Durante o lançamento da segunda parte do dossiê “Os Invasores”, líder de terra indígena narrou ação da PM de São Paulo contra indígenas que protestavam contra projeto em debate no STF e no Congresso; ele conta em vídeo que religioso foi atingido com tiro de borracha na testa
Por Luís Indriunas
— Eu fui tentar chamar o pessoal de volta e quando olhei para trás eles já estavam atirando na gente, atirando, mirando no rosto. Acertaram nosso xeramoi, nosso líder espiritual, xeramoi Natalício, eles atiraram na testa dele, quase no olho. Eles começaram a atirar bomba, a atirar, a jogar do helicóptero, até que nós saímos da rodovia, conseguimos sair da rodovia.
Durante o lançamento do relatório “Os Invasores: parlamentares e seus financiadores possuem fazendas sobrepostas a terras indígenas”, no dia 14, no Cine Petra Belas Artes, o líder indígena Karai Djekupe, ou Thiago Guarani, detalhou a ação violenta da Polícia Militar de São Paulo durante um ato dos Guarani Mbya, da Terra Indígena (TI) Jaraguá. O protesto contra o Marco Temporal ocorreu no dia 30 de maio, na Rodovia dos Bandeirantes.
“Depois que nós saímos, a Polícia veio atrás de nós, fora da rodovia”, contou Karai. “Eles não estavam ali para nos dispersar da rodovia. Eles estavam ali para nos violentar. Após a gente sair, eles nos seguiram, continuaram atirando em nós. Até na porta da aldeia eles continuaram atirando em nós. Deram rasante de helicóptero dentro da aldeia, derrubando galho de árvores na cabeça das pessoas, na minha, inclusive”.
Por volta das 5h30, um grupo de cerca de cem indígenas fechou o km 29 da rodovia, abrindo faixas contra o Projeto de Lei 490, que tinha sido aprovado durante aquela noite pela Câmara. Agora no Senado, o projeto prevê que as demarcações de terras indígenas aconteçam apenas em locais onde as comunidades estavam no dia 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Desse modo, a lei deixará de fora centenas de comunidades que foram expulsas dos seus territórios ao longo da história e, principalmente, durante a ditadura iniciada em 1964. Para saber mais sobre a repressão aos indígenas nos anos de chumbo, assista ao episódio “Um projeto de extermínio”, da série De Olho na História.
O protesto foi marcado por um ritual religioso, no qual os indígenas rezavam para pedir que os Juruá, não-indígenas em Guarani, evitassem a aprovação do PL. Karai conta que, durante toda a manhã, eles negociaram com os policiais a forma como iria acontecer a manifestação. “Fechamos a rodovia por segurança, para não sermos atropelados”, explicou. “Nós deixamos as motos passarem, as ambulâncias passarem, e explicamos que estamos sob ameaça e que nós fomos rezar, negociamos. As mulheres estavam à frente e negociaram”.
Seu relato aponta várias idas e vindas por parte dos policiais, que, primeiro, pediram que fosse fechada apenas uma faixa, o que foi aceito pelos indígenas. Depois, que eles deviam ficar só no acostamento. Por fim, um policial falou que uma “ordem de cima” dizia que eles tinham que sair. “Vocês sabem, né, gente? Nós somos governados pelo Palácio dos Bandeirantes, né? Palácio dos Bandeirantes”, ironizou o líder indígena, em referência ao bandeirantismo, enquanto contava a história para uma plateia formada por muitos indígenas, pesquisadores e jornalistas.
O que se viu em seguida, relatou Thiago Guarani,, foi uma ação truculenta da Tropa de Choque da PM, atirando com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Pelo menos cinco indígenas ficaram feridos. Quando a ação começou eles correram em direção à terra indígena e os policiais continuaram atirando até os limites da TI.
“E essa violência continuou durante a noite, continuou no dia seguinte”, descreveu. “A gente estava exercendo um ato constitucional, de se manifestar. Estávamos decidindo não ficar parado para os outros seguissem seu fluxo. Imagina se o Marco Temporal passa”.
Depois do episódio, os indígenas tentaram fazer outra manifestação, no dia 04, com autorização dos órgãos estaduais, mas a desembargadora Maria Lúcia Pizzotti proibiu os indígenas de protestarem na rodovia.
