Delfin Rio S/A, uma das empresas que administra o Condomínio Cachoeira do Estrondo, no oeste da Bahia, obteve autorização para devastar 24.732 hectares, área maior que Recife; terreno herdado por socialites cariocas tem histórico de grilagem e violência
Por Mariana Franco Ramos
Comunidades geraizeiras de Formosa do Rio Preto, no oeste da Bahia, cobram do governador Rui Costa (PT-BA) o motivo da concessão de uma licença irregular ao Condomínio Cachoeira do Estrondo para devastar 24.732 hectares de vegetação nativa. A área, administrada por três empresas com longo histórico de grilagem, desmatamento ilegal, violência e até trabalho escravo, é maior que Recife.
A Autorização de Supressão de Vegetação Nativa (ASV) foi concedida pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) à Delfin Rio S/A Crédito Imobiliário, que pertencia ao empresário Ronald Guimarães Levinsohn, morto em janeiro de 2020, e que se envolveu em vários escândalos. Segundo informações do serviço MapBiomas e relatos das populações locais, já foram destruídos 3 mil hectares.
Na última quarta-feira (01), o Greenpeace Brasil, a Associação de Advogadas/os de Trabalhadoras/es Rurais no Estado da Bahia (AATR) e outras 54 organizações enviaram uma carta a Costa, à secretária do Meio Ambiente, Márcia Cristina Telles de Araújo Lima, e à coordenadora executiva da Coordenação de Desenvolvimento Agrário, Camilla Batista, pedindo a revogação da medida.
De acordo com relatório da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM), a propriedade, na divisa com os estados do Maranhão, do Tocantins e do Piauí, se estende por 305 mil hectares, dos quais 150 mil estão ocupados com plantio de soja, milho e algodão.
Além da Delfin, são donos do empreendimento a Colina Paulista S.A e a Cia Melhoramentos do Oeste da Bahia (Cemob), também da família Levinsohn. Conhecido como Agronegócio Estrondo, o empreendimento conta ainda com participações de mais vinte pequenas empresas.
Há dois anos, reportagem do observatório mostrou que a luta por terras no oeste baiano envolve casos de pistolagem e violência contra os geraizeiros, descendentes de indígenas e quilombolas que habitam a região há séculos. Ali, a atuação de milícias rurais é constante, tal como aportes de milhões de reais e dólares para a compra e venda de latifúndios.
Os fazendeiros da Estrondo são conhecidos pelo uso da violência para intimidar opositores. Em agosto de 2019, seguranças a serviço do grupo atiraram em Jossinei Lopes Leite, diretor da Associação Comunitária da Cachoeira, pouco antes de roubarem seu gado.
Como se não bastasse, uma das controladoras da Estrondo foi a maior multada por crimes ambientais, nos últimos 25 anos, em Formosa do Rio Preto. A Cemob, dos Levinsohn, somava mais de R$ 35 milhões por desmatamento ilegal, conforme a base de dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), consolidada pelo De Olho.
Alheias aos casos de violência no campo, as herdeiras do espólio de Ronald Levinsohn, as irmãs Claudia e Priscilla, são personagens assíduas de encontros da aristocracia carioca. Elas costumam interagir com socialites como Narcisa Tamborindeguy, Andrea Rudge e Patrícia Leal, a ex-esposa do ex-bilionário Eike Batista. O observatório já falou sobre a dolce vita do clã, em 2019: “Da vida em êxtase das socialites Levinsohn à violência no campo no oeste da Bahia“.
A excêntrica vida das irmãs Levinsohn é apresentada com alguma frequência em colunas sociais. Lu Lacerda, por exemplo, descreveu em seu blog o aniversário de Priscilla, uma festa extravagante para 700 pessoas na mansão da família, na Gávea, em 2014, com o seguinte tema inspirado no maior prêmio do cinema mundial: “Oscar: homens de preto e mulheres deslumbrantes”.
Ronald Lewinsohn foi padrinho do casamento de Narcisa com Boninho. A socialite e o diretor da Globo foram casados de 1983 a 1986 e tiveram uma filha juntos: Marianna Sobrinho. Em abril deste ano, ela postou uma foto da cerimônia ao lado do empresário e fazendeiro, com os dizeres: “saudades eternas”.
Em 2009, as Fazendas Indiana e Austrália, que cultivam algodão e soja no Condomínio Estrondo, entraram simultaneamente na “lista suja” do trabalho escravo, cadastro do governo federal que lista infratores flagrados explorando esse tipo de crime.
