Pedro Lupion e Tereza Cristina estão entre dirigentes da Frente Parlamentar da Agropecuária que tiveram campanhas financiadas por fazendeiros com incidência em terras indígenas; 2ª parte do dossiê “Os Invasores” mapeou também as propriedades dos próprios políticos
Por Bruno Stankevicius Bassi
A partir do cruzamento entre as bases de dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e as prestações de contas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), De Olho nos Ruralistas identificou 57 doações de fazendeiros com sobreposição em terras indígenas a políticos eleitos em 2022. Os dados integram a segunda parte do dossiê “Os Invasores“, lançada na quarta-feira (14) em evento no Cine Petra Belas Artes, em São Paulo.
Ao todo, o financiamento de indivíduos com propriedades sobrepostas a territórios ancestrais abasteceu 29 campanhas à Presidência da República, governos estaduais, Congresso e assembleias legislativas, totalizando R$ 5.313.843,44. Entre elas, dezoito foram direcionadas a integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), totalizando R$ 3.644.831,95 destinados a deputados e senadores ruralistas. Esses proprietários somam 36.111,45 hectares em áreas sobrepostas a onze TIs — com maior incidência no Mato Grosso do Sul, origem dos negócios de seis financiadores da FPA.
Boa parte do montante — R$ 2,98 milhões — corresponde à doação de Orlando Bagattoli ao irmão, o senador rondoniense Jaime Bagattoli, do PL. Juntos, os dois são sócios da Transportadora Giomila, dona da Fazenda São José que, segundo o Incra, se sobrepõe em 2.600 metros quadrados à TI Rio Omerê, em Corumbiará (RO). O caso é um dos destaques do dossiê e foi divulgado ontem em reportagem especial do UOL, com repercussão na imprensa de Rondônia.
Bagattoli foi um dos 42 políticos identificados na pesquisa com terras sobrepostas a áreas indígenas: “Políticos e seus familiares possuem 96 mil hectares sobrepostos a terras indígenas“.
Entre os membros da bancada ruralista que receberam dinheiro de fazendeiros em conflitos com TIs, treze integram a diretoria da FPA. Juntos, eles receberam R$ 328.062,00. Os beneficiários incluem o presidente da frente, Pedro Lupion (PP-PR), os vices Arnaldo Jardim (Cidadania-SP) e Evair Vieira de Melo (PP-ES), e os coordenadores políticos na Câmara, Fábio Garcia (União-MT), e no Senado, Tereza Cristina (PP-MS).
Confira abaixo no infográfico:
O deputado Pedro Lupion foi eleito presidente da FPA em 2022, sucedendo Sérgio Souza (MDB-PR). Segundo sua prestação de contas à Justiça Eleitoral, ele recebeu R$ 20 mil em doações do algodoeiro Cirineu de Aguiar. Cirineu é irmão de Paulo Sérgio de Aguiar, que presidiu, de 2019 a 2022, a Associação Mato-grossense dos Produtores de Algodão (Ampa), uma das organizações que contribui mensalmente com o envio de verbas para o Instituto Pensar Agro, o sustentáculo da frente.
Paulo Sérgio foi substituído em 2023 na Ampa por Eraí Maggi Scheffer. O dono do grupo Bom Futuro foi um dos destaques da primeira parte do relatório “Os Invasores“, graças à invasão de 20,15 hectares da TI Enawenê Nawê por seu cunhado e sócio José Maria Bortoli.
Os irmãos Aguiar são sócios na Agropecuária Calupa. A empresa é a dona da Fazenda São Tomé, que tem a totalidade de seus 2.500,83 hectares sobrepostos à TI Apiaká do Pontal e Isolados, no município de Apiacás (MT). Paulo Sérgio possui outra fazenda incidente no mesmo território: a Serro Azul, com 3 mil hectares titulados dentro da área indígena, que aguarda desde 2011 pela conclusão do processo demarcatório.
Cirineu doou outros R$ 20 mil para Fábio Garcia (União-MT), coordenador político da FPA na Câmara, e R$ 19 mil para o vice-presidente da bancada ruralista, o deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP). Encabeçada por Lupion e Jardim, a nova diretoria da FPA assumiu o mandato sob a promessa de aprovar o Projeto de Lei nº 490/2007, que institui a tese do Marco Temporal para demarcação de terras indígenas.
