certeza que quer?
— Eu quero.
Iamony também trabalhava com o processamento da mandioca na torra do beiju e no descarregar da lenha. “As pernas grossas moldadas pelas amarrações da reclusão, balanço de corpo pra trazer panelões de 10 litros de água equilibrados na cabeça desde o rio que ficava a quase 2 km longe da aldeia” escreveu a antropóloga e escritora Marina Kahn, em homenagem no site do Instituto Socioambiental (ISA). “Com filhos no colo, fora do colo, chamando-os para perto de si, repreendendo-os com o riso contido por pactuar a travessura”.
A Apib já soma 1.096 óbitos de indígenas por Covid-19, além de 55.063 casos que afetaram 163 povos indígenas brasileiros. Bem mais que as 705 mortes informadas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Os dados de vacinação do portal Emergência Indígena contabilizam, com base nos dados da Sesai atualizados até 12 de abril, 305.672 indígenas aldeados vacinados com a primeira dose da vacina e 231.609 indígenas aldeados já vacinados com as duas doses.
Segundo Erick Terena, a melhor fonte para o monitoramento da articulação são as organizações indígenas a nível regional. E é por meio dessas associações que a Apib recebe denúncias de indígenas que não estão conseguindo ter acesso à vacinação. “O foco nesse momento é denunciar onde essa vacinação não tem chegado, onde tem havido essa omissão”, diz.
Ele dá como exemplo uma aldeia da Terra Indígena Taunay/Ipegue do povo Terena, no Mato Grosso do Sul. Por estar fora do território homologado, foi barrada do programa de vacinação: “Um contingente de cem pessoas que moram lá não estavam tendo acesso à vacinação”. Obtida por meio do setor jurídico da Apib.
Outro caso emblemático foi o das barreiras colocadas para a vacinação da líder indígena Nalva Atikun. Após se casar, Nalva mudou-se da aldeia onde viveu por toda a vida para uma casa na zona urbana de Nioaque (MS) e por isso teve sua vacinação negada pela Sesai. Após a pressão da Apib, ela foi vacinada no fim de maio.
No início do ano, muitos municípios e estados brasileiros tentaram colocar barreiras para a vacinação indígena. O governo do Rio Grande do Norte — potiguar — alegou que não existem povos indígenas no estado. “Todos os estados brasileiros têm população indígena”, pontua Erick Terena. No estado vivem os povos Potiguara do Catu, Potiguara do Sagi/Trabanda, Potiguara-Mendonça, Tapuia Paiacu, Tapuia e Warao.
O negacionismo étnico do governo potiguar tem um equivalente no governo federal: a defesa do que Bolsonaro e seus defensores chamam de “tratamento precoce”, algo que inexiste. O Ministério da Saúde chegou a distribuir cloroquina em aldeias indígenas — e não para a malária, como mente o governo. O medicamento, além de ter ineficácia comprovada para a Covid-19, pode causar efeitos colaterais.
Em um dos vídeos da série De Olho no Genocídio, este observatório descreve essa e outras ações comandadas pelo ex-ministro Eduardo Pazuello:
Outro motivo que atrasa a vacinação de indígenas no Brasil é a disseminação de notícias falsas sobre as vacinas. No início do ano, diversas reportagens mostraram a pressão contrária à vacinação feita por pastores evangélicos. Erick Terena conta que as fake news entraram nos territórios indígenas com muita força: “O que para muitas pessoas era apenas questão de pesquisar a verdade na internet, para nós é praticamente impossível checar essas informações por conta da dificuldade de acesso à internet e telefone”.
Terena diz que o combate contra a desinformação promovida pelas igrejas não está sendo feito. Em primeiro lugar, o governo federal até hoje não investiu em campanhas massivas de vacinação. Como se não bastasse, a mídia regional, por meio das rádios, principal meio de comunicação nos territórios indígenas, também divulgam notícias negacionistas sobre a pandemia.
“Quem comanda as grandes mídias regionais são coronéis, pessoas conservadoras, de direita e negacionistas”, descreve o líder indígena. “Muitos dos nossos parentes criaram medo dessa vacina, um medo que o governo federal, gestores públicos e a desinformação trouxeram para muitas outras pessoas”.
Iamony não foi o único caso recente de líder indígena vítima do coronavírus. O primeiro jornalista indígena do Mato Grosso, Vítor Aurape Peruare, faleceu no primeiro dia do mês, aos 70 anos, por complicações provocadas pelo novo coronavírus. Vítor era um líder da Aldeia Pakuera, da Terra Indígena Bakairi, em Paranatinga (MT). Ele passou quatro dias internado em Canarana (MT). Apesar de já ter tomado as duas doses da Coronavac, não resistiu.
Vitor era mestre em Sustentabilidade pela Universidade de Brasília (UNB) e foi servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai). O jornalista trabalhou no Museu Marechal Rondon, na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e foi um importante articulador na criação da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (FepoiMT).
A filha de Vitor, Marileia Tauia Peruare, conta que o pai era doente crônico e tinha problema nos pulmões desde que teve uma tuberculose. Devido à comorbidade, quando se contaminou com a Covid-19 no fim de maio, acabou falecendo. “Foi tudo muito rápido, entre ele apresentar sintomas e fazer um exame de PCR, ser internado e transferido para a UTI levo menos de dez dias”.
Marileia diz que o pai cumpriu sua missão e espera que as novas gerações “saibam valorizar” sua luta pelos direitos indígenas. Ela vive em Canarana, onde o pai a visitava quando adoeceu.
Vamdermiro Ferreira de Souza Yamore, do povo Paresi, faleceu no domingo (06), mais uma vítima da pandemia. Ele completaria 72 anos no dia 25 de agosto. O indígena lutou pela demarcação da Terra Indígena Utiariti e foi um dos grandes representantes do povo Paresi entre a década de 70 e os anos 2000.
Vamdermiro criou o primeiro pedágio indígena na estrada MT-235. Entre 2006 e 2010, presidiu a associação Waynamare, responsável pelo desenvolvimento agrícola no território Paresi. Sua filha Nalva Maezo relatou que o indígena havia tomado as duas doses da Coronavac em janeiro e fevereiro. O filho Ronaldo Yamore disse, em nota publicada pelo Ministério Público Federal do Mato Grosso (MPF-MT), que o pai deixou o povo Pareci “em uma situação bastante confortável”.
| Julia Dolce é jornalista investigativa, com atuação na área socioambiental. |
Foto principal (Reprodução do documentário “Amazonie”): Iamony Mehinako, vítima da Covid-19 e do governo
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