Expoentes do agronegócio são a face menos falada do esquema de venda de sentenças na Bahia

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Migrantes paranaenses da época da ditadura estão entre beneficiários da ambiciosa grilagem de 366 mil hectares, desbaratada em novembro com grande impacto midiático; um deles tem sociedade com fundo de investimentos dos EUA

Por Caio de Freitas Paes

Em novembro, um escândalo de venda de sentenças envolvendo o alto escalão da Justiça da Bahia veio à tona nas telas da Rede Globo. Pouco foi dito, porém, sobre quem são os interessados por trás da grilagem de uma área cinco vezes maior que o município de Salvador. Entre os envolvidos estão alguns dos mais antigos e poderosos fazendeiros no Matopiba, região que engloba áreas de Cerrado entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, considerada a última fronteira agrícola do Brasil.

O esquema se arrastava desde 2007, com a participação de desembargadores e juízes que atuavam em Formosa do Rio Preto, no extremo oeste da Bahia, um dos polos do agronegócio na região. O caso acabou tendo ênfase em figuras peculiares, quase folclóricas, como um falsário que se apresentava como cônsul da Guiné Bissau no país e um borracheiro, sócio em uma empresa avaliada em mais de R$ 700 milhões.

Os latifundiários, no entanto, não receberam atenção dos grandes veículos de imprensa. Luiz Ricardi, Walter Horita e Paulo Mizote são donos de grandes terras e juntos formam uma espécie de “velha guarda” do agronegócio no oeste baiano.

A tentativa de grilagem de mais de 366 mil hectares da fazenda São José, em Formosa do Rio Preto, é mais um episódio de uma antiga disputa por terras na região. Esses fazendeiros migraram para o nordeste ainda na década de 80 vindos, em especial, do Paraná. Era a segunda fase do Programa Nipo-Brasileiro para Desenvolvimento do Cerrado, o Prodecer II, um pacote de incentivos executado pela ditadura militar em parceria com o governo do Japão que levou à explosão da concentração fundiária na região, gerando alguns dos maiores latifúndios do país.

A luta por terras no oeste baiano envolve casos de pistolagem e violência contra os geraizeiros, descendentes de indígenas e quilombolas que habitam a região há séculos. Ali, a atuação de milícias rurais é constante, tal como aportes de milhões de reais e dólares para a compra e venda de latifúndios. Enquanto isso, o Cerrado da região agoniza. Neste ponto do Matopiba, o desmatamento ilegal e outros crimes ambientais são recorrentes.

As multas por desmatamento aplicadas somente em Formosa do Rio Preto somam pouco mais de R$ 71 milhões, segundo dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama). Entre as multadas, estão fazendas ligadas aos envolvidos na monumental grilagem.

Dados do governo federal consolidados pelo Greenpeace mostram que cerca de 450 mil hectares de mata nativa — quase o tamanho do Distrito Federal — foram destruídos ou adaptados à agricultura no município. Isto apenas entre 2001 e 2018.

INVESTIGADO É SÓCIO DE FUNDO INTERNACIONAL

Não é de hoje que controversas decisões nos tribunais movimentam milhões na Bahia. Nos últimos trinta anos a disputa por terras no oeste é marcada por manobras jurídicas. No caso da grilagem de 366 mil hectares, por exemplo, foi usado um documento de gaveta de 1981, de posse de um ilustre desconhecido. Por causa dessa jogada, o borracheiro José Valter Dias foi definido pelo ministro Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como “o maior latifundiário do oeste baiano”.

Ele é sócio da JJF Holding, de capital avaliado em pouco mais de R$ 700 milhões de acordo com a Receita Federal. Essa é a empresa que recebeu a posse da área grilada na fazenda São José. Dias é acusado de associar-se a Adaílton Maturino dos Santos no esquema. Por sua vez, um falsário que se apresentava como cônsul da Guiné Bissau no Brasil, elo entre o esquema e tradicionais fazendeiros da região.

