Prefeito tem treze lotes em Engenheiro Marsilac, na APA Capivari-Monos, mas apenas quatro estão em nome dele; De Olho nos Ruralistas inicia série sobre o poder em São Paulo, “Endereços”, contando que ele não tem o hábito de pagar o Imposto Territorial Rural, o ITR
Por Alceu Luís Castilho, Manoel Marques (fotos) e Bruno Stankevicius Bassi
A placa na rua sem nome informa: Sítio Vista Verde. Ele fica em plena região de Mata Atlântica, na Área de Proteção Ambiental (APA) do Capivari-Monos, a 23,5 quilômetros das praias de Mongaguá e a 41 quilômetros da Praça da Sé. A apenas 440 metros da ferrovia que leva cargas da mineração e do agronegócio para Santos, a 400 metros de uma unidade da Companhia de Abastecimento do Estado de São Paulo (Sabesp), ao lado de uma represa. Bem perto da Estrada da Ponte Seca, a 1,5 quilômetro da vila de Marsilac.
O caseiro não quis atender a reportagem. Só o patrão falaria. De Olho nos Ruralistas esteve no local em um sábado, dia 27 de abril, quando começavam no Rio Grande do Sul as chuvas que resultaram em catástrofe. A única pista dada pelo prefeito eram os quatro lotes em seu nome, declarados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no Parque Internacional “em Parelheiros”. O Parque Internacional fica em Marsilac e pouca gente o conhece pelo nome. Quando se falava na “casa do prefeito”, as pessoas na Estrada da Ponte Seca tentavam explicar onde era.
O vídeo acima inaugura, em nosso canal no YouTube, a série de episódios Endereços. Ela será acompanhada de dezenas de reportagens que falarão sobre a relação dos políticos paulistanos com o território. Suas conexões empresariais, suas propriedades, os impactos das políticas públicas no ambiente. O observatório já tinha contado, em 2021, quais eram as fazendas do prefeito em Minas Gerais. Duas delas obtidas por usucapião — um instrumento utilizado para quem usufrui da propriedade.
Algumas informações só puderam ser obtidas pela reportagem no 11º Cartório de Registro de Imóveis após a constatação do nome e da localização do sítio. Motivo: os dados informados por Nunes à Justiça Eleitoral estão incompletos. Em 2020, quando ele disputou a vice-prefeitura na chapa do prefeito Bruno Covas, declarava cada imóvel rural apenas como “terra nua”. No ano seguinte, ao assumir o cargo, declarou pela primeira vez os treze lotes, por R$ 456 mil. Cerca de 1/10 do total de bens informados pelo prefeito, R$ 4,8 milhões.
A declaração à Secretaria de Registro Parlamentar da Câmara Municipal pode ser encontrada no Diário Oficial do Município. Mostra que os quatro lotes em nome dele somam R$ 110 mil. O lote 16, com o sobrado, foi declarado por R$ 228 mil. Os demais oito lotes — que incluem a residência do caseiro, tanque para peixes, espaço para um cavalo não informado à Justiça Eleitoral — somam R$ 118 mil. As informações no cartório e em outras fontes, como veremos, mostra uma teia fundiária bem mais complexa.
A Área de Proteção Ambiental (APA) do Capivari-Monos foi criada em 2001, na gestão de Marta Suplicy. Considerada o berço das águas da capital paulista, ela possui 25 mil hectares e foi a primeira unidade de conservação do município. Isso significa 16,4% da área total de São Paulo, nono maior município do estado, com 152 mil hectares.
Essa tipologia permite o uso sustentável do solo e estabelece uma série de restrições para a utilização de propriedades privadas, visando principalmente a proteção de nascentes e rios. No caso da Capivari-Monos, são três bacias hidrográficas, que comportam 22 sub-bacias e 36 cachoeiras — todas situadas dentro de imóveis privados, em sua maioria sítios.
Segundo o Plano de Manejo aprovado em 2011, a principal ameaça à manutenção da APA vem dos loteamentos irregulares e clandestinos, que a prefeitura diz combater. Entre as quinze áreas listadas no estudo figura o Parque Internacional, onde o prefeito Ricardo Nunes mantém o Sítio Vista Verde.
A classificação do Parque Internacional como loteamento irregular não vem apenas desse documento. A plataforma GeoSampa, que consolida as bases de dados fundiários do município, mostra que os imóveis de Nunes estão inteiramente dentro do polígono referente à área irregular. A fonte dos dados é a própria Secretaria Municipal de Habitação.
Ao longo de dois meses, o núcleo de pesquisa do observatório De Olho nos Ruralistas vasculhou as bases de dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Receita Federal para identificar o histórico fundiário de Ricardo Nunes. As informações relativas ao Sítio Vista Verde foram cruzadas com as matrículas registradas no 11º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo, correspondentes a cada um dos imóveis.
A análise dos dados fundiários aponta uma série de irregularidades e inconsistências cadastrais. Ao todo, Ricardo Nunes possui treze lotes no distrito de Engenheiro Marsilac, divididos em cinco imóveis rurais — divididos em dez matrículas.
Eles estão localizados na quadra H do Parque Internacional, em uma área contígua de 4,2 hectares — duas vezes o tamanho do Parque Augusta, inaugurado em 2021, no centro de São Paulo.
Dos treze lotes, apenas quatro apontam, nas matrículas obtidas em cartório, a transferência da titularidade para Nunes. O atual prefeito de São Paulo comprou os terrenos em 07 de julho de 2006, quando já militava no MDB.