Outro fazendeiro com sobreposição em TI que doou para membros da alta cúpula da frente ruralista foi Valdir Roque Jacobowski, dono da Agropecuária São Gabriel, que compõe o grupo Jacó Agro. Seu irmão Adelar Mateus Jacobowski é titular da Fazenda Frei Gabriel, que se sobrepõe aos limites da TI Menkü, em Mato Grosso. Ela avança em 2,58 hectares do território do povo Myky, cuja ampliação foi determinada por liminar do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), em maio de 2022. A decisão dele foi descumprida pelo ex-ministro da Justiça Anderson Torres.
Segundo dados do TSE, Valdir e Adelar doaram R$ 70,5 mil para quatro diretores da frente: o vice-presidente na Câmara, Evair Vieira de Melo (PP-ES), o vice na região Sudeste, Domingos Sávio (PL-MG), o vice na região Sul, Luiz Nishimori (PSD-PR), e o coordenador político Covatti Filho (PP-RS). Os irmãos Jacobowski também doaram R$ 22,5 mil para a deputada Amália Barros (PL-MT).
Presidente da FPA entre 2017 e 2018, a senadora Tereza Cristina (PL-MS) ocupa a coordenação política do bloco ruralista no Senado. Ela foi ministra da Agricultura durante o governo Bolsonaro. Desde 2014, quando foi eleita pela primeira vez para a Câmara, a política sul-mato-grossense recebe doações de fazendeiros com sobreposições em território Guarani Kaiowá.
No primeiro pleito, ela ganhou R$ 15 mil de Renato Eugênio de Rezende Barbosa e R$ 5 mil de John Francis Walton. Os dois ampliaram as doações para Tereza Cristina nos anos seguintes. Em 2018, Walton contribuiu com o mesmo valor de 2014; em 2022, ele e Renato doaram R$ 20 mil e R$ 30 mil, respectivamente.
Renato é sócio da Campanário S/A, grupo que controla a Fazenda Campanário, com 238,53 hectares incidentes na TI Dourados-Amambaipeguá I, que aguarda desde 2016 pela conclusão do processo demarcatório. Ele e os irmãos Roberto e José Eugênio eram donos da Nova América, cujas usinas de cana foram incorporadas em 2009 pela gigante sucroenergética Cosan. A família Rezende Barbosa ficou com uma participação de 11,9% no capital do grupo, atrás apenas de Rubens Ometto Silveira Mello, o sócio-controlador.
Junto à petroleira anglo-holandesa Shell, a Cosan controla a maior produtora de açúcar e etanol do mundo, a Raízen. Com a internacionalização da empresa, a família vendeu gradualmente suas ações. Roberto de Rezende Barbosa foi o último dos grandes acionistas individuais que não pertenciam à família Ometto, deixando o conselho de sócios em 2019.
A relação não se restringe à conexão corporativa. A Campanário é uma das principais fornecedoras da Raízen no Mato Grosso do Sul. Em agosto de 2022, a empresa foi homenageada pela multinacional com o título de “Produtora de Excelência” e reconhecida como “modelo de gestão de sustentabilidade” pelo programa Elo Raízen. Presidente do grupo Cosan, Rubens Ometto foi o maior financiador de campanha de Tereza Cristina ao Senado, com um repasse de R$ 100 mil — o dobro do valor doado em 2018.
Walton é dono da Fazenda Conchita-Cuê, com 1.258,61 hectares sobrepostos à TI Dourados-Amambaipeguá I, onde o empresário já acusou indígenas do povo Guarani Kaiowá de roubo de gado. Seu filho, Marcelo Walton, que também figura como proprietário do imóvel, é casado com Mariana Cunha Bueno, filha do ex-deputado Cunha Bueno (PP-SP), um dos líderes da bancada paulista na Câmara durante sete mandatos.
A ex-ministra de Bolsonaro já recebeu repasses de campanha de Wilson Brochmann, dono da Agropecuária Maragogipe, com 1.470,49 hectares incidentes na TI Iguatemipegua I — um dos destaques entre os pecuaristas listados na primeira parte do relatório “Os Invasores“. Ele doou R$ 10 mil para Tereza Cristina em 2018.
Outro nome que protagoniza conflitos contra os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul é Jacintho Honório da Silva Filho, dono da Fazenda Brasília do Sul, cujos 9.693,54 hectares estão inteiramente sobrepostos à TI Taquara, em Juti (MS). Em 2022, De Olho nos Ruralistas publicou, em conjunto com a ONG britânica Earthsight, um relatório apontando as cadeias corporativas e políticas de Jacintho, o mandante do assassinato do cacique Marcos Verón, falecido em 2019.
Durante sua passagem pelo Ministério da Agricultura, Tereza Cristina promoveu um movimento sem precedentes de abertura das terras indígenas ao agronegócio. Ela e o governo Bolsonaro articulam a criação do Projeto de Lei nº 191/2020, que regulamenta a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas, abrindo as portas para a mineração e o plantio de sementes transgênicas em TIs.