Veja o depoimento do líder indígena no vídeo:
Demarcada em 2015 pela então presidente Dilma Rousseff, a Terra Indígena Jaraguá está sob ameaça de retrocesso desde 2017, quando o então governador Geraldo Alckmin, hoje vice-presidente da República, entrou com um mandado de segurança para desmarcar a TI, medida apoiada pelo presidente golpista Michel Temer. O Ministério Público Federal conseguiu, liminarmente, brecar o processo, que espera uma decisão final.
Mesmo diante do futuro incerto, os Guarani Mbya têm atuado para reverter o quadro de degradação de seu território. Ao longo dos anos, os indígenas conseguiram que nove espécies de abelhas nativas sem ferrão voltassem a voar pela área do Pico do Jaraguá, um cartão-postal da Grande São Paulo.
“Nós recuperamos nascentes que estavam secando por conta do plantio de eucalipto dentro do nosso território”, contou Karai. “Nós protegemos a jaguatirica, nós protegemos o cachorro-do-mato, o guati, o macaco, o porco-espinho, as aves. Eles estão lá vivos nessa grande metrópole, no Pico do Jaraguá. Nosso território garante chuva, nosso território equilibra o ar, porque tem árvores vivas, árvores que conversam, árvores que sonham”.
A TI se encontra ameaçada pela especulação imobiliária que avança sobre o território: “Jorge Paulo Lemann e Itaú estão entre acionistas de construtora que assusta povo Guarani no Jaraguá, em SP.” E até pela promoção de festas raves nos limites da área. Nesse contexto, as discussões do Plano Diretor do município também são uma ameaça, já que elas não têm levado em conta nem a TI Jaraguá nem a TI Tenondé Porã, que ocupa uma área dos municípios de São Paulo, São Bernardo do Campo, São Vicente e Mongaguá.
Na avaliação de Karaí, a mudança do governo federal não diminuiu a violência e as ameaças aos povos indígenas. O líder indígena lembrou que eles apoiaram a volta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo com a aliança do candidato petista com Geraldo Alckmin, e destacou a ação articulada do Congresso, com sua maioria conservadora. “Muita gente acha que nossa vida vai tranquilizar”, disse. “Mas a gente tem um Congresso Nacional muito mais potencializado em atacar os direitos dos povos originários, os direitos ambientais”.
A aprovação do Projeto de Lei do Marco Temporal foi o principal assunto no lançamento da segunda parte do dossiê Os Invasores, que aponta os políticos com sobreposições em terras indígenas e aqueles que receberam financiamento eleitoral de empresários com fazendas incidentes em TIs.
Quarenta e dois políticos e seus familiares de primeiro grau são titulares de imóveis rurais com sobreposições em TIs, totalizando 96 mil hectares — o equivalente à soma das áreas urbanas do Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Dezoito integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) receberam R$ 3,6 milhões em doações de campanha de invasores. Entre eles estão o presidente da frente, Pedro Lupion (PP-PR), os vice-presidentes Arnaldo Jardim (Cidadania-SP) e Evair Vieira de Melo (PP-ES), a coordenadora política Tereza Cristina (PL-MS), ex-ministra da Agricultura, e outros oito diretores.
Outro destaque do relatório são os invasores que investiram em peso na candidatura derrotada de Jair Bolsonaro (PL) à reeleição. Juntos, 41 fazendeiros com sobreposições doaram R$ 1,2 milhão para sua campanha. Eles controlam uma área de 107.847,99 hectares, incidente em 23 áreas demarcadas pela Funai. Na primeira parte do dossiê, foram identificadas 1.692 empresas nacionais e estrangeiras com sobreposições em 213 TIs.
Para ler a íntegra da primeira parte, clique aqui. Para a segunda, aqui. Assista também ao vídeo que mostra quem são os políticos com sobreposições.
Os casos descritos na pesquisa estão sendo explorados também em uma série de vídeos e reportagens deste observatório. Com detalhes — muitos deles complementares ao dossiê — sobre as principais teias empresariais e políticas que conectam os “engravatados”, em cada setor econômico, legal ou ilegal.
| Luís Indriunas é editor e roteirista do De Olho nos Ruralistas. |
Foto principal (Fernando Martinho / Sumaúma): indígenas Guarani Mbya correm para fugir dos tiros e bombas da Tropa de Choque da PM de São Paulo durante protesto na Rodovia dos Bandeirantes
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