A Austrália, da Cemob, que atuava também com mineração na região, explorava 39 trabalhadores para viabilizar a produção de soja. Entre os libertados, em outubro de 2005, havia três mulheres e um adolescente de 16 anos. Eles estavam em condições degradantes, alojados em barracos improvisados construídos com folhas de zinco e lona plástica.
Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), os diretores da Cemob na época eram Adilson Santana Borges, Claudia Vieira Levinsohn e Priscilla Vieira Levinsohn.
O Grupo Delfin foi o pivô de um grande escândalo financeiro nos anos 80, que a ditadura não conseguiu encobrir. A então maior empresa privada de crédito imobiliário (com mais de 3 milhões de depositantes) do país possuía elevados endividamentos junto ao Banco Nacional da Habitação (BNH). Em 1982, ela entregou dois terrenos, como forma de saldar os Cr$ 60 bilhões devidos.
No entanto, as propriedades valiam Cr$ 9 bilhões, cerca de um sexto da dívida. O acordo fraudulento envolveu os nomes dos ministros Mário Andreazza (Interior), Delfim Netto (Planejamento) e Ernane Galvêas (Fazenda). Acusados judicialmente, eles não chegaram a ser punidos. Milhares de contribuintes, porém, foram lesados com os chamados títulos de “poupalização”.
O patriarca esteve à frente, ainda, da UniverCidade. A instituição privada de ensino superior, com sede no Rio de Janeiro, foi usada para lavagem de dinheiro, encobrindo a origem ilícita da fortuna do empresário. Outro empreendimento da família é o Colinas Shopping, de São José dos Campos (SP), no Vale do Paraíba, administrado hoje por Priscilla.
Conforme o Greenpeace, a renovação da licença ao Cachoeira do Estrondo, concedida em 2019, não poderia ter acontecido, já que o “condomínio” não atende sequer às condicionantes do próprio Inema. O órgão exige que os empreendimentos comprovem “ter sob sua responsabilidade e domínio as áreas de preservação permanente e reserva legal”.
A posse de 43.339,33 hectares, declarados como Reserva Legal do Condomínio, é das comunidades tradicionais localizadas ao longo dos Rios Preto e Dos Santos, segundo decisão judicial de maio de 2017, confirmada pelo Tribunal de Justiça da Bahia (2018) e pelo Superior Tribunal de Justiça (2021).
O grupo responde ainda a processos por grilagem de terras. O estado da Bahia pede a anulação de diversas matrículas. Em 1999, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) notificou a fazenda como “mega-área de grilagem” de 444.306 hectares, registrados nos cartórios de Santa Rita de Cássia e Formosa do Rio Preto.
A área com a ASV faz parte da porção reivindicada pelo estado. Por isso, ela não poderia, de acordo com o Greenpeace, ser desmatada sem autorização do órgão estadual de terras (CDA), permissão que o Condomínio Estrondo não possui. O histórico de apropriação de territórios na região foi registrado na publicação “O Livro Branco da Grilagem de Terras no Brasil”, publicado em 1999, durante o governo FHC.
Apesar do histórico de irregularidades, o Condomínio Estrondo tem portas abertas para seus produtos em diversos países. O relatório “Cultivando Violência”, do Greenpeace, revelou que Cargill e Bunge, donas das marcas Elefante, Liza e Soya e fornecedoras de grandes redes, como Burger King e McDonald’s, possuem silos dentro da megafazenda e são responsáveis por colocar no mercado internacional toneladas de soja, produzidas à base de desmatamento e violência.
A reportagem tentou contato com a Delfin na tarde de sexta-feira (03), mas não conseguiu retorno. Ao jornal O Expresso, a empresa informou que possui licença legal emitida pelo Inema desde 2015, tendo recebido parecer favorável do Ministério Público da Bahia quanto à legalidade da emissão, em 2018, quando houve questionamentos semelhantes por parte de terceiros.
“Apesar de, por lei, poder suprimir até 80% da área em questão, a Delfin Rio S/A planeja suprimir 34,2% da área, portanto menos da metade da área permitida pelas autoridades competentes”, diz a nota. “É importante acrescentar que serão aplicadas todas as medidas mitigadoras e compensatórias previamente acordadas com os órgãos competentes”.
A Delfin destaca ainda que a propriedade “está legalmente constituída desde 1981, com registros no Cartório de Registro de Imóveis, Receita Federal, Incra e em cadastros ambientais”.
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas. |
Foto principal (Divulgação/Agronegócio Estrondo): empreendimento fica em Formosa do Rio Preto, no oeste da Bahia
LEIA MAIS:
Expoentes do agronegócio são a face menos falada do esquema de venda de sentenças na Bahia
Da vida em êxtase das socialites Levinsohn à violência no campo no oeste da Bahia