Os lotes números 4, 5, 17 e 18 aparecem nas declarações de bens do político desde 2012. Entre a primeira declaração de bens, para vereador, e a última, para vice-prefeito (disponibilizada de forma integral apenas em 2021), o valor das terras subiu de R$ 40 mil para R$ 110 mil.
Perante o Incra e a Receita Federal, porém, essas terras continuam m nome do antigo dono, Paulo Minoru Ikeda. Uma das vizinhas do sítio, Sueli Valentim, confirma que as terras eram dele. E conta que foram as últimas a serem adquiridas por Nunes. A atualização dos dados é de responsabilidade do cartório e está atrasada há catorze anos, desde que a compra foi registrada nas quatro matrículas, em 2010.
Mas e os outros nove lotes? Neles a situação é inversa: Ricardo Nunes assume a titularidade deles perante o Incra e a Receita, conforme as pesquisas do observatório, mas as matrículas continuam vinculados aos antigos proprietários.
A falta de atualização tem impacto na arrecadação de impostos. Os imóveis correspondentes aos treze lotes do prefeito em Marsilac aparecem no Cadastro Fiscal de Imóvel Rural com a situação de registro pendente por “Omissão de Diac”. A sigla se refere ao Documento de Informação e Atualização Cadastral do Imposto Territorial Rural, o ITR.
A Lei nº 9.393/96, que dispõe sobre o regulamento do ITR, obriga os proprietários de imóveis rurais a comunicar, no prazo de sessenta dias, quaisquer alterações relativas a desmembramento, anexação, transmissão de titularidade, sucessão causa mortis, cessão de direitos ou usufruto.
Não entregar o Diac implica em multa e juros e, sem o documento, não é possível aferir o ITR da propriedade. Em outras palavras, os terrenos de Nunes estão irregulares.
Os documentos obtidos pelo De Olho nos Ruralistas em cartório mostram que seis lotes de Nunes no Parque Internacional aparecem vinculados ao industrial alemão Hans Grill, que comprou a área em 1959 de outros dois membros da colônia alemã, o lavrador Pedro Hessel Reimberg e sua esposa Rita Hengler. Proprietário original da área que hoje compõe o Sítio Vista Verde, Reimberg era dono de 71 hectares de terras na região, em boa parte colonizada por alemães.
Segundo a tese de doutorado da geógrafa Camila Salles de Faria, uma dessas glebas ocupava uma área tradicional do povo Guarani, hoje correspondente à Terra Indígena Tenondé Porã. Apesar de já ter falecido, o colono alemão continua aparecendo como titular do lote nº 11.
Outros dois lotes tiveram sua última transferência registrada há mais de três décadas. O lote nº 16, onde fica o sobrado alugado por Nunes, está desde 1973 em nome de Jacinto e Mario Lopes Medeiros. Entre os lotes que compõem o Sítio Vista Verde, é o mais caro declarado por Nunes à Câmara em 2021: R$ 228 mil.
O lote nº 6 foi comprado em 1988 por Benjamin Ribeiro da Silva — mencionado por vizinhos como um dos donos anteriores do sítio — e Alfonso Boglio Serrano. Os dois são aliados de longa data de Nunes na zona sul e também serão temas de reportagem específica desta série.
A reportagem procurou a assessoria de imprensa da Prefeitura de São Paulo para ouvir o posicionamento de Ricardo Nunes a respeito dos terrenos em Marsilac.
Em nota enviada somente após a publicação do vídeo, o prefeito diz que os nove lotes registrados em nome de terceiros — números 6, 7, 8, 11, 12, 13, 14, 15, 16 — encontram-se “em processo de regularização nos referidos cartórios de imóveis para apresentação e documentação dos proprietários anteriores”.
Sobre os quatro primeiros lotes adquiridos de Paulo Ikeda — números 4, 5, 17 e 18 —, a assessoria informa que as matrículas “foram transferidas via escritura pública e registradas em cartório em nome do prefeito, sendo, até o presente momento, de desconhecimento deste a necessidade de comunicação a demais órgãos”. A nota afirma que a comunicação será brevemente realizada, assim como qualquer outra regularização de pendência.
Em relação ao tanque para peixes, mostrado pelo vídeo em nosso canal no YouTube, o prefeito nega que a nascente tenha sido canalizada:
— A nascente apontada pela reportagem está dentro de uma área de preservação, com todos os limites respeitados. (…) O reservatório não ultrapassa o limite previsto na legislação, e não há nenhuma atividade de “pesqueiro’’ ou algo de gênero na propriedade, que possui uma criação de peixes particular. Na data de aquisição dos lotes mencionados ainda não tinha sido constituída a área de preservação, o que somente aconteceu em 2001. O imóvel é usado para o lazer de familiares e amigos.
Ainda segundo a nota, os lotes foram adquiridos entre 1997 e 1998, antes da criação da APA Capivari-Monos, “já integralmente construídos e constituídos em sua forma final”. “Os imóveis constam da declaração de Imposto de Renda do prefeito Ricardo Nunes, o que reitera o seu compromisso com a legalidade de todo o processo”, conclui.
A resposta não faz referência à ausência de declaração do Imposto Territorial Rural (ITR).
Confira aqui a nota na íntegra.
| Alceu Luís Castilho é diretor de redação do De Olho nos Ruralistas. ||
|| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do observatório. ||
||| Manoel Marques é fotógrafo.|||
||||Colaboraram Eduardo Carlini, geógrafo, pesquisador, e Tonsk Fialho, pesquisador e repórter. ||||
Imagem principal (De Olho nos Ruralistas): prefeito de São Paulo possui sítio em área de nascente
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