As investigações revelam que o estelionatário aproximou-se do paranaense Luiz Ricardi, que o apresentou à região e aos interessados na área. Na decisão que desmantelou a grilagem, Og Fernandes ligou Ricardi a outros esquemas:

— Luiz Ricardi possui dezenas de atos notariais envolvendo imóveis rurais em litígio, especialmente na região do oeste baiano.

Junto com outros membros de sua família, o paranaense tem terras em Formosa do Rio Preto e outros municípios da área, como Barreiras. Ali, é sócio de bilionários fundos de investimento internacional — como no caso da Fazenda Parceiros, avaliada em mais de R$ 19 milhões.

Tentáculos internacionais. (Imagem: Receita Federal/De Olho nos Ruralistas)

A propriedade é controlada por uma teia de empresas ligadas ao fundo TIAA-Cref, e tem Luiz Ricardi como um de seus sócios. O grupo é responsável por investir bilhões dos fundos de aposentadoria de professores dos Estados Unidos e da pensão nacional da Coreia do Sul.

Junto a Dirceu Di Domenico, dono de terras próximas da Fazenda São José, e Walter Horita, um dos nomes-chave do agronegócio no país, Ricardi é acusado de financiar a grilagem gigante. Com Di Domenico, o paranaense já teria negociado parte das terras com outros agricultores da região, como Juca Gorgen e Paulo Mizote, ambos contemporâneos da época do Prodecer.

O objetivo do grupo era tomar posse da fazenda São José para extorquir trezentos agricultores e arrendatários, além de negociar outros acordos, como os de Gorgen e Mizote. Em geral, os valores eram negociados em sacas de soja, a serem pagas por hectare das propriedades sob ameaça. O total angariado pelos grileiros gira em torno de R$ 1 bilhão.

Ao fim, Domenico e Ricardi ganhariam parte das escrituras da fazenda, tornada um latifúndio depois de uma decisão judicial em 22 de julho de 2015. Foi quando a área passou de 43 mil hectares para assombrosos 366 mil hectares. A desembargadora da Justiça Vilma Costa Veiga, responsável pela decisão, aposentou-se no dia seguinte à manobra.

Paulo Mizote está ainda envolvido na destruição do Cerrado. Sua família controla a Mizote Empreendimentos Agrícolas, especializada em plantio de soja, milho e algodão. Somente em Formosa do Rio Preto o grupo é dono de pouco mais de 9 mil hectares, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

No mesmo município, a família já foi multada em quase R$ 5,5 milhões pelo Ibama. Especificamente sobre Mizote recai uma multa de R$ 1,6 milhão por crimes ambientais contra a flora — desmatamentos ilegais são enquadrados nessa categoria — identificados em 2012.

HORITA MOVIMENTOU MAIS DE R$ 22 BILHÕES

É impossível falar sobre grilagem no oeste da Bahia sem mencionar o condomínio agrícola Estrondo, reconhecido pelo Incra como um dos maiores latifúndios do país. Ainda nos anos 90, o órgão federal estimava em 444 mil hectares o total da área sob controle da Estrondo. Um dos seus principais arrendatários, Walter Horita, foi um dos quarenta alvos de busca e apreensão a pedido do STJ.

Cadeia da grilagem desemboca na produção de soja. (Foto: Reprodução)

A Horita Empreendimentos Agrícolas é uma das maiores exportadoras individuais de soja em Formosa do Rio Preto. Em 2017, a empresa exportou mais de 58 mil toneladas de soja para países como Coreia do Sul, Espanha e Holanda.

Walter é mais um que chegou ao oeste baiano na década de 80. Junto a outros “pioneiros” (o termo costuma esconder a existência anterior de povos tradicionais na região) envolvidos no esquema, é dos nomes fortes por trás da Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia, a Aiba — cuja atuação foi comparada, por fontes ouvidas pela reportagem, à da União Democrática Ruralista (UDR), famosa nos anos 80.

Também paranaense, Horita é acusado de financiar a grilagem de outras áreas na região, como em Barreiras (BA). Suas transações financeiras nos últimos seis anos fortalecem as suspeitas: o Ministério Público quebrou seu sigilo bancário e identificou uma movimentação de mais de R$ 22 bilhões, entre os quais R$ 7,5 bilhões sem origem ou destino especificados.