Para promover a medida, Tereza Cristina levou uma comitiva de ministros à Abertura da Colheita de Soja dos povos Paresi, Nambikwara e Manoki, além de impulsionar líderes indígenas pró-agronegócio para deslegitimar líderes contrários à abertura dos territórios. Considerado inconstitucional pelo Ministério Público Federal (MPF), o projeto foi retirado de tramitação em fevereiro pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva.
O senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) aparece logo na sequência de Bagattoli como principal beneficiário de doações de fazendeiros com sobreposição em TIs. Inimigo histórico dos povos indígenas e autor de um famoso discurso chamando quilombolas, “índios”, gays e lésbicas de “tudo que não presta”, ele foi presidente da FPA entre 2013 e 2014 e vice-presidente de 2019 a 2020. Hoje atua como vogal — cargo equivalente ao de conselheiro.
Em 2018, recebeu uma transferência de R$ 100 mil de Wanda Inês Riedi, diretora da empresa I. Riedi, um dos cem maiores conglomerados do agronegócio brasileiro em 2020, segundo a revista Forbes. Seu marido, Ivo Ilário Riedi, é filho de um dos fundadores do grupo paranaense e primo em primeiro grau de Dianor Jacó Riedi. Registrados em nome da filha Christiane Riedi Daniel, os imóveis de Dianor ocupam 6.312,86 hectares na área pretendida para demarcação das TIs Porquinhos dos Canela-Apãnjekra e Kanela Memortumré, no Maranhão.
Na outra ponta do país, a I. Riedi foi listada em 2018 pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como “ocupante não indígena” no estudo de identificação da TI Tekohá Guasu Guavirá, em Terra Roxa (PR). Em 2020, durante a gestão do bolsonarista Marcelo Xavier, a Funai atendeu às pressões de líderes ruralistas e suspendeu o processo de demarcação, retomado somente em abril deste ano, já sob a gestão da ex-deputada Joênia Wapichana.
Em 2012, Wanda protocolou um pedido de reintegração de posse contra as famílias Avá-Guarani da Aldeia Pohã Renda, que aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo relatório conjunto da Comissão Guarani Yvyrupa e do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), os moradores da aldeia sofrem com constantes ameaças de pistoleiros e seguranças das fazendas.
Apesar do conflito contra os indígenas no Paraná, Wanda Riedi foi homenageada em 2022 pelo Banco do Brasil no prêmio Mulheres do Agro.
O dinheiro oriundo da invasão de terras indígenas não é uma exclusividade do financiamento de campanha dos deputados e senadores. Por trás da Frente Parlamentar da Agropecuária, há uma cadeia de financiamento multimilionária composta por 48 associações do agronegócio, que recebem dinheiro de 1.078 empresas brasileiras e multinacionais — e repassam parte dessa verba ao Instituto Pensar Agro (IPA). Esse mecanismo foi detalhado no dossiê “Os Financiadores da Boiada”, publicado em julho de 2022 pelo De Olho nos Ruralistas.
JBS, Cargill, Syngenta, Bunge, Amaggi e Bom Futuro são afiliadas a múltiplas associações, onde ocupam cargos executivos e de liderança. Essas financiadoras do IPA são também algumas das empresas identificadas como responsáveis — direta ou indiretamente — pela invasão dos territórios originários no Brasil.
A trading estadunidense Bunge vendeu em 2022 um imóvel incidente sobre a TI Morro Alto, no porto de São Francisco do Sul, em Santa Catarina; a produtora de agrotóxicos e sementes Syngenta possuía uma fazenda de soja sobreposta à TI Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, no Maranhão; um dos sócios do grupo Amaggi é proprietário de fazendas vizinhas à TI Tirecatinga. O observatório analisou ainda as sobreposições diretas de fornecedores do frigorífico brasileiro JBS e da comercializadora de grãos Cargill, além de casos envolvendo os sócios dos bancos Itaú e Bradesco, empresas do setor madeireiro e exportadores de café e frutas.
Confira abaixo, no vídeo de lançamento do projeto, como a FPA se beneficia dessas doações para “passar a boiada” no Congresso:
Os casos descritos na pesquisa serão explorados em uma série de vídeos e reportagens deste observatório. Com detalhes — muitos deles complementares ao dossiê — sobre as principais teias empresariais e políticas que conectam os “engravatados”, em cada setor econômico, legal ou ilegal.
Foto principal (Agência FPA): cúpula da bancada ruralista articula pauta com o presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL)
| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. |
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