Walter Horita é hoje o nome-forte do condomínio agrícola Estrondo. Nos últimos dez anos, ele tomou a dianteira dos negócios do grupo controlado pela família do magnata carioca Ronald Levinsohn. Conheça aqui um pouco da história do fazendeiro: “Da vida em êxtase das socialites Levinsohn à violência no campo no oeste da Bahia“.

ESTRONDO LIDERA MULTAS POR DESMATAMENTO 

Os fazendeiros da Estrondo são conhecidos pelo uso da violência para intimidar opositores — como os geraizeiros, que reclamam a posse de mais de 40 mil hectares do condomínio na Justiça. Em agosto, seguranças a serviço do grupo atiraram em Jossinei Lopes Leite, diretor da Associação Comunitária da Cachoeira, pouco antes de roubarem seu gado.

Como se não bastasse, uma das controladoras da Estrondo é a maior multada por crimes ambientais em Formosa do Rio Preto. A Companhia Melhoramentos do Oeste da Bahia, dos Levinsohn, já soma mais de R$ 35 milhões por desmatamento ilegal, conforme a base de dados do Ibama, consolidada pelo observatório.

Entre 2004 e 2006, a empresa teria sido responsável por desmatar 77 mil hectares de mata nativa sem autorização. Anos depois, o Ministério Público Federal alegou que a área de Cerrado devastada era mais que o dobro disso, 167 mil hectares. Mais que a área do município de São Paulo.

Esse desmatamento teve a bênção de um antigo gerente-executivo do Ibama na região, José Marcos dos Santos Cardoso. Em 2013, o Tribunal Regional Federal da 1ª região decidiu punir o antigo dirigente do Ibama por falsificar documentos públicos — o que abriu caminho para o desmatamento ilegal da Melhoramentos.

Segundo levantamento feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em um só dia Cardoso autorizou a derrubada de 49 mil hectares pela empresa do grupo Estrondo.

Fazenda São José está inserida em circuito do agronegócio. (Imagem: Reprodução)

Desde novembro, organizações internacionais divulgaram relatórios sobre a relação entre disputas fundiárias, multinacionais do agronegócio e a devastação do Cerrado neste ponto do oeste baiano.

A Chain Reaction Research, que monitora o mercado internacional de commodities, analisou o caso da Fazenda São José e ligou parte dos desmatamentos recentes ao esquema de grilagem. Sobre o desmatamento na Coaceral, a organização informou que ele está ligado à insegurança jurídica da fazenda “por estar vinculado a decisões dos tribunais, que ficaram alternando a posse da fazenda nos últimos doze anos”. “Especialmente em 2015 e 2019”, explica Joana Faggin, uma das responsáveis pelo relatório.

Ela diz ainda que os produtores da região notam a insegurança jurídica, acham que não terão seus títulos de terras reconhecidos e pensam: “Vou abrir a área o máximo que eu puder, porque não sei se estarei ali na próxima colheita”. Abrir = desmatar.

BUNGE TEM FAZENDA DENTRO DA ESTRONDO

Gigantes do setor possuem armazéns ou fazendas na região das grilagens. São empresas como a Amaggi, do ex-ministro da Agricultura e ex-governador mato-grossense Blairo Maggi. Ou as estrangeiras Bunge e Cargill, donas das marcas Elefante, Liza e Soya e fornecedoras de grandes redes como Burger King e McDonald’s.

Citadas em reportagem da Repórter Brasil, as multinacionais negaram qualquer vínculo com soja cultivada em áreas desmatadas ilegalmente no município, alegando que não têm fazendas dentro do condomínio Estrondo. No caso da Bunge, os dados do Incra apontam o contrário.

Entre armazéns e propriedades, a empresa é dona de quase 2 mil hectares em Formosa do Rio Preto. Uma delas foi  registrada com o nome “Fazenda Estrondo Parte B Lote 22”. A Cargill possui pouco mais de 4 mil hectares na zona rural do município.

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